Mais que o sol
Desajustado
Cal
Ao raiar do dia todos foram convocados imediatamente para a sala de jogos. O julgamento de Clint iria começar e Paige, Samantha e eu seríamos as testemunhas. Jeb já estava lá quando cheguei, a espingarda em punho como um lembrete de quem realmente ditava as regras ali.
Depois de curado Clint foi mantido preso em um buraco minúsculo e vigiado intensamente por alguns homens. Andy quis imediatamente matá-lo, mas Jeb disse que um castigo deveria ser aplicado para servir de lição para todos. Jeb era a cabeça pensante ali, realmente um grande líder e um mestre. Provavelmente sem ele todos já teriam se matado há tempos.
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Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!Nate se mantinha pensativo desde o início do dia. Meu amigo tinha o olhar perdido e balançava a cabeça como se estivesse em um grande debate interno. Foi com imenso pesar e choque que ele recebeu a notícia sobre a má índole de Clint. Nate havia o encontrado há alguns anos e desde então cuidado de sua segurança com afinco, assim como fazia com todos, e ele agradecia tentando violentar a garota de uma célula que tão bondosamente nos recebera. A traição pesava e Nate acabou absorvendo toda a culpa para si.
Quando o acusado chegou foi recebido com xingamentos e olhares de reprovação. A tensão era palpável e o ar estava carregado de ódio e raiva, todos ali querendo crucificá-lo. Clint morreria ainda hoje e, apesar de tudo, fiquei profundamente triste com o seu destino.
Paige chegou logo depois, acompanhada de um Andy furioso, e imediatamente começou a chorar. Ao vê-la, Samantha se posicionou protetoramente ao seu lado e isso me fez perceber que ela o tipo de pessoa capaz de qualquer coisa para proteger aqueles que precisavam.
— Ordem. Ordem! — Jeb deu início ao julgamento fazendo todos se calarem. — Antes de iniciarmos, algumas normas: primeiro, qualquer atitude fora de ordem será resolvida pelo meu amiguinho aqui — ele acariciou a arma. — Segundo, nunca se esqueçam do lema aqui. Minha casa...
— Minhas regras — todos completaram a fala de Jeb em coro.
— Quem gostaria de falar primeiro? — O velho indagou. Maggie, como sempre, foi a primeira a se manifestar.
— Nosso lar foi profanado. Já não bastava tudo o que temos que aturar aqui — ela começou enquanto lançava um olhar enojado para nós almas — ainda temos que conviver com essa superlotação causada pela sua cabeça louca. E veja no que deu. O povo de Nate não é como o nosso.
— E sinto muito por isso — Nate cortou a megera. — Mas assim como foi um membro de minha célula que cometeu tal ato, foi também um membro de minha célula mais uma pessoa de fora que a salvaram. A origem da pessoa não diz nada sobre quem e o que ela é.
— Nate tem razão — Jeb aquiesceu. — A origem do acusado não vem ao caso, o crime é importante. Clint cometeu sequestro, tentativa de estupro e com certeza se livraria de Paige ao final. O mostro a ser julgado aqui é ele, Magnólia. Paige, agora é sua vez.
A garota estava pálida e mal conseguia falar. Esperamos pacientemente até ela conseguir dizer alguma coisa.
— Eu... estava.... indo tomar banho, quando... — ela respirou — quando ele chegou e me cumprimentou. Antes que eu respondesse ele... me apagou ... Não sei de mais nada. Quando acordei, ele estava em cima de mim e... — ela chorou copiosamente antes de continuar — ele me apagou de novo. Depois já estava no consultório.
Andy tentou atacar Clint, mas foi contido por inúmeros braços. Saber que alguém tentara contra a vida e a honra de sua companheira com certeza devia ser algo difícil de aguentar. Jeb teve que empunhar a arma mais uma vez para que tudo se normalizasse.
— Cal, a palavra agora é sua.
Aproximei-me e respirei fundo, pensando no que diria. Eu não podia defender Clint, porém me sentia terrivelmente mal em acusá-lo. Olhei para Samantha e ela me fitou balançando a cabeça afirmativamente. Percebi então o que era o certo a fazer.
— Bom, com o início das buscas eu me dirigi à sala de jogos, não consegui entender como alguém poderia sumir aqui dentro. Mesmo com o fundo dela escuro e distante segui em frente e acabei ouvindo vozes. Eu as segui e encontrei Clint tentando abusar de Paige. Ele me agrediu e só não me matou porque Samantha chegou a tempo.
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Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!— Você confirma isso, Samantha? — Nate questionou.
— Sim, confirmo. Quando entrei na sala de jogos vi uma luz no fundo e fui verificar. Também ouvi vozes exaltadas e quando os encontrei Paige estava desacordada no chão e Clint sobre Cal socando-o. Atirei para defendê-los, mas não tive intenção de matar, embora esse filho da puta mereça morrer — ela pareceu falar diretamente para mim e me assustei ao ver tanto ódio e ressentimento numa criatura tão pequena.
— Não há dúvidas quanto o ocorrido aqui. Clint é culpado e deve pagar pelo seu crime. O que ele fez foi gravíssimo e sem perdão. Não podemos conviver com um mostro como você — Nate proferiu amargo.
— Me desculpem, foi um erro. Perdoe-me, por favor. Isso jamais irá se repetir, foi um momento de fraqueza. Faz muito tempo que vivo escondido, sem ver a luz do sol. Fiz o que fiz porque estamos todos enlouquecendo aqui. Mas agora eu aprendi, por favor — o acusado gritava na tentativa de se defender.
— Silêncio — Jeb o fez se calar. — Vamos ao veredicto final. Todos concordam com a expulsão do réu?
A maioria das mãos se levantou afirmando a sentença, no entanto outras pessoas ansiavam pela violência e exigiram sangue.
— Não! Não! — o homem começou a gritar. Eu não quero correr o risco de ter um parasita dentro de mim, prefiro morrer. Não, não.
— Calado — Nate dessa vez foi a voz presente. — Ainda hoje você irá embora daqui. Jeb? — ele passou a palavra.
— Clint, seus crimes são inadmissíveis e confesso que também preferiria meter uma bala no meio dessa sua cara imunda do que te mandar embora. Mas isso me faria pior do que você, e não há assassinos em minha casa. Considere-se expulso da comunidade e fique grato por não saber como chegar aqui. Se você for pego pelos buscadores, morrerá sozinho. Tirem ele da minha frente — Jeb ordenou e Clint foi levado pelos rapazes. Perguntei a Nate o que seria feito e ele respondeu que Clint seria apagado e largado em algum lugar distante dali. Lamentei por ele, mas melhor o exilá-lo do que assassiná-lo.
Logicamente muitos não aprovaram a ideia, pois preferiam a execução. Observei Samantha e ela me olhava curiosa, como se estivesse me analisando. As pessoas então se dispersaram, algumas ainda debatendo o assunto, outras já mergulhadas em outras conversas. A sala de jogos foi se esvaziando e segui com os outros.
Os dias percorreram normalmente, os humanos eram bons em levarem suas vidas adiante. Passado o susto, Paige voltou a sorrir, mas Andy não a largava um só instante. Jeb sentenciou nesse período uma nova regra: qualquer um que tocasse em uma mulher sem o consentimento dela seria condenado à expulsão. Sua palavra foi suficiente.
***
Eu estava nervoso, muito nervoso. E isso era muito estranho. Não que eu nunca houvesse sentido isso antes, mas dessa vez parecia diferente. E tudo isso estava acontecendo por causa de uma tarefa rotineira que eu já havia feito inúmeras vezes antes. Porém, agora a companhia seria diferente. Jeb me incumbira a tarefa de auxiliar Samantha com a louça e eu não fazia ideia de qual seria sua reação.
— Jamie, você está atrasado — ela ralhou. — Ande logo, pois... — seu sorriso morreu quando me viu. — Você? Seu trabalho hoje não é esse.
— Jeb precisou de Jamie para uma tarefa. E como estão todos ocupados ele me mandou para cá para auxiliá-la. Mas se você quiser posso ir embora.
— E eu vou ter que lavar tudo sozinha? Não mesmo. Comece pelas panelas.
Fiquei ao seu lado e comecei a ajudá-la, nós dois no mais profundo silêncio. Decidi quebrá-lo. — Desculpe por julgá-la mal naquele dia. Por achar que você queria realmente matar aquele homem.
— Pois é, as pessoas costumam me julgar sem me conhecer. Estou acostumada — ela disse e não sei por que isso me doeu. — Como você se atrasou, eu já terminei a minha parte.
— Sam, espere — chamei-a pelo apelido e ela recuou. — Jamais deixe que isso abale você. O que as pessoas falam muitas vezes não deve ser levado em consideração — Falei e ela apenas riu, uma gargalhada alta que me assustou. Ela era linda sorrindo.
— Cal, olhe bem para mim. Você acha que eu me importo com que os outros pensam ou deixam de pensar? Ainda há muitas coisas que vocês precisam aprender sobre mim.
— Eu aprenderei, se você deixar — disse e só depois avaliei o que tinha dito. Eu não fazia ideia de como ela ia interpretar essas palavras, mas realmente tinha vontade de conhecê-la. Sua força me amedrontava e me encantava ao mesmo tempo, seus olhos negros me chamavam e me prendiam em algum lugar distante. Olhei-a fixamente e ela estava com um meio sorriso nos lábios, algo raro e não menos encantador. A criatura na minha frente era a essência do desafio, algo que eu nunca havia conhecido nos meus milhares de anos. Sam podia ser tão fria quanto o gelo, mas no momento seus olhos me queimavam feito fogo.
— Você é esquisito, Cal — expôs com divertimento. — Um desajustado assim com eu. E também um preguiçoso. Termine de lavar a louça.
Fiquei ali parado na meia luz enquanto ela ia embora, o coração palpitando e uma sensação estranha me invadindo. Eu não sabia descrever o que era, era algo novo e indistinto, como se meu coração tivesse sido embrulhado por uma manta quente. Um sorrisinho idiota não saia dos meus lábios e me assustei. Lembrei das palavras de Sam: “Um desajustado assim com eu”. Sim, talvez essa fosse a palavra certa para me definir.
Demorei para terminar o trabalho, pois mal conseguia me concentrar. — O que estava acontecendo comigo? — repetia silenciosamente durante o caminho de volta. Levei uma bronca de Lucinda quando cheguei à cozinha.
— Por que demorou tanto? O jantar precisando ser terminado e nada de você trazer as panelas. Isso que dá botar homem para fazer serviços domésticos.
— Verdade — Jamie, que já estava posicionado à mesa, apoiou.
— Nada disso — Melanie interveio. — Eu odeio quando vocês começam com isso.
Isso gerou um debate divertido, com alguns em defesa e outros contra a divisão de tarefas de acordo com o sexo. Vozes exaltadas e animadas preenchiam a caverna que agora era um grande lar. As conversas depois do jantar eram um hábito constante e agora havia mais pessoas para compartilhar suas vidas e memórias. Já era tarde da noite quando Jeb ordenou que nos recolhêssemos e em poucos minutos a caverna mergulhou no silêncio e na escuridão.
O dia chegou rapidamente e pouco a pouco o lugar começou a ficar movimentado. Após o café, os homens foram encarregados de preparar e semear a terra do campo leste para receber os melões-cantalupo, e com mais braços para ajudar o trabalho terminaria mais rápido.
Minhas costas ardiam pelo calor refletido nos espelhos e minhas juntas doíam com o bater da enxada no duro solo. Eu necessitava urgentemente de água por causa do trabalho pesado. Fechei os olhos e apoiei a cabeça no cabo da enxada quando alguém me ofereceu água.
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Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!— Você quer? — Samantha perguntou e eu levantei a cabeça num salto. Ela me olhava com aqueles olhos negros e pequenos e me senti bem instantaneamente.
— Obrigado, Sam — respondi com um sorriso, mas ela não correspondeu, apenas comprimiu os lábios e continuou distribuindo as garrafas para os outros. Seu humor era uma montanha-russa.
— Essa aí é osso duro de roer — Jared disse se aproximando de mim. — Pelo menos ela falou com você e isso é um imenso progresso. Ela não é de falar muito.
— Ela é gostosa isso sim. Essa marra toda é falta de um bom aperto — Aaron, que cavava próximo a mim, proferiu debochado e me senti incomodado com sua atitude.
— Você não devia falar desse modo desrespeitoso — defendi e ele me olhou zombeteiro.
— Tá apaixonadinho é, alminha? É, eu já percebi o jeito que você olha para ela. Só não se esqueça de uma coisa, parceiro: que você não é homem — Aaron rebateu e saiu a passos firmes. Suas palavras me magoaram.
— Não ligue para ele — Jared bateu de leve no meu ombro. — Ele é impulsivo, mas no fundo é uma boa pessoa.
Não se esqueça de que você não é homem. As palavras de Aaron ecoavam em minha mente. Eu sabia que não era um homem, humano, de fato. Mas meu corpo era e isso não lhe dava o direito de falar assim comigo. Senti uma raiva crescente invadir minhas veias e me assustei ao perceber que queria muito resolver aquele impasse da mesma maneira que os homens humanos costumavam resolver suas diferenças. Jared percebeu e continuou a falar sobre o quanto Aaron era idiota e que não tinha filtro entre a boca e o cérebro.
Pouco a pouco fui me acalmando até que meus olhos foram atraídos para uma figura pequena, que subia em uma escada precária até o teto da caverna. Lembrei-me então que mais cedo Samantha e Adam haviam sido encarregados por Jeb para a limpeza dos espelhos.
Aquilo era perigoso, eu sabia. Um calafrio fez com que todos os pelos da minha nuca se arrepiassem.
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