Shiver
The Hound
Seu corpo se arqueou em um acordar apavorado. Sentia as cordas amarrando seu corpo, pulsos e pernas, até mesmo seu pescoço. Seus olhos abriram-se no desespero, e a visão se ajustou surpreendentemente rápido. Estava em um quarto de madeira, provavelmente um chalé. Sua cama era desconfortável e Miku tinha uma imensa dificuldade para conseguir respirar normalmente.
– Acalme-se. – uma voz familiar soou no canto do quarto, fazendo com que ela olhasse. – As cordas são só uma medida precavida. Vamos soltá-la assim que tivermos certeza que o incidente da noite passada não irá se repetir.
O doutor que a atendera no hospital estava ali, no canto, servindo-se calmamente com uma xícara cheia de café.
– O que estou fazendo aqui? O que aconteceu? Dá pra me soltar logo?! – ela exclamou, se debatendo dentro das amarras.
– Já falei para se acalmar; pânico não é seu amigo. – ele se recostou na cômoda velha, arrumando os óculos sobre o rosto e bebendo o café, convencionalmente.
Miku respirou fundo, tentando realmente se acalmar.
– Estou bem, viu? Calma como uma ovelha. Por favor, tire essas amarras e me diga o que diabos está acontecendo!
– Miku, relaxe. – a voz de Luka soou no recinto, quando ela entrou pela porta. – Isso é pro seu próprio bem!
– Luka? O que está fazendo daqui? Me solte logo! – Miku exclamou, tentando se soltar pela força bruta. Surpreendentemente, ela conseguiu ouvir as cordas se estourando um pouco.
Luka olhou para o médico, procurando por ajuda. O homem deu de ombros, e Luka correu para a irmã, tirando um canivete suíço do bolso. Cortou as amarras e Miku pulou para se sentar. Seus pulsos doloridos ardiam, assim como seus tornozelos e pescoço.
Gakupo entrou no quarto, e fechou a porta atrás de si.
– Teve uma transformação difícil, Miku. – ele riu como se estivesse contando um caso engraçado. – Mais difícil até que a do Kaito, surpreendentemente. – o homem de cabelos longos foi até o pé de sua cama e bateu amigavelmente nas costas de Kaito. Miku estremeceu, só agora havia percebido que ele estava lá.
– Correu até chegar perto de Atlanta. – o doutor se pronunciou aproximando do grupo. Se não estava enganada, seu nome era Kyioteru. – Deu um problema e tanto se metendo numa briga com o Alfa de lá.
Mesmo que todos falassem com ela, Miku não conseguia tirar os olhos de Kaito. Sua presença era ao mesmo tempo agradável e incômoda, e não ajudava quando ele não parava de olhar para ela também. Fez-se o silêncio, e só então ela percebeu que esperavam pela sua resposta.
– O que? – se virou para Kyioteru e Luka, depois para Gakupo, evitando olhar para Kaito. – Alfa? Briga? Transformação? Do que vocês estão falando?
Gakupo suspirou, olhando para cima.
– Que ótimo, ela não lembra! – ele bateu palmas em uma falsa animação, e olhou ao redor.
– Dá pra alguém me falar que lugar é esse e o que eu estou fazendo aqui?!
O médico suspirou, sentando na cama pacientemente.
– Você estava certa, Hatsune. Não foi atacada por um urso. Foi atacada por um lobo; um lobisomem.
Miku riu da piada.
– Eu estava falando sério, doutor Kyioteru. Mas ótima piada, sabe, pra descontrair. – ela tentou se levantar sozinha, mas uma dor em todo seu corpo a contrariou.
– Ele está falando sério. – Luka se curvou e segurou a irmã pelos ombros. – Tente se lembrar de ontem.
Imagens estranhas vinham à sua mente, sobre animais lupinos enormes, pessoas e sim, uma briga. Mas para ela, aquilo havia sido nada mais além de um sonho.
– Aquilo foi real?! – ela exclamou assustada, cobrindo a boca com as mãos.
Dessa vez, quem a respondeu foi Kaito.
– Cada parte. – um sorriso preguiçoso estampou seu rosto, e seus olhos eram incisivos como facas. – Como dito, você se meteu numa briga com outro Alfa, e isso não foi muito bom. Basicamente, você está marcada por uma alcateia inteira.
– Kaito! – Kyioteru repreendeu, cruzando os braços.
– Ela ia saber mais cedo ou mais tarde. Vocês só estão enrolando, e ela não me parece ser o tipo de mulher que goste de enrolação. – ele se distanciou um pouco, se apoiando na porta.
Miku estremeceu. Mal sabia o que estava acontecendo e agora estava marcada?
– Miku, calma! Não é bem assim! O Alfa daqui já está se acertando com o outro, e vai dar certo! – Luka tentou acalmá-la, mas não iria funcionar.
– O que aconteceu comigo? – ela conteve as lágrimas que se acumularam em seus olhos, mas a voz ainda saiu abatida. – Lobisomem? Vocês falaram algo sobre lobisomens.
Gakupo suspirou. Olhou-a bem, e tinha pena em seus olhos.
– Algumas pessoas nascem predestinadas a fazerem ou serem coisas. Às vezes é só uma coincidência infeliz e fim. Você e Luka foram escolhidas para isso antes mesmo de nascerem. A verdade é que ninguém realmente sabe se é uma questão gênica ou só de sorte. Mas a Lua escolheu as duas, e é tudo que podemos dizer.
Suas mãos foram automaticamente para o medalhão em seu pescoço.
– Tem a ver com isso, não tem? – ela jogou as pernas para fora da cama, as balançando enquanto esperava a resposta.
Gakupo assentiu com a cabeça, puxando para fora um medalhão parecido com o dela, só que esse parecia muito mais velho.
– Mas esse totem não te transformou em lobo. Você nasceu com o corpo pronto para recebê-lo, mas só o terá quando outro lobo decidir compartilhá-lo com você.
– E ele compartilhou...?
– Quase te matando. – Kaito tirou uma carteira de Marlboro do bolso e acendendo um cigarro. – É assim que funciona.
– Então foi aquele lobo escuro que me atacou na floresta! Quem é ele?
Todos trocaram olhares preocupados, e ela percebeu que não receberia a resposta deles.
– Não é bom dizer para um recém-transformado quem o criou. – Kyioteru colocou sua xícara sobre o parapeito de uma janela de madeira fechada, não olhando para ela.
– Porque não?
– Existem duas hipóteses do que acontece: gratidão extrema ou ressentimento extremo. Nenhum deles em excesso é algo bom, então deixamos para que descubram sozinhos, ao tempo certo. Maturidade sim, nunca é demais.
Ela suspirou, encolhendo os ombros e fitando o chão.
– Quero ir pra casa. – foi tudo que conseguiu dizer. Era muito para digerir em pouquíssimo tempo. Queria ficar sozinha, ouvir música e esvaziar a mente.
Luka sorriu. A ajudou a se levantar e a abraçou.
– Vai ficar tudo bem. Você vai ver.
☸
Afundada em edredons vinho, Miku não queria pensar. Seu corpo pesava em seu próprio eixo, e soltava suspiros em intervalos de tempo precisos. As quatro caixas de som cinza-negradas, posicionadas em vários pontos do quarto, reproduziam Summertime Sadness, e ela murmurava à tonalidade.
Seus olhos alcançavam as janelas abertas, soprando para dentro o vento frio, balançando as cortinas de pano. O celular dentro das cobertas vibrou e ela estremeceu. O agarrou com pressa.
– Sim? – sua voz saiu triste e solitária, tentando fracamente se sobressair à música.
– Onde está a minha flor mais linda? – a voz de Rin saiu pela linha, animada como sempre. – Não tive mais notícias suas depois daquele ataque de urso. Se estiver se sentindo bem, poderíamos ir ao FH, o que acha?
Miku respirou fundo, checando o horário em seu relógio de pulso. FH, sigla para Four Hounds era um bar pequeno e agradável, no subúrbio de Moultrie. As duas o adoravam, iam lá quase duas vezes por semana desde que Miku havia se mudado para a América.
– Porque não? Preciso mesmo beber. – saiu da cama e esticou as costas. Procurou algo para vestir no guarda-roupa enquanto Rin ria do outro lado.
– Uma hora é o bastante para você se arrumar?
– Perfeito. Seja pontual.
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