Linhas Borradas

Arrependimento Inominável


Cato

O rosto de Fuhrman demora a me encarar de frente. Quando estou dormindo, ela sempre acaba de levar um tapa. Ela não olha mais na minha cara. Eu não sei se é respeito ou raiva.

– Cato vem primeiro com a gente – Enobaria anuncia no café da manhã, me apontando com o garfo. – Clove fica com a Nyra até antes do almoço.

– Pode ser – falo, porque eles deveriam querer saber o que eu acho disso. Mas como eles nunca se importam, se Clove estivesse normal me lembraria disso. Ela continua a comer, falando com Enobaria às vezes.

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Eu não me importo. Ela ainda é minha aliada e ainda responde a mim.

Começamos a nos separar para os preparativos para a entrevista e eu esbarro nela. Sorrio.

– Foi mal, cravinho.

Fuhrman não me responde; segue Nyra para a outra sala.

– Vadia.

– Ah, não precisamos mais nos preocupar – Brutus grita meio cantando, acotovelando Enobaria amigavelmente enquanto ela se senta no sofá. Eles começam a rir. – Os nenéns estão brigados.

Sorrio pra eles, girando e me sentando.

– O palhaço desse ano é o palitinho do 1, então você não vai soltar nenhuma dessas piadas cafonas – ela começa, parando de rir. Se soubesse o que foi que deixou sua sardentinha chateada riria um pouco menos. – Eles vão ter medo de você, você tem três minutos pra mostrar que vai ganhar isso com a força bruta.

– Como o Brutus fez – resumo, me encostando no sofá.

– É, como eu fiz.

– Só que ele – Enobaria se levanta e passa ao meu redor, agarrando um punhado dos meus cabelos e quase me deixando com raiva – tem essa carinha de anjo do demônio.

– Ah, claro, entendi. Seduza elas – Brutus fala como se fosse uma ordem clara.

– Essas galinhazinhas adoram uns músculos. Você vai ter ternos apertados e vai fazer cara de mau até sorrindo. Mas não sorria, bonitinho – ela dá um tapinha no meu rosto. Eu considero se o que eu dei na Clove doeu mais. – Gente do 2 só sorri se for debochando.

– É, é. Deboche das piadas daquele fracotezinho, o Caesar.

Enobaria se senta de novo na minha frente, erguendo as sobrancelhas como a filhinha dela.

– No mais, seja o brutamontes que você já é.

– A gente pode começar agora, mocinhas?, preciso de um tempo vago pra dormir antes da sardentinha.

Não há mais comentários sobre Clove. Eles começam a me entrevistar e eu me dou bem em todas as perguntas, dos mais variados tipos. Me mandam não pensar, sorrir de tal jeito, olhar com as sobrancelhas posicionadas milimetricamente e mais um tanto de frescuras. Ninguém poderia esquecer que eu vou ganhar isso.

– Thresh pode ser o perigoso. Você é a nossa máquina de matar.

Ninguém tem mais perguntas a fazer e ainda restam duas horas antes do almoço. Levanto e sigo os barulhos da Capital até a outra sala.

Nyra solta uns gritinhos histéricos às vezes, quando Clove a provoca. Calçada com uns saltos inúteis que sequer a deixam bater no meu ombro, ela tem que levantar saias e cruzar pernas oferecendo “pequenas brechas”.

– Eu sou a puta agora? – ela pergunta, levantando o vestido até as coxas legais enquanto se senta.

– Não não não! Clover, se trata de graça, sensualidade – a mulher tem uma luta intensa contra sua saia apertada.

– Clover é a puta da sua mãe. É Clove. Consegue segurar esse “r” do inferno?

Nyra ignora e continua andando. Fuhrman revira os olhos e a segue. Eu rio, mas elas não me escutam.

– Graça, querida, graça – a doente colorida estende os braços como se estivesse em transe. – Tudo bem?

– Tudo. Tudo perfeitamente bem – ela sorri, com o controle de humor que eu odeio. – Está certo agora?

– Sim, sim! – Nyra pula e a abraça. – Você está perfeita. Consegue sentar?

– Claro – ela puxa a saia do vestido enquanto se senta, olhando para a mulher e sorrindo.

– Perfeita!

– Já duvidou disso algum dia? – essa vadia ainda é amigável, fazendo Nyra rir e tudo mais.

Elas continuam pelo resto da manhã. Eu vou para o meu quarto e quando Fuhrman começa a levar tapas milhares de vezes, por milhares de mãos, me concentro na sua voz irritada ou elegante no outro lado do corredor. O som da lâmina furando a parede duas vezes é melhor.

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– Almoço, queridinhos!

Não fazer nada me deixa com fome. Eu não penso sobre nada que já fiz, mas eu quero ver se deixei marcas no rosto de Clove.

– Como foi, Clove? Se divertiu? – Enobaria sorri, suas presas refletindo a luz.

– Claro. Eu sempre me divirto – ela responde sorrindo de volta. Sorrio também. Ela não se diverte sempre.

Encaro ela um pouco mais, enquanto mastigo.

– Não perca essa aliança – Brutus rosna ao meu lado. Fuhrman se levanta. – Vai, vai falar com ela.

– O que é que eu teria pra dizer pra ela?

– Vai tratar os ferimentos que você fez, Ludwig – Enobaria fala de repente, dando de ombros. – Porque você bateu nela, eu sei.

– Eu não bati na Clove – eu não tolero sequer essa frase feita. Eu não machuco a Clove.

– Vai ficar com essa cara de culpado toda vez que encostar em alguém na arena? – ela devolve, largando o guardanapo. – Se foi muito ruim nem adianta.

– Ele não seria covarde – Brutus se intromete, cerrando os dentes pra Enobaria.

– Não estou dizendo que foi. Eu sei como a Clove é. Ela provocou.

– Ela te contou? – pergunto. Mas eu não estou “culpado”. Só não posso machucar a Fuhrman.

– Eu ouvi. Cada palavra – espero que ela termine de falar. – Ela não está errada.

– Porra, eu dei um tapa na cara dela, não foi um soco.

– Antes tivesse sido, bonitinho – a mulher sacode a cabeça. Brutus não entende também. – A Clove quer romper essa aliança.

– Isso é problema dela.

Eu tento não cerrar meus punhos, mas eles me irritam rindo como se eu fosse o idiota.

– O 2 quer um vencedor. Você sabe sob quais condições a gente vai arranjar um – Enobaria se levanta e dá um tapinha no meu ombro, sorrindo. – Tente não ser estuprado pela Nyra.

Quando eles saem, espero já irritado a coloridinha chegar, com uma dúzia de ternos brilhantes, pulando como um insetinho prestes a morrer.

– Oi, Cato! – ela canta. – Vista uma dessas belezinhas e vamos começar! Eu não acho que vamos ter um trabalho muito árduo, mas...

Eu bloqueio todo o resto. Absorvo o mínimo possível, a essência de cada frase sem os gritinhos, as repetições, as frescuras.

Eu sempre tenho as respostas. Rápidas, simples.

O que eu vou fazer com a Fuhrman?

Nyra levanta me manda sentar e cruzar as pernas pela décima vez.

– Isso já está bom.

– Eu sei que você está se saindo muito bem, mas...

– Eu já sei fazer isso.

– Tudo bem, tudo bem, querido.

Ela demora as mãos pelo meu corpo quando tem que me alinhar ou corrigir minha postura já perfeita em suas palavras.

– Clove se saiu bem? – pergunto quando quero uma pausa. Como ela faz tudo que eu mando, estamos sentados de frente para a televisão, meu desejo de distância sendo realizado.

– Ah, ela é ótima!

Me viro para ela agora, dando pulinhos e olhando o tempo todo pra mim.

– Gosta dela agora?

– Claro, claro! Ela é desequilibrada às vezes, é claro, e nunca para de jogar aquelas facas quando eu digo não, mas é esforçada o tempo todo. E tão charmosa!, ela tem aquele cabelo perfeito, educação de classe.

Aceno com a cabeça, voltando a olhar pra televisão.

– E você? – ela se aproxima, ansiosa como um passarinho atrás de água. – Gosta dela?

Penso antes de responder, como Brutus me disse pra nunca fazer.

– Ela é difícil.

– Eu sei!

– Ela é minha aliada, eu respeito ela.

– Não gosta?

Não se gosta de concorrentes, ainda mais os já mortos.

Enquanto fico em silêncio, o demônio aparece e cruza a sala até a cozinha, de sapato de salto. Me levanto sem dar satisfação a Nyra e adentro a cozinha, empurrando o próximo terno em cima dela. Fuhrman continua a beber água como se não me visse.

– Nos deem licença – falo para os Avox. Eles saem logo, reverências e tudo mais. Me aproximo de Clove, esticando a mão para tocar seu rosto. – Doeu?

Ela me olha pela primeira vez e ergue as sobrancelhas com... desdém. Então faz menção de sair. Empurro a porta.

– O que você quer?

– Você ouviu. Eu perguntei se doeu.

– O quê, o tapa que você me deu? Acorda. Aaron fazia o mesmo todo dia.

– Você quer romper a aliança?

Clove cruza os braços como eu.

– Por que você bateu na minha cara? – não falo nada. Agora ela me olha demais, me analisando de cima a baixo como as meninas e os rivais fazem. Agora ela é só o segundo. – Eu não vou romper nada.

Ela avança em direção a porta. Não saio da frente.

– Vai falar comigo agora, cravinho?

– Sim. Estou falando, não estou?

Sem Cat Cato. Nenhum sorriso. Não é a Clove.

– De verdade, Clove? É isso?

– O que você quer? – ela pergunta de novo. É até como se levasse a sério a coisa de eu mandar aqui.

– Eu não vou pedir desculpas, Clove. Olha – tiro o terno e a mostro os ferimentos avermelhados e incômodos de ontem.

– Não peça.

Eu a olho por mais um tempo. Eu gosto do nome dela.

– Eu disse que queria vencer, mas não precisa disso tudo. Nós ainda somos aliados.

– Eu sei. Se não fôssemos, eu não estaria falando com você agora.

Nada que ela disse poderia me irritar.

Mesmo lembrando de que no 2 nunca mencionamos “aliados”, eu não tenho razão pra querer quebrar coisas. Pensar em seu pai levantando o braço pra ela e me ver entre os dois remete outra coisa em minha cabeça.

Eu não quero quebrar coisas; observando Clove me olhar uma última vez antes de sair, eu não sei no que estou pensando, mas sei de uma outra vez em que pensei a mesma coisa: Eu tinha deixado Clove mexer com as espadas pesadas quando estávamos sozinhos e ela arrancou um tampo da pele do braço. Gritou e tudo mais.

Não nos ensinam palavras desnecessárias no 2, então eu não sei que porra de sensação é essa. Mas eu devia ter ajudado Dafne a segurar Clove até o próximo ano.