Tudo que ele não tem

Treze - Anna


D E S A B A F O

(s.m. Manifestar o que se sente ou pensa, desafogar-se.)

Estamos todos reunidos.

Helô, que tem o sorriso mais animado do grupo, está encolhida em um canto do sofá junto com Matheus como se ela mesma fosse desaparecer. Yago, que sempre sabe soltar piadas nerds para melhorar o clima, está sentado no chão encostado na parede e com o olhar voltado para o teto. Já Pedro, que sempre é o mais quieto, é o único que parece está realmente louco. Ele está andando em voltas pela sala e encara os dois profissionais como se eles fossem malucos por estarem parados.

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— Precisamos fazer alguma coisa! - fala novamente.

Doutora Angela coça os olhos com uma expressão cansada.

— Não sei o que poderíamos fazer, Pedro. Não temos opções - responde.

— Não podemos ligar pra ninguém? - pergunto, sentando ao lado de Yago.

— Gisele foi uma das garotas acolhidas pela instituição em estado grave de dependência, Anna - responde doutor Lucas - Temos projetos em várias comunidades e Gisele foi encontrada deitada sobre o corpo da irmã morta com crack por perto. Ela estava desnutrida e sua única família tinha acabado de morrer. Depois do laudo médico, foram encontrados hematomas de agressão em seu corpo.

— Foi o namorado dela - Helô comunica - Ela não falava muito dele, mas teve uma vez que ela conversou comigo. Ela nunca quis experimentar a droga, mas ele a iludiu. Dizia que ela não era boa pra ele, que deveria experimentar pra ser como os outros da favela. Ele era traficante e iludiu ela com uma conversa fiada, bem típico de babacas como ele.

Faço uma careta e traço a pequena marca em meu pulso, discreta o suficiente pra ninguém notar que é uma cicatriz. Eu detesto relacionamentos abusivos e canalhas como esse namorado de Gisele, que se sentem superior aos outros. Era doentio e extremamente machista. E agora consigo compreender o desespero de Helô, pois ela achava que Gisele poderia reencontrar esse tal namorado.

Estremeço ao pensar nisso, mesmo meu corpo ainda sentindo a quentura de Matheus com aquele abraço inesperado. Meus sentimentos confusos se enrolam no meu peito em uma guerra. Céus, Anna. Pare de pensar nisso. Depois de três anos mantendo tudo sobre controle: notas, objetivos, amizades e sentimentos... É estranho quando perco o domínio sobre as coisas. Tudo isso tinha começado naquele dia da boate e se concretizou no impulso que me deu na hora em que menti por ele.

Na minha mente, eu estava prestes a explodir e por isso me distanciei, para compreender. Mas Matheus, sendo a pessoa mais próxima de mim ultimamente, percebeu isso e estava decidido a saber o que estava errado. Era a minha pergunta de sempre: O que está errado, Anna?

— Qual é a comunidade dela? - pergunto.

Em parte estou preocupada com Gisele, porém um pequeno pedaço meu ainda está com raiva por todas as coisas que atrapalham Matheus de me contar o que está acontecendo e me abomino por isso. Noto Angela e Lucas se entreolharem por um momento.

— Essa informação é confidencial, Anna. Me desculpe - doutor Lucas responde - O máximo que podemos fazer, já fizemos: contatamos o grupo que auxilia essa comunidade e se encontrarem Gisele, eles avisarão.

— E se não encontrarem? E se esse babaca matá-la? - questiona Pedro, mas todos ficamos em silêncio.

Odeio essa sensação de impotência. Olho as horas no relógio pendurado na parede e mordo o lábio enquanto me levanto.

— Eu vou tentar pensar em alguma coisa quando chegar em casa - respondo, mas olho para as duas pessoas responsáveis na sala - Se ela aparecer, por favor avise-me.

— Também estarei em alerta - fala Matheus e começa a se arrumar para ir. - Qualquer coisa só é me ligar que eu dou um jeito de vim.

Vou até Helô e a abraço o mais apertado que posso. Não somos tão próximas quanto o esperado, mas não posso ignorar o que ela está sentindo. A instituição não é um mar de rosas com várias pessoas amigáveis e provavelmente Gisele era uma das suas poucas amigas aqui, senão a única.

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— Vamos encontrá-la - sussurro baixinho em seu ouvido.

Ela assente e me dá um sorriso de canto, antes de segurar meu braço e murmurar de volta:

— Você deveria conversar com a pessoa que está te tirando o foco - diz - Está claro aqui que o seu problema não é TPM, Clarinha.

Encaro seus olhos castanhos por um momento, querendo saber como deixei escapar que perdi o foco durante muitos momentos daquela conversa. Mas apenas concordo e sigo até a salinha de funcionários. Matheus já está aqui. A cabeça apoiada no armário enquanto ele verifica alguma coisa na mochila. Só percebo o quanto ele está se controlando, quando vejo seus ombros se retesarem por um momento de um jeito que alguém com tantos hematomas não deveria fazer.

Olho para o meu armário e ponho a mão em minha mochila. Nem parecia que a garota raivosa há algumas horas atrás era eu. Mas que merda.

Fale - digo.

Olho com cautela para sua mão que forma um punho dentro da bolsa. E encaro seus olhos esverdeados quando ele levanta a cabeça.

— O quê?

— O que está sentindo. O que está te causando tanta raiva, só fale. - mordo o lábio inferior contendo um palavrão - Conter essa raiva toda, só vai deixar tudo pior. Eu sei disso.

Os glóbulos verdes não param de me encarar. O misto de raiva e frustração se transformando aos poucos em cansaço e talvez um pouco de tristeza. Era engraçado o quanto eu sabia ler suas emoções, como se ele escancarasse seus sentimentos pra mim toda vez que me olhava. Às vezes eu achava que isso se devia ao luto, passamos por lutos semelhantes, tanto pela minha mãe, quanto pelo pai dele. Mas agora percebo que talvez seja semelhança nossa.

— Eu só estou cansado. Cansado de pessoas babacas como esse ex-namorado da Gisele, como o pai idiota da Helô ou mesmo o otário do Theo - fala e seus olhos descem pelo meu corpo, não como algo malicioso, mas sim como algo contemplador - Estou cansado de não poder fazer nada contra isso.

Encaro bem seu rosto e sua expressão angustiada, antes de tocar meus dedos com os seus. A pele quente dele tocando a textura fria da minha. Não comento sobre a família de Helô, nem como o maldito do Theo foi parar na conversa, mas sei tocar na ferida:

— Você não é um maldito herói, Matheus. Não pode resolver todos os problemas do mundo - aperto sua mão com força - Eu também odeio pessoas que tenham esse jeito doentio. Eu também estou revoltada e queria ajudar todas as garotas que se sentem assim. Mas eu não posso, não todas. Mas eu tenho sororidade e isso não me torna heroína, apenas me torna humana o suficiente pra ver a dor do outro, principalmente a dor de outra mulher. Com isso eu sei que eu não sou uma mulher-maravilha, mas vou ajudar qualquer menina em uma situação difícil com caras babacas, como esses citados por você.

— Anna - sussurra. Fito nossas mãos unidas e fecho os olhos.

— Fazendo sua parte você já está mudando alguma coisa. Salvando alguém. Confie em mim - suspiro - Mas agora você precisa me dizer o que está acontecendo, Stahelin. Para eu poder fazer alguma coisa.

Não preciso ver pra saber que ele assentiu, só o apertar de dedos antes de me soltar já me diz tudo.

— Você quer tomar um café comigo? - seus olhos piscam pra mim com a pergunta nostálgica. A primeira vez que saímos juntos foi pra tomar café, mas em um hospital - Em um cafeteria dessa vez. Eu tenho muita coisa pra contar, Bennet.

***

Ele começa com uma noite de bebedeira em que o discurso machista de um idiota, junto com um pessoal imbecil que só pensa no próprio umbigo, normalizou o estupro de uma menina como se não fosse nada. Daí começaram os problemas dessa história que se alastrava como uma teia de aranha que eu não conseguia encontrar o final.

Cristo.

Como diabos Helena Sanchez virou a porra da Hannah Baker*? Esse povo deveria ler mais.

Meu café fica pela metade e vejo Matheus me observar apreensivo do outro lado da mesa. Pudera, o cara havia feito uma aposta impulsiva e idiota para salvar todo mundo, menos a si mesmo! Minha vontade de dar umas bofetadas na sua cara estava elevada as alturas.

— Ok, você precisa falar alguma coisa - declara - Suas pupilas estão dilatadas e suas bochechas estão coradas, mas não é de um jeito bom. Você está parecendo um explosivo, Branca.

Rio. Realmente gargalho. E fico séria um instante depois.

— Sério, seu idiota? Deve ser porque estou prestes a explodir com você! - resmungo - Caralho, Matheus!

Ele faz uma careta e eu tento raciocinar aos poucos a maluquice da situação. Aquilo era sério e realmente precisávamos de um plano, mas só a possibilidade de importunar Helena depois disso tudo mexia comigo de um jeito estranho. Eu nunca falei com ela, só as vezes a via no colégio e não queria tentar uma conversa com seu psicológico tão abalado desse jeito. Ela demorará pra confiar em alguém, ainda mais em uma desconhecida.

— Me desculpe - murmura - Porra, eu não sabia o que fazer, Anna!

— Mas isso não te dava o direito de mexer nisso desse jeito, Matheus! Não te dava o direito de negociar minha segurança assim, sabe como isso é doentio? - questiono, abismada - Eu não deveria precisar de um acordo pra assegurar que eu não vou ser estuprada por um cara. Eu não deveria ser estuprada de jeito nenhum!

Era inacreditável. Noto alguns olhares na minha direção e tento controlar minha voz.

— Eu sei disso, claro que sei. Eu só não iria suportar que aquele cara fizesse qualquer coisa com você. Céus, Branca! Olha o que eu fiz com a gente no nono ano. Lembre o que eu fiz com você. Não foi por querer e eu nunca irei me perdoar por ter brincando contigo daquele jeito, mas caramba eu não podia deixar aquele cara tentar algo. Não podia! - exclama irritado.

Abro pra boca pra falar, mas me calo no mesmo instante. Aquilo ali era outra coisa, era outra cicatriz. Noto com estranheza que ao me machucar naquela feira de ciências, Matheus também havia feito um ferimento. Um ferimento infectado com culpa.

— Você deveria denúncia-lo. - digo.

Ele revira os olhos com frustração, as mãos bagunçando os fios castanhos do cabelo ainda mais.

— Eu não posso. Não sem provas, não com essas malditas fotos em minha mãos.

Mordo o lábio e engulo o que sobrou do café. Este que estava tão amargo quanto a situação que nos encontrávamos.

— Sobre as fotos... Tem certeza que Theo não tem como divulgá-las? - pergunto.

— Eu estou com as originais, mas não garanto que ele não tenha cópias - responde - Porém, Theo é sádico. Ele gosta de ferrar com aqueles que mexem com ele, então provavelmente ele esperará o tempo que for para me incriminar.

Assinto. Então precisamos saber quem é o fotógrafo misterioso, pois, com acordo ou não, tenho certeza que a trilha dessas fotos levará até Matheus. E depois Theo virá até mim. Cristo, Anna. Um maldito babaca virá até você. Tento pensar em um plano, em algo que possa solucionar todos os nossos problemas, mas seria mais fácil plantar chocolate. Porra!

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— No que está pensando? - Matheus pergunta com um sorriso de canto - Posso ver as engrenagens do seu cérebro se agitando, mas pelo franzir do seu nariz sei que o pensamento não foi tão bom.

Faço uma careta e cubro o rosto com as mãos completamente frustrada.

— Pare de me observar, stalker. - resmungo.

Ele solta uma risada, alivinhando o clima mórbido de alguns momentos atrás. Noto seus olhos irradiarem com um brilho diferente por um momento, o foco do seu olhar recaindo sobre meus lábios.

— Eu não sou stalker, senhorita irritada. Sou observador. E temo que você esteja sendo analisada por mim há muito tempo. - responde, dando de ombros - Você franze o nariz quando está irritada e suas bochechas ruborizam quando você gargalha demais ou pensa em algo indecente. Você sempre me bate com o punho direito, jogando seu corpo todo no ataque... E, inferno Anna, não sei quem foi que te ensinou a lutar, mas morro de medo do que pode acontecer se alguém descobrir a falha que você dá sempre que ataca dessa forma. Ou mesmo o modo como você fica linda atacando...

Reviro os olhos, minhas bochechas malditas ficando rubras exatamente como ele disse que aconteceria.

— Eu não sou uma lutadora profissional, claro que cometo falhas no meu ataque, Matheus - resmungo e começo a circular a xícara vazia com a colher por distração - E se você notou isso há tanto tempo, deveria ter me parado, não? Sempre me perguntei porque você nunca me parou nas vezes em que eu bati em você.

Ele ri, balançando a cabeça em descrença.

— Você realmente acha que algum dia eu pararia? Ou mesmo revidaria seus tapas? - murmura encarando o movimento circular do minha mão com a colher, minha pele se arrepia - Cristo, Anna! No dia em que eu tocar em você pra você parar de me bater, será com sua permissão. Além disso, em compensação, irei fazer coisas bem melhores depois.

A piscadela que ele dá e o leve provocar de lábios me desestabiliza por um momento.

— Mas para isso, ainda tenho mistérios sobre você pra desvendar, não é? - pergunta com uma expressão de curiosidade - Você acha mesmo que tem tanto a esconder, Anna Clara Bennet?

Estou prestes a levantar e meus lábios se abrem em um indício de sorriso pela pergunta.

— Talvez, Matheus Stahelin. Talvez.

Ele sorri como se aquilo já fosse um esquema misterioso nosso, mas alguém segura meu braço e eu noto sua expressão se transformar em surpresa por um momento. Viro-me para observar o corpo magro e esguio que sustenta o rosto com poucas, porém suficientes, semelhanças comigo.

— Anna! Mais que surpresa maravilhosa! - exclama meu pai e encara Matheus com a sobrancelha arqueada - E você deve ser o Matheus, não é? Minha filha falou que estava te ajudando... Com um trabalho de classe.

Matheus arregala os olhos esverdeados e se levanta com um sorriso confiante.

— É um prazer conhecê-lo apropriadamente, senhor Bennet. - ele lança um olhar malicioso pra mim (que ele não deveria ter em um momento como esse!) - Realmente a Anna está me ajudando muito. Em muitas coisas.

— Eu espero que esse trabalho não envolva garotos. - responde meu pai.

O sorriso de Matheus estremece e eu seguro a risada. Lembro-me do feriado em que eu saí da casa da minha tia parar ajudar ele a estudar, contando alguma coisa sobre ele ser homossexual assumido. Ah, meu Deus.

Eu acho que eu não entendi - Matheus olha pra mim e eu dou um sorrisinho querendo gargalhar. Nunca uma mentira foi tão boa.

— Ora, rapaz, já está na hora de minha filha arranjar um namorado, sabe? Pegar alguém, ter um daqueles negócios de crushes...

— Pai! - exclamo.

— Já que agora você está ajudando ela, bem que você podia desenrolar algum carinha, não é? Alguém respeitável. - Meu pai puxa as bochechas do meu "aluno" - Se você não estiver ficando com eles, claro.

Matheus engasga e eu arregalo os olhos para meu progenitor.

— Ficando com eles? - balbucia um Matheus aturdido e me encara. Não consigo conter a gargalhada.

Meu pai também olha pra mim. O olhar atento capturando minha expressão.

— Falei alguma coisa errada, Clarinha? - pergunta ele.

Rio e abraco meu pai para ele se recuperar do choque.

— Ele pensa que você é gay - respondo pra Matheus, dando de ombros - Que nem o meu amigo Ibi.

— Mas eu não sou! - exclama Matheus. Ele ainda encarava meu pai como se pudesse voltar no tempo e começar uma conversa melhor.

— Claro que é! - Meu pai fala antes de mim e sorri amigavelmente - Minha filha falou que você é super gay, Matheus. Mas não se preocupe, eu não tenho nenhum problema com isso, acho até horrível os preconceitos dessa sociedade conservadora que não se abre para outras variedades, sabe? Você tem totalmente o meu apoio.

— Senhor Bennet...

— Thiago! - meu pai interrompe e lhe lança uma piscadela - Pode me chamar de Thiago, rapaz. Estamos todos entre amigos aqui.

Matheus coça a nuca, claramente desconfortável com a situação. Noto que com o movimento sua camisa do colégio levanta um pouco, expondo a pele dourada do seu abdômen e imediatamente reviro os olhos. Mas que merda está acontecendo comigo?

— Thiago, não sei bem como posso te esclarecer isso - fala cuidadosamente Matheus - Mas eu sou hétero. Acho que houve um engano, a Anna... - ele me encara com o olhar sacana - Bom, ela pode ter se enganado quando falou isso. Até porque ela sabe com 100% de certeza que eu gosto de garotas.

— Sei? - balbucio e noto meu pai segurar com mais força minha cintura. Volto-me para seu rosto confuso.

— Você está ficando com minha garota, Matheus? - pergunta.

Arregalo os olhos e noto abismada Matheus abrir um sorriso malicioso em resposta. O olhar recaindo sobre mim como se eu fosse uma musa. Por favor, não faça o que eu estou pensando. Por favor, não faça...

— Eu bem que gostaria.

Merda.

Em um instante, Thiago Bennet se anima como se tivesse ligado na tomada, pegando meu parceiro de dança pelos ombros e o abraçando amigavelmente. Um "bem que eu queria" para a mente do meu pai já é um grande passo e ele me coloca no seu abraço junto com Matheus como se nós fôssemos seu novo casal favorito.

— Ah, que maravilhoso, Clara! Sua mãe se animaria tanto se soubesse disso, ela sempre quis que você encontrasse alguém bom e amoroso - ele solta Matheus, este que está completamente assustado, e o encara: - Você é amoroso, não é rapaz?

— Sim, eu acho - responde ele.

— Ótimo! Então planejaremos um jantar entre as famílias e logo você pode fazer o pedido.

Cristo, meu pai surtou!

Matheus me encara aturdido, como se ele não fizesse ideia de como essa coisa maluca se desenrolou, mas antes que ele possa argumentar, meu pai nos solta com uma despedida apressada, pois tinha que voltar pra terminar o expediente no trabalho. Um momento se passa e nos entreolhamos em silêncio, antes de ele abrir um sorriso que dá início ao uma risada mútua entre nós.

— O que diabos aconteceu aqui? - ri e eu não consigo deixar de rir também, apesar de achar que aquilo iria formar uma grande bola de neve.

— Você tem que ter cuidado com as palavras que diz ao meu pai, seu idiota - falo rindo - Ia ser bem melhor se ele achasse que você era gay, sabia?

Ele faz uma careta e caminhamos até o caixa para pagarmos nossas contas. Pago primeiro e estou esperando o troco quando sinto sua respiração em meu ouvido.

— Mas eu fui sincero em tudo que falei. Você sabe disso, não sabe? - sussurra.

— Matheus...

Ele termina de pagar também e nós saímos do estabelecimento.

— Eu ainda vou desvendar seus mistérios, Branca. Você verá - responde com um meio sorriso e, inesperadamente, inclina-se pra beijar minha bochecha - Até amanhã.

Olho ele caminhar rapidamente pela calçada para pegar o ônibus que vem vindo e penso sobre essa sensação que estou sentindo. Ninguém nunca esteve disposto a descobrir mais sobre mim desse jeito e, enquanto uma parte minha teme e desencoraja essa atitude, outra parte sente um desejo desconhecido que insiste para que eu aceite esse contato diferente. Para que eu aceite essa investigação.

A verdade era, talvez (só talvez), eu realmente estivesse gostando de Matheus. Era claro. Apesar de tudo que ele me fez, apesar de todas as circunstâncias infelizes que nos juntou, eu estava simpatizando com o cara de olhos verdes e sorriso descarado que escondia cicatrizes dentro de si com um cadeado. A outra verdade era que isso tudo era uma merda e eu pressentia que estava chegando a hora em que tudo daria totalmente errado.

Céus, onde foi que eu me meti?