- E como nosso próximo item da noite, temos aqui um espécime de uma desconhecida e distinta criatura, um pequeno monstro das florestas frias - disse o homem com um martelo na bancada para a plateia, ele tinha um forte sotaque russo - O lance inicial é de dez mil Euros, quem dá mais?

O local era um teatro velho, de mais de cem anos, e o leilão supostamente era para uma ótima reforma na estrutura de madeira, resistente, mas a velhice impedia uma limpeza mais apurada, o que fazia o local cheirar a poeira, mofo e naftalina para matar os ratos que ocasionalmente faziam seus ninhos embaixo das bancadas e roíam as cortinas. Ao lado do vendedor tinha uma mulher vestida com trajes curtos e provocantes de couro, provavelmente para chamar a atenção dos visitantes.

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As pessoas nas cadeiras, todas vestidas com trajes ricos e elegantes e rostos mascarados como num baile, olhavam espantadas para o monstrinho na jaula: vestido com apenas um short preto rasgado, pelo tamanho e forma lembrava um menino magricela de doze anos, mas era totalmente branco e cinzento nas partes mais escuras, e não tinha um pelo no corpo… Mas a mais arrepiante das suas características era sua face, ou melhor, a falta dela. Não havia qualquer sinal de olhos, boca, nariz orelhas ou cabelo, somente leves manchas cinzentas bem claras nas órbitas dos olhos, indicando um leve afundamento e revelando músculos faciais.

Ele segurava as barras frias da jaula, porém esta era pequena demais para ele se levantar, obrigando-o a permanecer ajoelhado. Mexia a cabeça para todas as direções, parecendo desorientado, e tremia, mas ninguém parecia ligar para isso. Todos os animais tremem num leilão.

Um homem sentado mais à frente, vestido com um terno risca de giz levantou a mão, o de sotaque russo captou a mensagem e gritou – o senhor à frente deu dez mil e quinhentos Euros, quem dá mais, quem dá mais? A moça ali deu vinte mil, o cidadão à direita deu trinta, quem dá mais gente? Dou-lhe uma… oh, o cidadão da frente deu trinta mil e quinhentos, ótimo, quem oferece mais pelo pequeno demônio?

O monstrinho virou o corpo mais para o lado, e tentou pegar algo na lateral da jaula com uma de suas mãos, e o rato que passou despercebido pelos humanos fugiu de suas garras… mas os humanos admirados com a raridade do pequeno perceberam que ele tinha oito manchas pretas, quatro de cada lado, redondas e perfeitamente simétricas nas costas. Mais três levantaram a mão por terem visto esta característica, e logo o preço tinha aumentado para cento e onze mil e quinhentos.

O homem da bancada estava ficando cada vez mais satisfeito, até agora era o item mais caro da sua coleção de criaturas raras, nem mesmo a menina de duas cabeças tinha valido tanto. Outra aumentou para cento e setenta, deixando-o mais animado ainda.

- E então pessoal quem dá mais, quem dá mais? A moça da esquerda está segurando o lance, dou-lhe uma, dou-lhe duas…

E então o senhor mais à frente com terno de risca de giz levantou a mão. Todos prestaram atenção a ele, alguns arregalando os olhos, pois cento e setenta mil já era uma quantia considerável…

- Duzentos mil… à vista! – ele disse categoricamente.

Todos, exceto ele e o monstrinho, ficaram chocados. Era uma quantia absurda!

- Nossa, uma oferta generosa – disse o vendedor, seus olhos praticamente brilhavam, não mais conseguia se conter – Alguém oferece mais? Alguém?

Ninguém se atreveu a levantar a mão, nem mesmo para coçar a cabeça. Duzentos mil em centenas de Euros era deveras alto a se pagar, mesmo para os ricaços ali presentes. E pagar à vista estava longe para o alcance da maioria.

- Dou lhe uma… dou-lhe duas… - e então ele martelou vigorosamente na bancada, fazendo o pequeno monstro pular assustado dentro da jaula e bater a cabeça no teto dela - Vendido para o Senhor com a máscara vermelha e terno risca de giz! Parabéns e muito Obrigado!

E a plateia aplaudiu. Alguns olharam para o magnata: ele era alto e um pouco acima do peso, ostentava uma barba bem aparada com as costeletas juntas ao cavanhaque completo do queixo, e o bigode bem fino.

- Eu quem agradeço Senhor… - e ele ficou sentado enquanto esperava os últimos itens serem vendidos, como uma garota muda adolescente que teve a saia levantada e mostrou-se que ela não era uma menina coisíssima nenhuma…

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Enquanto isso, a jaula fora levada para uma área interna, onde os outros “itens” estavam. Eram em torno de quinze, e muitos deles eram crianças malformadas ou com algum defeito genético grotesco. O monstrinho estava ali sem entender nada, a olhar para tudo com sua cara vazia, sentado com as pernas encolhidas em uma bizarra forma de posição fetal. Os braços extremamente longos tinham os cotovelos alcançando o chão, e os pulsos chegavam aos joelhos.

Ele ouvia aquela criatura com um objeto de madeira que fazia barulhos extremamente altos ainda falando com o monte de outros deles. Não podia sair, não conseguia abrir as barras estranhas, nem ouvia mais os sons de casa… aliás, tinha perdido inclusive a noção do tempo e espaço. Estaria ele em um pesadelo?

Seus pensamentos foram interrompidos por sons vindos do outro lado do ambiente cheio de jaulas: uma dupla daquelas criaturas – que, aliás, ele reconheceu como sendo fêmeas, a julgar pela forma do corpo – entraram no recinto, ambas empurrando algumas caixas cobertas de pano com coisas redondas servindo de locomoção na parte de baixo. Então ele sentiu um cheiro de algo suculento e sangrento vindo de alguma coisa em cima dessas caixas…

Carne… o estômago dele roncou, fazendo-o perceber que sofria de uma abstinência de dias. E pelo que seu faro lhe dizia, parecia ser bem melhor que aquele rato que ele quase pegara na outra sala. Alguns de seus… “colegas” encarcerados fizeram sons estranhos e emitiram guinchos em suas jaulas, enquanto ele atentamente esperava.

- Hora da refeição, bichinhos! – disse uma das mulheres mascaradas vestidas parcamente de couro, parando o carrinho e tirando um pedaço de gordura de porco, jogando os pedaços para os itens do leilão. A maioria recebeu a “refeição” com nojo – ora, não se acanhem! Podem comer, não vendemos bichinhos mortos de fome…

Ela pegou um osso de pernil cru e jogou para um garoto magrinho na jaula ao lado do monstrinho branco, acertando-o bem na cabeça e o fazendo desmaiar pela fraqueza, o osso ficou bem do lado da jaula do sem-face, atraindo-lhe a atenção. A mulher jogou o outro pernil para ele, e ele ficou parado, esperando a sua vez.

- Ei Drilde, esse daí come? – ela olhou pra outra – ele não tem boca…

- Tire, nunca o vimos comer… - a outra dando carne para os que aceitavam; o que fazia os outros começarem a comer o que tinham – provavelmente essa coisa branca faz fotossíntese…

- Tudo bem… - a outra concordou, se aproximando para pegar o osso de volta…

De repente uma mão cheia de garras segurou o pernil tão rápido que a tratadora deu um pulo para trás. O monstrinho franziu os músculos que deveriam ser suas sobrancelhas e a pele onde deveria estar sua boca se esticou e se rasgou, fazendo um som característico que arrepiou os pelos dos outros “itens” enjaulados. O pequeno chiou como uma cobra, mostrando uma boca totalmente preta com uma fileira de dentes perfeitamente brancos e pontiagudos como os de um tubarão. A mulher se afastou tremendo. Se ela não estivesse acostumada com aberrações ela gritaria de pavor.

- Ok, agora nós sabemos que ele tem boca… e come. – ela comentou por fim. Todos os outros, pelo menos os que não eram cegos arregalaram os olhos enquanto o monstrinho branco – que parecia mais um pequeno demônio – puxar o pernil e morder a carne, arrancando-a em nacos e as engolindo quase sem mastigar, e ainda ao terminar, puxou o do outro que estava desmaiado e roeu até o osso, tamanha a fome que estava.

As mulheres observavam atentas à aberração, se perguntando o que seria aquilo e de onde ele tinha vindo. A aberração branca – como agora passou a ser chamado pelos presentes – lambeu os beiços e dedos cheios de sangue de porco com sua língua preta pontuda e comprida, e enfim quando fechou a boca, a pele que a recobria aos poucos se regenerava, voltando a ser uma cara lisa e totalmente branca.

Todos assistiram àquele horror, alguns enjaulados até se afastaram o máximo que podiam… então de repente o demônio virou a cabeça para o lado oposto de onde as mulheres haviam saído – naturalmente todos olharam para lá também – e aquele homem do sotaque russo apareceu andando de lá a passos largos, quase saltando.

- Ah, que noite! – ele estava sorrindo como nunca. – nunca vendemos tanto! E graças a esse lindinho daqui… estamos ricos!

Ele bateu a mão fortemente na parte de cima da jaula, fazendo a chapa de metal vibrar com a pancada. O monstrinho se encolheu, segurando as laterais da cabeça com as mãos, tremendo violentamente com o susto.

- Senhor, temos algo a dizer… - disse a mulher chamada Drilde – esse daí tem uma coisa bizarra com…

O homem riu.

- Ora, querida, e quem se importa? Ninguém devolve coisas compradas num leilão, tenta vendê-las de volta! – ele debochou, saindo de perto da jaula e encolhendo os ombros – se ele tem um defeito, que os seu dono magnata e seus médicos cuidem disso!

As mulheres ficaram caladas. Ainda mais, os magnatas ainda estavam lá e não poderiam saber de defeitos nas mercadorias. Era péssimo para os negócios.

Falando no diabo, o senhor com terno risca de giz apareceu nos bastidores onde as jaulas estavam, carregando uma maleta marrom e branca.

- Ora, Senhor… - começou o vendedor.

- Oakley – o homem interrompeu – Yohann Oakley. – olhou para todos os “itens” e deteve-se na aberração branca – ah, eis a minha mercadoria. Vim buscá-la…

- Buscar? Mas não dissemos que iríamos entregá-lo a domicílio? – o vendedor se aproximou.

- Isso não será necessário, e aqui estão os duzentos mil – ele entrega a pequena mala ao vendedor, que ofegou com o peso – E também tem uma pequena bonificação para eliminação de possíveis burocracias. Quero essa criatura no meu caminhão para ontem!

O leiloeiro abre a mala e se espanta ao ver os maços novinhos dos Euros acabados de sair do banco. E quase que ao mesmo tempo balbuciou algo como “imediatamente, senhor”, estalando os dedos para os empregados cuidarem do negócio.

A jaula fora recoberta com um pano escuro e malcheiroso, e pouquíssimo tempo mais tarde, era introduzida dentro de um camburão e levado para longe. E o pequeno demônio estava cada vez mais desorientado e perdido. Ele não tinha medo do escuro, porém o mau cheiro, o desconforto e a falta de conhecimento sobre o que o rodeava o amedrontavam mais do que tudo.

Ele se encolheu e se deitou, tremendo. A jaula era pequena demais para ele.