Alguns meses antes...

O braço. Havia algo de errado com ele. Estava inerte, como se algo o prendesse e embora se esforçasse para mexer os dedos, o formigar por baixo da pele era insuportável e foi então que percebeu que ela não poderia movê-lo até que despertasse completamente.

Rolou, sentindo a mão que não estava adormecida acariciar algo macio. Seus dedos finos e pálidos reconheceram a textura e só então abriu os olhos, entre o emaranhado de fios castanhos que encobriam sua face, para contemplar os cachos louros curtos espalhados como uma aréola ao redor da cabeça do namorado. Sentiu as falanges correrem o couro cabeludo do rapaz e já nem se incomodava com o seu outro braço quando ele também despertou. O olhar castanho a observando por trás dos fios longos dos cílios, as pálpebras ainda pesadas do sono o deixavam com uma feição preguiçosa e embora ainda parecesse sonhar, ele sorriu.

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– Oi, gatinha.

A voz de Hector era doce e sacana: Uma mistura antagônica, mas um tanto surpreendente. Estava rouca pelo sono e mais uma vez ao ouvi-la os pelos do braço da garota se eriçaram, sentindo o efeito que o louro causava sobre si. Ele se demorava na pausa entre o piscar e outro e o sorriso continuava aberto, embora fraco. Convidativo, embora desdenhoso.

– Oi. – balbuciou.

Acariciava as mechas louras do rapaz na mesma medida em que seus corpos se aproximavam. Hector suspendeu o pescoço permitindo que a garota recolhesse o braço que já dava poucos, mas válidos, sinais de que não estava mais dormente. Agarrou-a pela cintura e aproximou os seus lábios em um encostar rápido, apenas um breve selinho, para logo depois a garota escorregar da cama, pegando as roupas no chão para cobrir o corpo pálido.

Hector não foi capaz de se levantar, apenas olhou a menina se vestir, a blusa comportada tampando os seios quase expostos pelo sutiã rosado e a calça passando pelas pernas elegantes e vestindo-as.

– Ana Luisa. Aninha. – chamou-a manhoso, passando a mão grande pelo espaço que ela acabara de deixar vago.

– Não inventa, não posso ficar hoje. – respondeu enquanto colocava o relógio no pulso e aproveitava para olhar as horas – Precisamos terminar os preparativos para as boas-vindas.

Hector grunhiu, deixando claro seu desgosto com aquela idéia.

– Porque tivemos que ficar com isso? A organização dessa festa?

A garota sentou na cama, dessa vez deixando que os dedos passeassem pelas bochechas do namorado. Aos poucos, as feições débeis embebidas pelo sono ficaram mais espertas.

– Porque somos A Realeza. O Topo. – Ana Luisa respondeu.

É fácil reconhecer um brilho de satisfação no olhar quando o vemos e foi esse que passara pelos olhos de Hector. A excitação de pertencer à elite da Beira Quintino, o maior colégio da região, tomou conta de seu corpo e se pegássemos um conta-gotas seria facílimo remover o veneno de víbora que escorreu pelo canto de sua boca quando seus lábios se converteram em um sorriso carregado de escárnio. Todos dariam tudo para estar no lugar dele: o camarote. Olhando de cima, do topo, as humilhações a que se prestavam o resto do corpo estudantil para mendigar-lhes o mínimo de atenção, como se pertencer ao império que eles mesmos criaram fosse a última coisa a se fazer antes de morrer.

Onipotentes. Carregavam o brasão dos deuses no peito e a mente maligna do diabo na cabeça. Caçoavam, debochavam, humilhavam. Tudo em prol de sua autopromoção. Eram cinco, sendo três homens e duas mulheres. Eram seguidos e vigiados de perto, sempre juntos e despertando a inveja. Qualquer garota da Beira Quintino gostaria de ser vista com Hector Munhoz, assim como qualquer garoto gostaria de socar-lhe a cara ao vê-lo se sentir tão superior enquanto desfilava de braços dados com Ana Luisa Áquila, exibindo-a como um troféu.

– Somos o topo. – ele repetiu sorrindo, mas algo ainda o incomodava. Se ele era da Elite, o que estava perturbando tanto ao saber que as suas aulas estavam prestes a começar?

Olhou para a parede branca, como todo o seu quarto, e viu-a nua. Os troféus nas prateleiras estraçalhados no chão... e a carta... a carta de Oxford que antes se encontrava emoldurada e pregada a parede como se fosse uma santa...

– Ele me paga – rugiu, sentindo os olhos apertarem e ficarem quentes.

Sua namorada ficou quieta, tomando o cuidado de tirar a mão das bochechas quentes dele. Então, vendo que ele teria outro ataque de fúria, recolheu seu celular e colocou-o no bolso do jeans. Não se despediu, não precisava. A essa altura, Hector já estava cego e surdo, apenas guiado pelos instintos mais malignos que se afloravam dentro de si, que gritavam por “justiça à sua maneira”, e não ouviria nada que ela dissesse.

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– Aquele viadinho me paga – foi a última coisa que ela ouviu-o gritar, já possesso, quando fechou a porta e fugiu, nem que fosse por um momento, da pressão de ser da Realeza.

Ariel ergueu o olhar cansado da tela do computador, ou então os seus olhos ficariam se desviando para data e hora que diminuíam a cada dia a sua distância do Inferno.

– O que ele pode fazer com você? – Joana, sua irmã mais nova, perguntava – Se ele te matar ele vai preso. Os pais dele têm dinheiro, mas os nossos também.

O menino somente ria de toda a desinformação da menina. Ela ainda não havia chegado ao ensino médio até aquele ano, não percebia o impacto que a corja manipuladora de Hector Munhoz detinha dobre a vida dos primeiranista, seguntanistas e terceiranistas e tudo só piorava se você fosse da pior parte daquela hierarquia. Se você fosse um nerd.

Para o azar de Ariel era lá mesmo que se encontrava: na base da pirâmide.

Suspirou, coçando os olhos e por fim desligou o computador fitando nenhum ponto especial em seu quarto escuro e solitário. Não ouvia ruído algum, a não ser as folhas baterem em sua janela por causa do vento forte, fazendo sombras que se moviam sorrateiramente no cômodo assim como os pensamentos inquietantes que o circundavam. Nada poderia estar tão fora dos planos do rapaz quanto continuar estudando na Beira Quintino. Detestava a ditadura implícita imposta pelos populares e toda sua corja.

Ouviu batidas em sua porta no momento em que deslizou para baixo dos cobertores. Joana entrou sem esperar que o irmão respondesse, embrulhada em seu edredom e se aconchegou ao lado do mais velho.

– Estou nervosa. – murmurou abafado.

– Nervosa? – Ariel riu – E o motivo seria...?

– Ensino médio. – suspirou – Tenho medo da cobrança.

De todos os males aquele seria o menor, Ariel quis dizer. Restringiu-se a expirar o ar preso em seus pulmões e acariciou o cabelo da irmã caçula.

– Jô, a essa altura você deve saber que o “seja você mesma” não vai funcionar naquele lugar. Olhe para mim: Boletim? Notas acima de 8,5. Ocorrências na diretoria? Zero. – ele olhou para irmã – aluno perfeito não é? – a menina assentiu, mas ele negou – Não na Beira Quintino. O aluno perfeito... você com certeza já ouviu falar dele: Hector Munhoz. Eu sou só um nerd com um potencial imenso de ser vítima de um assassinato no primeiro dia de aula.

Sim, a menina já ouvira falar dele. Na verdade, toda as suas amigas despejavam informações desnecessárias sobre ele e cada segundo que passava. Sabia que era louro de cabelos ondulados em pequenos cachos desconfigurados postados no alto na cabeça e que era forte, alto e musculoso. Nunca chegara perto o suficiente para saber a verdade, mas agora que era uma primeiranista e suas aulas aconteceriam no mesmo prédio que ele, sentia um descompassar leve de sua confiança devido a todas as histórias ouvidas.

– Só... não se perca. A popularidade pode parecer tudo no momento em que você atravessar os portões do Módulo Dois, mas não deixe que essa ideia fútil te suba à cabeça.

– Então me diga, - Joana quis mudar de assunto - o que você vai fazer esse ano como atividade extra?

– Pretendo ser o mais discreto possível. – riu baixo – Fui escalado para a monitoria. Peguei física com o Deco. Ele vai ficar com uma metade da semana e eu com a outra. O que você colocou na matrícula?

– Mamãe me convenceu a entrar no time de basquete. Papai não gostou muito disso, falou que os horários vão ser sufocantes e que vou me dispersar da igreja. – a menina se encolheu.

– O papai não tem limites.

– Para ele é uma questão de fé.

– Acho que é muito fanatismo. – Ariel revirou os olhos ainda que Joana não pudesse ver. Ela se colocou ainda mais perto do irmão, seu porto seguro, e ele a abraçou fazendo-a se sentir protegida.

– Conheci a treinadora, ela me explicou a escala, como seriam os horários de treino e coisas do tipo. Disse que teríamos algumas aulas junto com o terceiro ano.

– Intercolegial?

– Ela disse que, provavelmente, somente o segundo ano.

– Interclasse? – Ariel ergueu a sobrancelha grossa.

– Sim, ficamos com este.

– Não quero confusão para você, Jô, mas se for possível, faça um favor para mim? – Ariel sorriu maldoso. – E seja discreta.

Ela levantou a cabeça, o olhando com os olhos grandes e negros, com as sombras dançando em sua face alva. Seus olhos já pesavam, mas ela não se incomodou em ouvir o último pedido do irmão antes de dormir.

– Acerte com a bola a cabeça de Pilar Noronha e... – ele respirou fundo – Ana Luisa Áquila para mim.

– Vou sentir falta do Hec na mesma sala. – Nicolas lamentou enquanto segurava a sua namorada pela cintura.

Pilar Noronha fez pouco caso, ajeitando a cascata de cachos negros para um só lado do ombro. A pele cor de ébano era iluminada ainda pela luz débil da TV ligada em qualquer canal só como plano de fundo. Fez uma careta de desaprovação para a fala do namorado. Sentir falta? Como alguém com tamanha inteligência poderia pensar tão pequeno?

Aquela era a chance deles, afinal.

– Talvez – ela disse, deixando que seus dedos macios acariciassem a nuca do rapaz.

– Estou imaginando como será amanhã sem ele... Cara, que merda. – Nicolas balançou a cabeça – as aulas da professora Luciana vão ficar extremamente sem graça. – do lamento, sua expressão passou para raiva rapidamente, Pilar notou - Deveriam fazer alguma coisa com aquele filho da...

– Menos, docinho – a morena riu – Ele não foi esperto o suficiente. Seria pego de algum jeito ou de outro. Fazendo uma coisa ou outra. – frisou.

– Não posso acreditar em sua frieza, Pilar. Não esqueça que nessa outra coisa eu estava com ele.

Pilar revirou os olhos. Nicolas era tão infantil e sensível que as vezes que nem acreditava em sua fama de brutamontes da Beira Quintino. Levantou-se somente para passar as pernas em volta do tronco do seu namorado, o prendendo entre as almofadas do sofá e seus seios volumosos. Nicolas acariciou sua perna, inclinando o rosto para beijá-la, mas ela não permitiu.

– Pode ser a nossa chance – sussurrou – Com o Hector no segundo ano pode ser a sua chance de se tornar o mais popular.

Um lampejo no cérebro de Nicolas o acordou. Pilar não estava falando de amizade... Ah, não! Como ele pode pensar que ela estaria pensando da forma mais leal possível? Ela estava falando de trapaça, de aproveitamento, de sucesso à custa dos outros.

– Não seja estúpida!

– Estúpida? Estou sendo mais esperta que o Hector, isso sim – se fez de ofendida – Nós somos meros coadjuvantes do Império, Nick. Podemos ser os protagonistas. Pilar Noronha e Nicolas Garcia no topo.

As palavras mexeram com a mente fraca do rapaz, não poderia negar, mas a lealdade de uma verdadeira amizade, por mais imbecil e egoísta que fosse Hector Munhoz, era difícil se encontrar em qualquer esquina. Ele não se aproveitaria, de forma alguma.

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– Deixe de pensar essas bobagens... Vamos aproveitar. – Nick se inclinou novamente, mas as mãos pequenas de Pilar o barraram negando novamente um beijo.

– Nós agora somos terceiro ano, temos uma soberania maior. Enquanto Hector... Ele continua sendo um segundanista – Pilar debochou – Você vai ver até onde o poder dele vai desse jeito. Nós vamos liderar, Nick. Mandar e desmandar naquela escola como se fôssemos donos, ter tudo na palma da nossa mão. Hector pode continuar com a gente, mas os holofotes vão se virar para nós dois.

– E quanto a Aninha? – Nick perguntou. Estava ansioso para acabar com a conversa e agarrar a namorada.

– Continuará lambendo os pés do Hector – Pilar revirou os olhos, impaciente – Ela só está lá por causa dele.

Ambos sabiam que aquilo não era verdade. Ana Luisa havia conquistado o poder com a beleza e a liderança, mas era mais fácil para Pilar aceitar que ela só estava ali por namorar a pessoa mais popular da Beira Quintino. Ela não conseguiria competir sabendo que o motivo de Ana Luisa estar lá ia muito além dos privilégios de um cargo de namorada.

Nick iria protestar, mas Pilar o beijou e calou a sua boca. O veneno aos poucos entorpecia os sentidos do rapaz e ele já se deixara levar pelas palavras da namorada. Além da saliva, a substância tóxica estava presente lá. A língua de Pilar fazia o papel de presas, ela não estava só o beijando, ela estava moldando-o, envenenando-o. Não precisava uma boa visão para ver aquilo brilhar... Lá. Isso. Nos cantos da boca. Se pegássemos um frasquinho, coletaríamos a pior peçonha já vista.