Desejo e Reparação

IV - Capítulo 40: O legado do sangue


Parte IV

{Sobre a loucura, o amor e a guerra}

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Capítulo 40: O legado do sangue

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– Draco – falou ela, com sua voz açucarada –, você me parece estar negligenciando suas tarefas.

Dolores fez uma breve pausa, como se esperasse que ele tivesse um bom argumento para convencê-la de que não tinha culpa daquilo que lhe acusava. Contudo, ele não tinha nada para lhe dizer. Estava, de fato, se esforçando para negligenciar os deveres que ela lhe impunha por dois motivos. Primeiro, estava muito ocupado descobrindo os prazeres do corpo. Segundo, estava ainda mais ocupado lendo livros que tinham centenas de anos, procurando uma forma de se proteger de feitiços mentais.

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– Percebi que o Potter e os seus amigos estão faltando aos almoços periodicamente – continuou ela. Houve outra pausa, na qual ela levou a xícara com chá aos lábios e sorveu um pouco do líquido e Draco se obrigou a fazer o mesmo, contendo uma careta. – Quão peculiar é isto, pensei. Talvez, eles estivessem apenas usando o tempo livre para estudarem, praticarem algum esporte ou namorem, porém, vindo do Potter, o Ministro advertiu que eu deveria esperar confusão – sorriu ela com aqueles seus lábios pintados de róseo.

Toda vez que Draco precisava adentrar aos aposentos dela, sentia náuseas fortes devido à quantidade de tonalidades de rosa espalhadas pela superfície de todo objeto. Era uma surpresa que o gato dela não fosse, também, rosa pastel cor-de-vômito.

– Ele e seus amigos não gostam de minhas novas regras, não compreendem que tudo o que faço é pensando no bem estar e na segurança deles – disse num tom falsamente melancólico. – Não ficaria surpresa ao saber que planejam algo audacioso para desafiar meu poder na escola e para devolver o controle dela àquele velhaco!

Draco concordou, quietamente. Não percebera nada de diferente no comportamento do trio, exceto o fato de Hermione estar cada vez mais fora de si e a crescente preocupação de seus amigos.

– Preciso que descubra o que estão tramando! Mas o faça de forma sutil, eles não podem desconfiar que sabemos de algo.

– Farei isto – disse ele.

Verdade seja dita, ele não sentia o menor prazer nisso.

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Draco jogou a alça da bolsa sobre o ombro e terminou de descer a escada, dois degraus de cada vez.

Seria complicado investigar as andanças do trio sem que Hermione percebesse, visto que, ultimamente, ela passara a fazer parte integral de seu cotidiano. Além disso, ela parecia saber decifrá-lo, assim como ele sabia quando algo estava errado com ela ou quando ela estava irradiando felicidade por ter se encontrado com Blaise para um passeio romântico.

Ela não poderia saber, jamais, que ele estava planejando entregar os seus amigos para Dolores. A mulher iria torturá-los, manchar suas mãos de sangue, como fazia com outros alunos da escola, como fizera com o Blaise e o Potter; e ela machucaria Hermione duas vezes, para fazê-la pagar por um crime que cometera e por outro do qual não tinha culpa – nascer como trouxa.

Passou a mão pelo cabelo, bagunçando-o, sentindo-se preso numa caixa apertada demais para caber o tamanho do seu corpo, e havia ainda um desconforto na extremidade da barriga, como se alguém o tivesse chutado forte ali, e um zumbido agudo nos ouvidos.

Ele iria acabar como o grande culpado de toda a história, apesar de ter sido Dolores a causar todo o mal ao Trio & Cia. No entanto, não seria ele o responsável por trair o segredo deles? Ele sabia muito bem o que ocasionaria, tinha tanta culpa quanto aquela cuja mão controlava a arma. Poderia ver os olhos castanhos de Hermione, antes calorosos, o encarando, frívolos, acusando-o de todas as coisas terríveis que fizera.

Nesse momento, algo estranho aconteceu.

Os olhos eram os de Hermione, mas as feições eram mais duras e muito parecidas com as suas próprias. Era um jovem de cabelos loiros que lhe encarava, enquanto dois homens em vestes negras o seguravam pelos braços, tentando contê-lo, mesmo que ele não fizesse menção de fugir.

As roupas dele estavam rasgadas e sujas com terra e com sangue, assim como o seu rosto, que deveria ser muito bonito, se não fosse pelos longos cortes em suas bochechas.

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Draco sabia, sem que precisasse dizê-lo, que aquele na sua frente era o seu filho, quem carregaria o legado de sua vergonhosa família como um peso nas costas e marcas no corpo. O jovem não lhe chamaria jamais pelo nome nem de pai novamente. Ele o odiava, por tantos motivos diferentes...

Draco fez um movimento, e os comensais jogaram o jovem numa pequena saleta imunda, onde ele ficaria preso e seria torturado. Com outro movimento sutil, indicou que os homens deveriam sair. Quando a porta fechou-se atrás de si, virou para encarar o filho, sentindo a culpa acumulada por todos aqueles anos o sufocando.

Tudo aquilo poderia ter sido tão diferente, se ele ao menos tivesse cedido...

– Irá me matar como fez com a minha mãe? – cuspiu o garoto. Ele estava tenso, os olhos semicerrados, a expressão era um misto de raiva e de decepção.

– As coisas não são tão simples quanto você pensa, Scorpius. – Draco suspirou e começou a andar ao redor do pequeno quarto, porque se sentia eufórico demais para se manter parado. Mesmo depois de todos aqueles anos em que aprendera a disciplinar suas emoções, ao ponto de pensar que seria incapaz de sentir qualquer outra coisa que não fosse uma frieza calculista novamente; ali estava ele, encurralado naquele lugar, sentindo-se como um adolescente nervoso, que não encontra as palavras corretas para dizer o que precisa. – Eu não a matei a sangue frio. Eu não queria tê-lo feito, juro que tentei salvá-la, mas... Nós dois acabaríamos mortos se eu tentasse algo.

– Ou você foi covarde demais para tentar salvá-la! Se você realmente se importou com ela um dia, como ela dizia, teria feito o que fosse necessário para salvá-la!

– Eu teria, se ela me deixasse... – abaixou a cabeça e fechou os olhos, tentando evitar a última lembrança que tinha da mulher que amava. Ela estava tão pálida e gelada... – Nós fizemos um juramento, há muito tempo, antes de... Antes de escolhermos seguir caminhos diferentes. Se eu quebrasse o juramento, iria morrer, e isto nada a ajudaria.

– Eu não me importo com o que teria acontecido! Você merecia morrer no lugar dela, ela era uma pessoa muito melhor do que você jamais será!

Ele falava de forma firme, mas era possível escutar a tristeza em sua voz, o quão próximo estava de desabar. Ele perdera tudo. Exatamente como Draco.

– Scorpius – aproximou-se dele para tocar-lhe o ombro, mas este se afastou rápido, como se o toque do pai fosse feito de chamas ardentes.

– Não me chame pelo nome, você não tem o direito! Nem me toque, suas mãos são imundas!

Draco recuou um passo, atingido pelas palavras que sempre soubera que seriam as únicas que o filho tinha para lhe dizer.

– Eu sei que não sou o exemplo de pai, mas, acredite em mim quando o digo, quero o ajudar a sair daqui. – Antes que Scorpius tivesse a oportunidade de contradizê-lo, completou – É isto o que Hermione queria. Ela sabia que você faria alguma besteira que terminaria por matá-lo, por isso me fez prometer que eu iria salvá-lo.

Scorpius riu em escárnio, um som muito familiar com aquele que só Draco sabia fazer.

– Depois que a matou, ficou com peso na consciência, foi? Você acha que pode reparar tudo o que causou, acha que eu poderia perdoá-lo porque, agora, quer me ajudar? Onde estava você quando mais precisei, pai? – falou com a voz carregada de ira misturada a sarcasmo. – Onde estava você quando Harry foi assassinado? Ah, quase me esqueci, foi você que encontrou a nossa localização e nos entregou a ele! Você assassinou todas as pessoas que eu amava e conhecia! Eu jamais esqueceria isto!

Nem Draco se esqueceria de cada morte que causara. E por quê? O que ganhara com isto? Nada, exceto uma dor amarga que jamais deixaria a sua alma.

– Eu não posso reparar todos os meus erros, pois, depois de tirá-lo daqui, não haverá muito mais tempo para que eu tente o fazer. Mas isto não muda o fato de que eu sinto muito, meu filho, por tudo que causei a você e a sua mãe.

Scorpius cuspiu sangue e saliva aos seus pés.

– De que me serve seu ressentimento? É muito fácil pedir desculpas depois que todo o estrago já está feito e não existe mais jeito de concertá-lo, quando todas as pessoas que você conhecia estão mortas ou loucas! Mesmo que eu consiga escapar, não há mais nada para mim lá fora! Você e o seu lorde ganharam, não existe mais resistência, o mundo é de vocês para transformá-lo num inferno!

– Eu irei reparar isto, prometo. Eu lhe darei um mundo no qual poderá viver em paz, meu filho.

– Não me chame assim! – gritou ele, encarando-o com tanto desprezo, que Draco sentiu a súbita vontade de encolher-se.

Draco suspirou, infeliz, olhou uma última vez para o seu filho e virou-se.

– Eu voltarei, em breve. Prepare-se.

– Você não me escutou? Não me importo mais, não resta nada mais do mundo! Eu estarei melhor morto!

Draco saiu, fechando a porta atrás de si. Respirou fundo e preparou-se para fazer algo que deveria ter feito há anos, quando ainda havia esperança naquele mundo.

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Ao despertar para a realidade, Draco estava desnorteado, tonto, incerto sobre quem realmente era, onde estava e em que tempo estava. Sentou-se no chão, escorado numa parede. Por sorte, o corredor estava vazio, o que significava que não haveria pessoa para vê-lo naquele estado humilhante.

Tremia e suava, com os olhos fechados fortemente, com medo de que se os abrisse, não seria capaz de controlar as lágrimas que lhe queimavam. Não sabia o motivo de se sentir tão abalado com aquela visão. Ele nem deveria se importar com aquilo, pois era um futuro tão improvável – em que ele e a Granger teriam um filho –, que ele deveria descartar qualquer pensamento sobre ele. Contudo, tudo sobre ele machucava o seu âmago. A forma como o garoto lhe olhara, como se não houvesse nada sobre a terra que odiasse mais que o pai. Draco queria ter uma família, um dia, claro, e filhos que sucederiam o sobrenome da família, mas, quando pensava nisso, gostava de se imaginar tendo uma família mais afável do que a sua, onde uma criança poderia crescer sem pressão nem medo. Ele queria que seus filhos tivessem a liberdade que lhe fora negada no nascimento e, sobretudo, que seus filhos se sentissem amados. Porque ele, mais do que qualquer outro, sabia como era crescer sentindo que não era bom o bastante.

Naquela visão, todos os seus piores pesadelos eram verdade. O filho lhe odiava, a mulher que amava estava morta e o mundo estava decaindo para um estado perpétuo de caos, morte e infelicidade. E a culpa era sua.

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Hermione deitou-se na grama, observando os últimos raios de sol se dissolverem no céu escuro, formando uma mancha roxa que se mesclava a rosa vibrante. Ao longe, perto da linha do horizonte, o lago brilhava numa cor de dourado escuro, como se revelasse um tesouro há muito já esquecido sob suas águas.

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Ao seu lado, Blaise retirou de uma cesta dois pedaços de torta salgada que conseguira da cozinha. Hermione salivou e atacou a comida, porém, ao lembrar-se que seu estômago ainda estava fraco dos dias em que não conseguia comer, mastigou devagar pequenos pedaços de torta. Blaise a observava sem pretensão de disfarçá-lo. Ele parecia alegre por ela estar ali, com ele, debaixo do pôr do sol, contudo também parecia preocupado com a palidez da pele dela. Gostaria de levá-la mais vezes para fora do castelo, sobretudo quando o sol está ao seu pico, para almoços e lanches fartos, com carnes salpicadas de molho, tortas salgadas e doces, sorvetes de frutas com calda de chocolate e de amora, e o que mais estivesse à disposição na mágica cozinha do castelo.

Quando terminaram, colocaram seus pratos e talheres de lado e se deitaram na grama, com as mãos enlaçadas e os pés descalços tocando um ao outro.

– Conte-me sobre a sua família – pediu Hermione.

– Não há muito a ser dito sobre ela...

– Você nunca me falou sobre os seus pais, tios e avós, muito menos sobre a casa onde cresceu ou sobre seus amigos de infância.

Blaise sorriu tristonho, recordando-se de uma lembrança muito antiga para ser real e não um sonho.

– Eu e Draco costumávamos brincar juntos, às vezes, quando éramos crianças. Mas acho que o pai dele não gostava de mim.

– Não é pessoal – bufou Hermione. – Lucius dificilmente sente apresso por qualquer ser vivo que não seja a si próprio!

– Você já se encontrou com ele?

– Mais vezes do que gostaria, na verdade. – Suspirou demoradamente. Então, sorriu. – Sério que você e o Draco eram amiguinhos? Isso é tão surreal, que nem consigo imaginar!

– Foi há muito tempo, acho que deveríamos ter quatro, cinco anos. Depois disso, eu comecei a ficar muito parecido com o meu pai...

– Como assim? – perguntou Hermione, confusa. – Lucius e seu pai...

– Eles costumavam ser melhores amigos – falou Blaise rapidamente, de forma que, para a garota, parecia que ele havia perdido o fôlego. – Antes de... Hermione – ele sentou-se e tomou as mãos dela nas suas, pressionando-as. De alguma forma, conseguiu parecer mais preocupado do que antes. – O que vou lhe contar não será uma história agradável, ela não teve um final feliz para nenhum de nós.

Hermione engoliu em seco, mas pediu que prosseguisse.

– Meu pai era um sonserino descendente de uma nobre família, que possuía tanto poder e influência quanto os Malfoy. Naquela época, aquele-que-não-deve-ser-nomeado começava a reunir seguidores para começar a Grande Guerra que assombraria nosso mundo por toda a geração seguinte – fez uma pausa tão longa, que Hermione pensou que ele havia desistido de lhe contar. Quando retornou a falar, sua voz estava rouca e distante. – Ele não era como os seus pais nem como os seus amigos, não estava ansioso para segui-lo até o Inferno.

Outra pausa, mais curta que a anterior.

O céu escureceu por completo e o lago estava calmo, sem vestígio de dourado brilhando em sua superfície. Hermione sentia-se gelada, e isso nada tinha a ver com a chegada da noite.

– Minha mãe era da Grifinória – sorriu ele. – Desde o primeiro momento em que a viu, meu pai a achou linda. Ele queria conhecê-la, mas tinha medo que ela lhe negasse, pelo fato de ser um sonserino numa época de ódio. Um dia, contudo, quando estavam no quarto ano, ele tomou coragem para falar com ela, enquanto estavam passeando em Hogsmade. Por sorte, ela o deu uma chance de mostrar que não era um babaca completo como os seus amigos. Desse dia em diante, eles tornaram-se algo parecido com amigos, até que ela descobriu que também estava apaixonada.

Hermione virou a cabeça para encará-lo, ele tinha um sorriso estonteante no rosto que parecia combinar com o seu, e sentiu a vontade de inclinar-se e beijá-lo, mas decidiu esperar que ele terminasse sua história.

– Não foi fácil esconder o relacionamento deles. Lucius, para quem meu pai confidenciava tudo, odiava-a e deixava isso bem claro em todas as oportunidades que tinha. Ele e meu pai brigavam com maior frequência, conforme os anos se passavam, ele o acusou de ser traidor do sangue e de denunciá-lo para aquele-que-não-deve-ser-nomeado. Para protegê-la, meu pai teve que dar as costas para ela e ficar à mercê dos desejos de Lucius. Ele se juntou aos Comensais e, por algum tempo, fez coisas terríveis, coisas das quais jamais se esqueceria, coisas que destruíram parte de sua alma. Mas ele também a amava, nem o tempo nem a crueldade de sua vida foi o bastante para fazê-lo esquecer-se dela. Não sei quando, mas ele decidiu fugir, e assim o fez. Ele traiu os Comensais e o seu líder, entregou toda a informação que podia para aqueles que tentavam detê-lo, como prova de onde a sua fidelidade se encontrava, porém ele não podia ficar muito tempo para ajudá-los, pois temia que acabasse trazendo os Comensais para os seus lares seguros. Ele precisava continuar fugindo e fazer o seu melhor para distrair o inimigo. Minha mãe decidiu ir com ele, mesmo que ele a implorasse para permanecer com seus companheiros.

– Os Comensais o encontraram?

– Pior... Se tivessem o feito, o fim deles teria sido mais rápido e justo – balançou a cabeça, exasperado. Hermione aproximou-se dele e abraçou-o, esperando que ele se recuperasse para continuar. – Lucius os encontrou. Nessa época, eu já havia nascido. Eles conseguiram se esconder por bastante tempo, mas ambos sabiam que não o fariam para sempre. Lucius nunca perdoou o meu pai por ter amado uma sangue-ruim e por ter traído o seu melhor amigo, ele o faria sofrer até o seu último momento.

Blaise fechou os olhos e permaneceu quieto, até que, subitamente, puxou Hermione para mais perto de si, abraçando-a fortemente.

– Quando acabou com os meus pais, ele me entregou para ser criado pela irmã de meu pai, quem não fez objeção, porque ansiava tomar o controle da fortuna deixada para mim.

– Eu sinto muito – conseguiu sussurrar ela.

– Não sinta, por favor...

– Como você soube disso?

– Isso é uma história para outro dia... – suspirou ele.

Ela inclinou-se e beijou-o, sentindo a amargura na boca dele.

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Naquela noite, quando Hermione se encontrou com Draco, nenhum dos dois fez menção de começar uma conversa. Cada um seguiu o seu caminho, percorrendo os compridos corredores de Hogwarts, cada um sentindo uma dor muito própria.