Crônicas do Pesadelo {Interativa}

Alameda das Lembranças 01


Alameda das Lembranças 01
Especial Gravor – parte 01

– Tome cuidado! Filho?!! Céus...

O alerta preocupado perdeu-se sem que o garoto o escutasse. A jovem senhora que olhava pela janela meneou a cabeça antes de voltar para o interior da casa e retomar os afazeres domésticos. Aquele rapaz não tinha jeito mesmo.

Enquanto isso o adolescente continuava correndo pela densa floresta que ladeava a casinha da família, afastada da cidade. Em geral shifters não eram bem vistos pelos demais povos, principalmente pelos humanos. Mas o Reino de Níger tornara-se mais tolerante e acolhia bem a espécie. Por isso Gravor Trelow Crous e sua família tinham uma vida muito boa por ali: tiravam o sustento da floresta e vendiam nas pequenas vilas que existiam nas proximidades.

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Gravor, alto e forte para a idade, assumia a caça junto com o pai: armava-se de um afiado machado e abatia suas presas com habilidade cada vez maior, a ponto de arriscar-se a sair sozinho pela floresta, destemido.

Aquele lugar era um ninho abençoado pela deusa Mãe. Grav já vira tigres, ursos, panteras e inúmeros outros animais. Convivia bem com eles, pois os respeitava. E recebia esse respeito em retorno.

Às vezes se perguntava por que pegara a responsabilidade de caçar para si, já que odiava esse tipo de coisa. Porém a resposta simples fora fácil de encontrar: quando estava dentro da floresta sentia uma paz... e algo mais! Algo como uma espécie de chamado. Quase um convite. Como se as árvores, cada folhinha lhe trouxesse uma mensagem de que o mundo se constituía por muito mais do que simplesmente aquele lugar em que morava.

E um dia Gravor teria coragem de sair de casa e explorar esse mundo!

Um dia...

Por hora ele se conformava em caçar e aproveitar o carinho da mãe, o companheirismo do pai e a presença do irmãozinho recém-nascido, alegria que iluminava a casa. Seu relacionamento com eles era ótimo, apesar de causar preocupação, já que era jovem e meio descabeçado.

Seu pai ficava danado quando saia pra caçar sozinho! Depois tinha que ouvir sermão do pai e da mãe, principalmente se ficava ferido nessas caçadas. Mas Grav acabara de fazer dezessete anos, já era dono do próprio nariz! Ou quase...

Caminhou algum tempo pela mata silenciosa, salvo pelo som ocasional de pequenos animais e insetos. Sentiu que aquele era um dos “dias fracos”. Ou seja, a caça seria mais difícil de encontrar!

Ótimo! Gravor adorava esses dias.

Despreocupado encostou o machado em uma das árvores e começou a tirar a roupa até ficar completamente nu. Então fechou os olhos castanhos e fez como seu pai lhe ensinara. Concentrou-se, não habitava aquele corpo humano sozinho. A deusa Mãe lhe dera uma alma gêmea, não no sentido dos livros de romance que sua mãe lia avidamente, mas em um sentido mais íntimo e peculiar: duas criaturas moldadas na mesma carne, compartilhando muito mais que o corpo, o próprio destino.

Precisava encontrar esse ser em sua mente, e a única forma de fazer isso era trazendo o vazio para si, de modo que apenas os dois; por um ínfimo instante, pareciam existir.

Algo que para Gravor ainda era difícil e complicado. Seu pai evocava a fera com uma facilidade de dar inveja! A transformação de seu progenitor se aperfeiçoara graças à prática no decorrer dos anos. Sabia que um dia seria muito mais fácil para si assumir a forma shifter também. Mas nunca, nunca, nunca seria menos doloroso.

À medida que sua concentração aumentava tudo ao seu redor parecia desaparecer e ao mesmo tempo, incrivelmente, tornava-se mais intenso: a natureza ao seu redor manifestando-se em sons, ar, calor do sol, cores que, ainda que seus olhos fechados não vissem, sabia estarem lá. Os tons da natureza.

Gotas de suor frio juntaram em sua fronte séria. Caiu com um joelho sobre o chão enquanto sentia uma forte dor percorrer suas costas, bem sobre a espinha, enquanto a pele rasgava-se para dar espaço a criatura que residia em seu interior. Sofrimento que o garoto aprendia a suportar como parte de si, parte do ciclo ao qual estava preso. A dor era a dor da morte e do renascimento, em que deixava de existir fisicamente como Gravor Trelow Crous e sua forma humana era tal qual uma tímida lembrança. Então só havia a fera selvagem e indômita.

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Pouco a pouco algo que lembrava a tez de Gravor pairava no ar esvaecendo enquanto um magnífico tigre rajado agitava o pêlo ainda úmido. Olhos atentos, castanho-dourados observaram o ambiente ao seu redor.

O animal, visivelmente tão jovem quanto a forma humana, ergueu a cabeça e farejou o ar. Imediatamente captou o cheiro peculiar que atiçou seus instintos mais primitivos: sangue.

Com passos leves e calculados, surpreendentes em uma criatura tão grande e pesada, avançou para mais fundo na floresta, querendo descobrir o que acontecia tão perto de sua casa, o que com certeza espantara os animais e os fizera se esconder. O “dia fraco” não era a toa ou sem justificativa: sangue fora derramado e manchara o chão daquela mata. O tigre não deixaria passar em branco.

Correndo por entre as árvores, uma imagem do passado de sua forma humana, quando Grave muito jovem e ainda incapaz de assumir a forma shifter encontrara um urso. Uma criatura grande que o assustara e o colocara para fugir.

O tigre rugiu alto e assustador.

Podia ter corrido no passado. Agora... agora eram os seus inimigos que fugiam de si!

A corrida se intensificou quando o odor tornou-se mais forte. O tigre ia com os dentes a mostra e a postura de ataque que assustaria a mais valente das criaturas. Não fugia de uma boa briga. Isso tanto sua manifestação animal quanto a manifestação humana possuíam em comum.

Tal investida feroz foi interrompida quando ele alcançou um espaço maior entre as árvores e deparou-se com um outro animal: um lobo de pelagem cinzenta e olhos verdes. Ou melhor, um único olho verde, já que o espaço onde deveria estar a orbe esmeralda direita exibia apenas um buraco vazado e escuro.

As duas feras se observaram em silêncio por breves segundos. Apesar de ser menor e mais leve que o tigre, o lobo não pareceu se intimidar. Foi o morador daquela floresta que deu o primeiro passo, pronto para defender seu território. A única coisa em que pensou foi a segurança de sua família, pois sentiu que aquele não era um lobo comum, e sim outro shifter.

Porém o suposto invasor não fez nada, dando a oportunidade de que o tigre notasse que ele estava machucado e o cheiro de sangue vinha de uma ferida no lado direito de seu corpo. E, no fim das contas, a criatura estava tão fraca que a única coisa que pode fazer foi cair ao chão exaurida, lançando um último olhar para o tigre antes que seus olhos se fechassem. E, inexplicavelmente, houve certa... comunicação entre eles! Gravor ou o tigre não poderiam colocar em palavras o que se passara. Apenas experimentar. Nunca seria possível esquecer tal coisa, a primeira vez que sentira algo tão peculiar com um total desconhecido.

oOo

– Gravor...? Gravor!!

O rapaz piscou com força, voltando dos devaneios em que estivera perdido. Não era comum que se deixasse levar por memórias do passado, mas por algum motivo inexplicável acabara se recordando de quando encontrara Sky pela primeira vez, mais de seis anos atrás, o grande responsável pela mudança em sua vida.

– O que foi, Mini? – perguntou para Ryan, usando o apelido do garoto. O ruivinho era realmente baixo para seus catorze anos.

– Estamos partindo. Fim da pausa! – o menino respondeu de mau modo e mostrou a língua antes de se afastar pisando duro. Odiava ser lembrado do quanto era baixinho!

Só então o segundo no comando da Beast Hunters percebeu que todos os outros companheiros já estavam com as mochilas nas costas, prontos para partir; apenas aguardando que o braço-direito da equipe de caçadores. Skylar exibia um sorriso muito suspeito nos lábios.

– Acordou da soneca? – debochou.

Gravor apenas girou os olhos sem responder. Ficou em pé e jogou a grande mochila nas costas. Logo os cinco estavam na estrada, com Sky e Ryan na frente, estudando caderninhos de anotações com informações de caçadas anteriores e detalhes que adicionavam sobre o novo criminoso que caçariam. O ruivo mais velho levava o bastão retrátil na cintura, e o tapa-olho não era suficiente para diminuir o brilho na outra íris saudável. Ele sempre se empolgava com novas tarefas. Ao seu lado, igualmente animado, Mini seguia com os cabelos ruivos bagunçados e o grande machado as costas.

Sean caminhava sozinho, com sua espada dupla brilhando sob a forte luz do sol, e as tatuagens tribais dando um aspecto muito assustador ao rapaz de índole imprevisível. Levava um mapa nas mãos e estudava o reino em que o cartaz de procurado informava terem visto o alquimista criminoso pela última vez.

Ao lado de Sean, dois passos atrás, vinha Trix. A única garota da Beast Hunters, com seus passos fluidos e bem marcados, tão confiantes quanto os passos de uma pantera. Apesar de a garota ter uma essência tímida. Em suas costas o grande arco e a aljava com flechas balançava ritmicamente, embalados pelo caminhar suave. Uma leve brisa agitava os longos fios negros do cabelo de Trixia, de modo que inconscientemente Grav se lembrou da pantera em que ela se transformava.

Desde que se colocaram a caminho Trix tinha dito duas ou três vezes que precisavam fazer uma pausa em uma cidade o quanto antes. E dissera aquilo de forma tão aflita!!

Gravor odiava ser responsável por algo, mas tomou aquilo para si e se prometeu que investigaria na primeira oportunidade. O que acontecera com a menina para que ficasse angustiada assim? Angustiada e desconfortável ao tocar no assunto?

Sim, investigaria mais a fundo quando a oportunidade se mostrasse.

Enquanto isso se conformou em cruzar as mãos atrás da cabeça, entrelaçando os dedos sobre os fios castanhos. Nas suas costas o machado balançava a cada passo, arma que era gêmea a de Ryan, e com a qual às vezes treinavam juntos.

Uma sensação boa fez Gravor sorrir. Ainda não gostava de responsabilidades e não, ele não era o segundo no comando sem reclamar um tanto. Mas... era sincero e admitia: nunca se arrependeria de fazer parte daquela família.

Jamais se arrependeria por ter salvado Skylar naquele dia. E o levado para ser cuidado em sua casa.

continua...