Quando Amanhecer

Conveniências


Enfim encontra à beira da estrada uma loja de conveniências ao lado do posto de gasolina, onde estaciona. Já não era sem tempo.

Os funcionários admiram o rapaz que desce da Ferrari, seu fino e negro terno tingido de um vermelho carmesim que não souberam identificar. Os cabelos de uma escuridão fosca embaralhavam seus fios repicados acentuando o charme diabólico e enigmático do vampiro.

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Ele dá a volta no seu carro azul e abre a porta do passageiro. Contempla a forma impotente como a garota se deleitava na poltrona. O vestido ensopado com o suor delineava as curvas salientes da cintura, a coxa a mostra e os cabelos escorrendo como cascata ao chão, tudo junto fez o peito formigar. As dores cessaram, porém a fome estava incontrolável.

Ela ergue o rosto e lhe encara com os olhos semicerrados. Os lábios rosados tremulam.

– Preciso me alimentar primeiro. Depois você. Não saia do carro – ele avisa.

Caminha em direção à loja tentando manter os passos firmes. A visão desfocava de vez em quando, mas anda elegantemente. Aparência fazia parte dos itens que mais presara em vida e nessa forma não seria diferente.

Dentro, de imediato descobre os clientes e os empregados: sete pessoas. Entre as fileiras de doces uma adolescente, na de produtos de higiene um indiano e uma velha, perto das bebidas um homem gordo, dois atrás do balcão e um mais ao fundo, no banheiro. O cheiro deles enche as narinas e não demonstram qualquer sinal de sangue apetitoso. Estava fraco, não poderia escolher.

Notando o rapaz de excessiva palidez e bem apessoado, um dos balconistas, um garoto comprido de grossas olheiras e um boné laranja folgado na cabeça pergunta:

– Posso ajudar? – a voz é carregada de desanimo das noites mal dormidas.

Vira-se a ele. Encara a feiura do atendente. Um humano medíocre, vivendo a vidinha que não deseja e que mal sabe com quem está lidando.

– Só se vocês vendem sangue – responde irônico, o sorriso malicioso na face.

– Como é?

Infelizmente, o vampiro não tinha tempo para os seus adorados jogos de piadas sarcásticas. Ele precisava de sangue. E a menina também.

Saca o revolver que trazia no bolso de dentro do terno e atira para o alto. Uns clientes gritam enquanto outros se viram com olhos esbugalhados para o autor do disparo.

– Estou assaltando essa loja! – informa ao seu público. Com os olhos de predador varre o local mais uma vez. Todos imóveis. As pulsações aumentaram. O som da vida era alucinante. Não eram tão apetitosos, mas dariam conta de saciá-lo por um tempo. - Quanta sorte a de vocês: eu não ligo para seu dinheiro, eu quero o sangue que correm nas suas veias! Se alguém quiser ser voluntário, garanto que será menos doloroso.

– Mas que diabos...? – exclama o gordo bêbado.

– Será que temos um rebelde? – indaga. Atira mais uma vez.

A essa altura os funcionários do posto estão em volta da loja de conveniências, mas não ousam se aproximar. De entre a roda do lado de fora, uma garota cambaleia ainda meio zonza e adentra a loja para ver a confusão.

Com a sua entrada o silêncio domina o ambiente. O vestido azul faz flutuar as fitas de cetim e os cabelos tratam de se arrumarem. As íris violetas transbordam cansaço. Das dores de cabeça que suporta somente consegue lançar uma expressão indignada ao companheiro vampiro.

– Que bagunça... é essa?

Ele interrompe de súbito a mordida que preparara para abocanhar o pescoço de uma menina desacordada. Já havia se alimentado de dois: o balconista e o indiano. O gordo resolvera que ficaria preso no teto pela perna, e assim estava.

– Eu disse para ficar no carro. – late furioso, os lábios sujos de sangue.

– O que pensa que está fazendo com essa daí? – o esforço que ela faz para dizer uma frase completa é cortante. Uma tontura lhe faz desequilibrar e precisou se apoiar no balcão. Com a visão turva captura o outro atendente encolhido sob a máquina de cachorro-quente. O medo que é transmitido por ele é como uma facada no cérebro.

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Aproveitando da distração da médium, o vampiro volta-se para o pescoço macio e suculento da humana. Prepara-se para mordê-lo e...

– Krad! –... mais uma vez é interrompido.

– Eu preciso de mais sangue! – berra para ver se ela compreende.

– Você prometeu... Não morderia outra garota!

Ciúmes? Agora?!

Um passo e consegue voar até ela. Agarra-a pelo pescoço, ergue-a sobre o balcão e a faz sentar-se. Não estava 100%, porém ela estar fraca física e mentalmente e ele já ter se alimentado o necessário tornou tudo mais fácil. Poderia matá-la. Apertou um pouco mais os dedos. A menina reage segurando-os. E fita-o com súplica, mas não medo. Queria ver medo nesses olhos violetas tão profundos quanto um oceano de flores de lavanda.

– Krad...! – esforça-se ao máximo para trazê-lo à sanidade.

O fio de voz dela é fraco e melódico, como um feitiço, a palavra mágica.

Volta à tona. Larga o pescoço dela fugindo o olhar para a porta do comércio. Os empregados e os clientes estão todos desmaiados. Não compreende de imediato. Assim que toma fôlego, vê a médium prestes a desmaiar no balcão.

Apressasse em segurá-la.

– Krad... – sussurra.

– É por isso que disse para ficar no carro, Fay! Eu não me alimento há semanas, sabe que posso perder o controle!

Uma mistura estranha de ira e preocupação preenche o vazio do seu peito. Para um ser desalmado quando emoções há tempos abandonadas regressam, surgem multiplicadas muitas vezes mais, e a confusão que elas lhe proporcionam deixava o vampiro atordoado e igualmente inconstante.

Fay não conseguia mais falar. Ao contrário do companheiro, demorava a recuperar o cansaço psíquico. O ciúmes que a levou a entrar na loja e o ataque que sofrera do vampiro descontrolaram seus poderes, explodindo em ondas cerebrais que literalmente “pifaram” o cérebro dos humanos ali presentes. E as consequências a castigava. Tudo que consegue é olhar o seu amado ser da noite.

Como que lendo os pensamentos dela, Krad retira o sangue sujo em sua boca com as costas da mão e aproxima-se. Ergue o queixo da garota com o polegar. Corpos próximos permitem sentir o calor dela. Tinha tanta inveja da menina saber o que é frio e calor. De conseguir transpassar as emoções com apenas um olhar. Era estranho como o cheiro dela é tão delicioso, tão humano. O que Fay provocava não era vontade de matar. Ela era diferente. Tê-la tão perto o fazia querê-la. Querer abraçá-la. De protegê-la de qualquer evento que possa afastá-la dele. Mordisca o próprio lábio inferior com a ponta da presa e passa o sangue que escorre para a boca dela. Ela recebe hesitante. Consegue ouvir quando a garota engole seu sangue. Segundos depois Fay emerge sentando-se reta, sem cambalear. Fita-o em agradecimento. Puxa-o para mais perto, desabotoa um pouco mais a camisa dele e curva a cabeça. Dois furos no pescoço dela, que eram escondidos com uma faixa de cetim, ficam a mostra. A garota então recebe o impulso vampírico. Morde a raiz do pescoço de Krad, que aguardava impaciente. Fay saboreia o sangue que não para de fluir pelas presas temporárias. Sentia o corpo queimar toda vez que experimentava um momento de vampira. O verdadeiro vampiro tenta conter-se por algum tempo. Sabia que não deveria cair em tentação quando ela ainda estava fraca. Não poderia correr o risco de matá-la. Não, tinha outros planos para matar Fay: apenas quando conseguir viver sem ela. Tudo que se permite fazer é abraçá-la e sentir um pouco mais o calor de se estar vivo.

– E... acabou.

Fay mostra o rosto, agora corado como de costume.

Krad limpa o resquício de sangue na boca dela com o lenço vermelho que carrega no bolso. Sorri, as presas brilhando alvas.

Ela também sorri, mas suas presas já desapareceram. Ela era humana, afinal.