Crônicas do Pesadelo {Interativa}

Precisamos falar sobre 'aquela' coisa


Por dois dias a Beast Hunters prosseguiu com o objetivo de perseguir o alquimista do cartaz de procurado. Tudo correu sem problema algum. Mas a crescente ansiedade de Trix aumentava a medida que o tempo passava e eles não chegavam a uma cidade ou vilarejo.

A certo ponto, quando pararam para fazer uma pausa, Gravor achou que devia sondar rapidamente o que acontecia com a companheira. Primeiro esperou que Ryan e Skylar cuidassem da fogueira e Sean voltasse com dois gordos coelhos selvagens que seriam a refeição do grupo.

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Assim que o cheiro de carne assada se espalhou entre eles e o segundo no comando se dispôs a começar uma conversa discreta com a menina, Sky sentado ao seu lado atropelou suas boas intenções.

– Trix, o que ta acontecendo com você? – o ruivo lançou a queima-roupa.

– C-comigo?! – a jovem pareceu desconfortável.

– É. Você tem estado preocupada esses dias...

Ryan, que mordiscava um pedaço de carne, balançou a cabeça. Sean não disse nada, mas ficou óbvio que também percebera aquilo. Grav ficou surpreso que não fosse o único a notar o jeito da garota. Só não esperava que o líder do grupo fosse questionar a queima-roupa, sem um mínimo de sutileza. Não se podia colocar uma dama na berlinda dessa forma. Mas no fim das contas era Skylar, então paciência.

Trixia passou os dedos pelo cabelo, colocando os fios negros atrás da orelha antes de girar o pedaço de carne que segurava espetado em um graveto, pensativa.

Não era um assunto que a deixasse a vontade para conversar. Por outro lado envolvia tantas questões. Muitas delas perigosas, que não podia simplesmente mentir ou minimizar sua preocupação enganando os companheiros.

O grande X da situação era como tratar o tema delicado com quatro... machos?!

Sem olhar para ninguém em particular acabou deixando escapar:

– É coisa de mulher.

A frase fez Skylar rir descontraído. O rapaz exibiu um sorriso cheio de dentes antes de acenar com a mão, querendo dizer que não se tratava de nada demais.

– Já passamos desse ponto, Trix. Não precisa encanar com algo, pode contar o que está te preocupando sem medo. Somos uma família.

Sean e Gravor se entreolharam. Das duas, uma: ou Skylar não compreendera o que Trixia estava falando ou eles não entenderam o que o líder acabara de dizer! Ryan, com a boca cheia de carne, não parecia muito interessado em nada que não fosse encher a barriga.

Apesar dos pesares a tentativa fraca de apoio vinda do ruivo acabou descontraindo um pouco Trix, ainda que três dos Beast Hunters soubessem que não era intencional.

– Não, Sky. Eu quero dizer que é “aquela” coisa de mulher.

– Idiota – Gravor resmungou.

Sean usou um galhinho para reavivar as chamas da fogueira que começavam a enfraquecer. Às vezes quando se movia dava impressão de que as tatuagens tribais dançavam em sua pele amorenada.

– “Aquela” coisa que acontece todos os meses – Sean afirmou em um tom de voz neutro. Se bem que a postura do rapaz era meio tensa.

Skylar arregalou o olho e Ryan engasgou com a carne, provando que estivera sim acompanhando a conversa com atenção.

– AQUELA?!!

– Sim! – Gravor e Sean responderam ao mesmo tempo, enquanto Ryan passava as costas da mão pelos lábios para limpá-los.

– Bom... – Skylar cruzou os braços ganhando um ar reflexivo – E qual o problema? Essa... hum... condição acontece todos os meses, não é?

– Sim – Trix balançou a cabeça. Até aí estava tudo bem – Acontece com a forma humana e a forma shifter.

O líder fechou o olho. Os outros quatro membros pareciam bem interessados no que ele faria para resolver aquilo. Mas o rapaz ainda não compreendera qual o problema.

– Você já tomou o remédio? – Skylar perguntou.

– Não exatamente – Trixia passou a brincar com os dedos, envergonhada – A garrafinha sumiu.

– Oh. Compreendo.

– Foram aqueles ladrões? – Sean perguntou.

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– Sim. Quando recuperamos as mochilas não pude achar meu remédio de jeito algum. Fiquei meio desesperada, mas pensei que chegaríamos em uma cidade a tempo.

– Hn... – o ruivo acenou a cabeça como se fosse um grande governante prestes a tomar a decisão mais séria de um reino – Grave, você cuida disso. Eu vou passar um tempo na floresta e...

Soltou a solução inusitada e tentou ficar em pé para escapulir, mas Gravor foi muito mais rápido. Ele grudou na gola da blusa de Skylar e o obrigou a ficar no lugar.

– Não se atreva – o rapaz arrepiou-se de raiva. Não ia assumir mais aquela responsabilidade – Arrume isso você.

– Mas... mas... não vou conseguir resolver nada! – choramingou – Da última vez foi um desastre!

Os cinco silenciaram por um instante. Imagens aleatórias inundavam a mente dos integrantes da Beast Hunters na época em que a garota entrara pro time de pouco quando, por um motivo qualquer, Trix ficara sem tomar o seu remédio.

Sim. A moreninha era uma mulher normal, com seu desenvolvimento normal. Fato que significava passar por um ciclo menstrual todos os meses. E isso influenciava a parte animal que carregava em si. Como era uma shifter a parte humana, maior parte do tempo no comando consciente, acabava controlando isso também, ou seja, o ciclo menstrual da pantera passava pelo mesmo período fértil que a garota.

Pela parte humana não havia nada demais: uma shifter apresentava sintomas iguais que uma mulher da raça humana. A coisa mais perigosa a respeito era algo que se chamava de TPM e deixava a garota ora um poço de sensibilidade, ora um mar de irritação...

Já na parte animal não se resumia a um quadro tão simples. Podia-se dizer que havia risco de vida, porque englobava os instintos mais primitivos de uma criatura e afetava intensamente as pessoas ao seu redor. Em momentos assim o animal dentro de um shifter era muito mais forte!

A solução simples que tais raças encontraram foi desenvolver um remédio que inibia e minimizava os efeitos do ciclo. Uma proteção muito eficaz.

Somente uma vez a Beast Hunter tivera problemas com isso. E fora o bastante.

Depois da quase tragédia Trixia tomava o cuidado para que nunca esquecesse de tomar seu remédio na data certa, por precaução. E tudo ia muito bem. Até agora, já que haviam sido roubados e tinha perdido o líquido precioso.

– Você pode nos dizer se está próximo? – Sean perguntou para a companheira. Havia gentileza em sua voz.

Trix olhou para os dedos da mão, levemente inchados: um sintoma que reconhecia muito bem. Assim como a emoção que a acolhia por se sentir culpada da situação. Seus amigos a tratavam tão bem e ela perdera seu remédio!

No fundo compreendia que não tinha culpa do roubo. Mas... a sensibilidade profunda era incontrolável e a deixava chorosa. Outro sintoma.

– Eu já devia ter bebido – confessou receosa – Mas não avistamos nem uma cidade... não temos onde conseguir remédios e... e... sinto muito não ter dito antes!

Os olhos da menina se marejaram cheios de remorso, desconcertando os quatro integrantes masculinos da Beast Hunters.

– Não chora Trix! – Ryan pediu. Era o mais novo dos machos, logo não sentia os efeitos diretamente sobre si, como qualquer adolescente em sua idade que ainda não fora afetado por todos os hormônios do crescimento – Vamos resolver isso!

– É... vamos – Skylar prometeu sem convicção exibindo um sorriso amarelo. Afinal, ele era o grande problema ali! Logo uma pantera...

Sean puxou o mapa da mochila atrás de si e o abriu, sondando com cuidado.

– A cidade mais próxima fica a quase um dia de distância. Só precisaremos desviar a rota para o norte. Isso...

– Vai nos colocar no caminho da Justice Blade – Gravor completou analítico – Não vai ser um problema. Não caçamos nada no “território” deles. Pegamos o remédio nessa cidade, é provável que a gente nem esbarra com eles. Esses caras ficam bem mais ao norte, no centro do reino. Não estariam perdidos em uma cidade de fronteira.

– Tem razão – Sean concordou – Na cidade também podemos encontrar uma...

– Prisão! – Skylar soou aliviado – Um lugar que sirva como prisão ou abrigo. Assim ninguém se machuca, não é? E não acontece nada que a gente se arrependa depois...

– E tranca a porta! – Ryan tentou ajudar no plano capenga – Vai ficar tudo bem Trix!

A moreninha sorriu um pouco, piscando e expulsando as lágrimas que se juntavam nos cantos de seus grandes olhos. Sentia alivio, porque aqueles quatro rapazes com personalidades tão exóticas realmente se preocupavam e cuidavam dela.

Sean, um tipo mais na dele, meio calado e às vezes meio rude. Gravor, o mulherengo do grupo e aquele que odiava responsabilidades. Ryan, um jovenzinho aprendendo a conhecer o mundo. Skylar, o rapaz que parecia muitas coisas, menos o líder de uma equipe.

Jamais acreditaria que eram tão gentis ou que se afeiçoaria a shifters assim, amando-os como se fosse sua família.

As aparências enganam”

A frase soou na mente da garota, trazendo fragmentos de um passado não tão distante. Um tanto saudosa tentou espantar a súbita nostalgia que a acolheu. Ainda que não tão distante remetia a uma outra vida. Não poucas vezes Trix se pegava pensando em suas memórias e sentindo-se como se fosse a história de outra pessoa.

Não que seu passado fosse cheio de coisas dolorosas. Longe disso! No reino em que crescera era tratada com toda a regalia que seu sangue nobre exigia. Era amada e protegida por todos. Quase como aqueles contos de fadas que as velhas amas contavam para crianças.

...aparências enganam”

Com aqueles quatro Trixia não era tratada como uma preciosa princesa. Mas também os quatro não a viam como alguém fraco ou inferior. Convivendo com os rapazes da Beast Hunters se percebia tratada com justiça, como se estivesse no mesmo nível que eles. Com suas fraquezas, claro. Mas também com qualidades e pontos fortes. Isso a encantava! E, na mesma proporção, a culpa retornou e pesou em seus ombros com mais força. Deveria ter dito o que a afligia antes.

– Eu sinto mui...

– Não sinta – Skylar cortou a frase lamentosa. Então enfiou um dedo no ouvido e coçou, como se algo estivesse incomodando – Também tem umas coisas que acontecem com o meu corpo que eu não gosto de falar com outras pessoas. É normal – finalizou o incentivo observando a ponta do dedo para ver se tinha algo interessante antes de limpa-lo na blusa.

A garota sorriu permitindo que o alívio a inundasse. As aparências realmente enganam. E no caso de Trix, era ainda pior... acabou ficando em pé, e olhando para cada um dos quatro amigos.

– Podemos partir? – ela pediu – Temos que chegar nessa cidade a tempo.

Os rapazes concordaram. Rapidamente desfizeram o improvisado local de descanso e se colocaram novamente a caminho.

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Trixia, particularmente mais preocupada e perdida em reflexões, lembrou-se de certo ruivo, figura inesquecível em sua infância. A memória a fez olhar instintivamente para as costas de Skylar, que avançava apressado, quase correndo.

Ruivos. Ah, os ruivos em sua vida!

Como se recebesse uma injeção de animo, a garota afastou os pensamentos sombrios e apertou o passo sabendo muito bem o que estava em risco naquela situação. Não podia brincar com “aquela coisa de mulher” quando tanto estava em jogo.

A noite caía e nenhum sinal indicava que estavam mais próximos de alcançar uma cidade, então o pior aconteceu. Trix sentiu gotas de suor juntarem em sua fronte, assim como escorrerem por suas costas como dedos frios arrepiando a pele sensível. Seu ciclo...

O primeiro a sentir a mudança foi Skylar. O líder da Beast Hunters estremeceu e parou de andar, virando-se lentamente para trás, com o olho de íris esverdeada tão arregalado quanto os olhos de Trix, revelando surpresa e incredulidade. A esperança de encontrar um abrigo seguro fora completamente destruída.

Sean foi o próximo a parar de andar e virar-se para observar a garota. Gravor se deu conta por último e tocou no ombro de Ryan impedindo-o de seguir em frente. O caçula ficou um tanto confuso, mas ao mirar Trix ele compreendeu tudo.

O ciclo da fêmea começara.

A confusão estava armada!

continua...