Já faziam três dias em que nossa única tarefa era socar um boneco de plástico vermelho que, se você não saísse de perto no segundo em que socá-lo, recebia uma cabeçada em troca. Era deprimente, mas não pior do que tudo que descobrimos nas aulas de história.

— Audrey, querida — zombou Molly, e eu podia ouvir suas risadinhas do outro lado da sala —, ergue esses ombros! Onde está a postura que eu te ensinei?!

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Molly era uma das únicas pessoas que me aceitavam nessa estação e a única que não tinha medo de desafiar a seus superiores, principalmente, o Controle. A maneira de como ela não os temia e autorizava a si mesma para falar nos momentos de silêncio chegava a ser bizarra de tão engraçada. Para ela, tudo parecia estar mais que ótimo: não havia ataques, praga, o mundo estava intocado e nossas famílias, inteiras, vivas.

Quando eu ia socar o rosto impassível do boneco pela milésima vez, ouviu-se um estrondo e vários militares passaram armados e apressados pelas portas da sala de treinamento. Encaramos uns aos outros, como se esperássemos respostas. Atrás deles seguiam um homem e uma mulher, discutindo. A mulher conservava uma expressão cansada e furiosa, mas, nem um pouco preocupada quanto ao motivo dos militares estarem seguindo em direção dos... portões.

Sem que nenhum instrutor autorizasse minha saída, troquei olhares com Molly e corri. Era como se um intento me levasse naquela direção por necessidade. Bem como cães ficam quando veem alguém com comida, impulsivos.

— Audrey! — Molly gritava atrás de mim, arfante, enquanto eu ia desacelerando o passo e prendendo os olhos no corpo de um garoto que rastejava para dentro, parecendo clamar por um único nome.

De repente, vi o corpo de Molly passar a toda velocidade pelo meu lado e desviar dos superiores e todos os militares presentes, envolvendo o garoto em seus braços. Lembro-me perfeitamente de quando ela contou-me sobre ter um irmão. Lembro-me perfeitamente de lamentar por ele.

Meus passos agora eram lentos e pesados e, enquanto eu caminhava, várias outras pessoas passavam correndo por mim e aglomeravam-se ao redor de Molly e seu irmão, desesperadas por informação.

— Você está... você está vivo, Ben! — Molly não se cansava de repetir e, assim como ela, desviei de tudo e todos que tampavam minha visão, ajoelhando-me ao lado dela e de seu irmão. Ele repetia algo que eu não conseguia distinguir e seu corpo estava totalmente pálido e gelado. Alternei a atenção entre o garoto e Molly, caótica.

— Nós precisamos ir. Eles estão nos esperando. — Ben sussurrou, e o vi abrir um sorriso maníaco e depois me olhar, moldando uma expressão incrédula, como se tivesse acabado de ver um fantasma. Ele encolheu-se nos braços da irmã e toquei sua perna na tentativa de acalmá-lo, perplexa.

— Meninas? — A mulher que eu havia visto passar pelo corredor estava ali, bem acima de nós, com uma arma apontada para Ben. Uma luzinha azul cintilava em seu peito e no segundo em que a bala acertou-o, Molly congelou e senti uma forte ardência na mão com qual eu o havia tocado: um desenho de um sol tomava forma aos poucos. Eu estava a ponto de gritar se não fosse por Molly me dar um tapa e avaliar o símbolo, exigindo que eu não deixasse ninguém ver. Era como se aquilo fosse habitual para ela.

Ambas nos erguemos e continuei com a mão fechada, por mais que Molly estivesse triste e furiosa, estava tentando dedicar-se ao símbolo de sol que havia se formado em minha mão. Ela tentava estudá-lo de todas as formas, mas fazia uma expressão confusa toda vez que terminava, como se soubesse sobre isso, mas tampouco entendesse.

Um instrutor teve o luxo de nos aguardar na porta com um sorriso falso moldado no rosto, que alternou-se automaticamente para o de sempre: de que não estava satisfeito com nada, principalmente com nossa fuga.

— Eu não gostaria de ter que aplicar punição em ninguém em três dias... mas vocês acabaram de me pedir para experimentar a Contenção. — Sequer imaginava o que era a Contenção ou o que acontecia lá, mas aparentava ser, sem dúvida, um lugar que nenhum de nós gostaria de estar.

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Ele indicou para que passássemos a frente dele com a cabeça, e seguimos corredor a frente até parar em frente a uma porta azul e com um "C" preto bem no centro. Tremi no momento em que ouvi um grito agudo sair de lá de dentro e o instrutor bateu na porta e, no mesmo segundo, uma mulher alta de cabelos castanhos e encaracolados avaliou nós duas, séria.

Quando passamos pela porta, fomos recebidas com vários outros corredores enormes e cansativos. A mulher nos conduziu até uma sala que ficava no fim do corredor, senti Molly soltar um suspiro e entrar primeiro, seguida de mim e da superior. O lugar não era sem dúvidas perto do que eu havia imaginado: era uma sala coberta por uma parede fofa branca e o chão com uns mármores escuros e brilhantes. A superior sorriu e saiu, trancando a porta.

Nos primeiros minutos, tudo estava bem tedioso. Se não fosse pelo momento em que comecei a sentir uma forte dor nas pernas e tombar pra frente. Molly sequer se moveu. Foi quando percebi que ela estava olhando para minha mão: o sol sublinhava uma luz avermelhada e que acarretava sequentes ardências naquela mesma região. Cada vez mais intensas e amplas.

— Audrey... isso não é um castigo. — Molly dizia as palavra com cuidado e lentamente, como se estivesse selecionando-as.

— Claro que é! Não tá vendo a minha situação? — Eu estava a ponto de cair em uma gargalhada dolorosa se não percebesse que ela também não riu.

— Nós não estamos sendo castigadas, mas observadas. — Sua expressão ainda era séria, e seus olhos estavam presos nos vidros que estavam na parede, um pouco acima de nós, onde a superior avaliava-me com cautela e voltava a apertar botões, puxar alavancas e tomar goles rápidos de algum líquido que estava dentro de uma xícara. — Ela descobriu você, Audrey.