Dracocídio (versão descontinuada)

8º Assimetria - Roubo e Fuga


8º Assimetria

Roubo e Fuga

A fé draconiana levou Seph ao porão na hora seguinte à conversa com Myriel, carregando um pequeno balde de carne chamuscada. Desceu os degraus que lhe subiam a ansiedade, consciente de que o som de seus passos descalçados podia chamar a atenção do dragão. Quando se virou na direção dele, observou-o dormindo dentro de uma nova gaiola quadrada providenciada pelo pai para que o filhote tivesse mais espaço. Seph esfregou os dedos na própria mão suada. Havia aguardado duas semanas para experimentar o tato com um dragão de verdade e cotejá-lo com a sensação obtida em anos de sonhos noturnos.

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Deu passos sorrateiros no chão frio. Mas foram provavelmente as batidas aceleradas de seu coração que fizeram os olhos ofídicos da criatura se abrir. Criou-se um elo visual entre olhos igualmente verdes e um hiato de movimento: o exame da primeira impressão. Seph arriscou um passo; o dragão ainda permanecia como uma estátua. Deu então o segundo passo, o terceiro, e sucedeu-se um erigir de cabeça reptiliana. Ainda assim, o garoto continuou se aproximando, enquanto o dragão se colocava em pé nas quatro patas. Seph queria uma comunicação sincera e silenciosa por meio dos olhos em vez da boca. Quando plantou-se perto da gaiola, notou que o vão entre as grades era pequeno demais para seus braços infantis, porém conseguia colocar as mãos lá dentro. Seph esticou a mão direita para tocar o filhote, numa velocidade instalada no meio termo entre a hesitação e a coragem tal qual o primeiro contato labial entre dois amantes.

Enfim, os dedos passearam nas verdes escamas reptilianas, áspera, quente e dura, quase como havia imaginado nos sonhos, subindo e descendo pelo pescoço. Enquanto ocorria essa descoberta, o dragão pousava os olhos desconfiados no visitante, para ficar alerta ao menor movimento de traição à pureza demonstrada. O afago chegou à região da cabeça. O filhote então cerrou os olhos e rendeu-se ao carinho.

Seph chegou a imaginar que sentiria a mente se esfacelar no ar e que, em seguida, acordaria em seu quarto. Mas os segundos perduraram e provaram que não estava sonhando. Era a realidade. Afagava um dragão de verdade.

— Você tem nome? — perguntou Seph. O dragão soltou um berro frágil, e deu o ar de ser uma negativa. — Você precisa de um. — Um som mais prolongado e ameno soou como um “sim”. E Seph lembrou-se do nome sussurrado em seu sonho. — Que tal… Tiamat? — O dragão pareceu gostar. — Bom. Então será Tiamat.

Seph queria destrancar a gaiola e, como na vida onírica, aninhar o filhote nos braços e senti-lo escalando o peito até os ombros. Não via muita razão em deixá-lo encarcerado, pois não havia como escapar do porão a não ser que alguém deixasse o dragão passar pelo vão da porta ao abri-la. Ele e Tiamat pareciam se entender, e Seph poderia pedir-lhe para não fugir, mas presumia que, no fundo, o dragão desejaria experimentar a liberdade com as asas dele.

O filhote resmungou. Seph reparou que ele estava de olho na carne tostada que trouxe. Deu-a para ele, que abocanhou os pedaços avidamente. Foi a primeira de muitas outras refeições oferecidas pelo garoto.

Seph passou a visitá-lo sempre de manhã, pois a tarde era o horário do pai, e alongava o tempo de visita o máximo que podia, aproveitando para segredar os sonhos dragonescos, antes conhecidos apenas por seu diário, e narrar as angústias de ser um pequeno nobre importante. Tiamat era seu fiel amigo. Também não deixou de perguntar ao dragão se ele conseguia soprar chamas, mas tudo o que o filhote conseguiu foi urrar e cuspir baba.

Certa madrugada, o luar que entrava pela janela de um quarto salientou a face envergada de um garoto com sono intranquilo.

Seph acordou. Sentia as pernas inquietas e a cabeça pesada. Saiu do quarto e andou pela casa para saciar os membros inferiores e apaziguar a mente. Desceu as escadas do primeiro andar, furtou uma maça na mesa de refeições e deteve-se a olhar o porão na sétima mordida. Trocaria a cama e as imagens dos dragões em seu quarto por um chão gelado e um dragão de verdade. Permitiu-se imaginar esse desejo apenas para ser frustrado pela porta que não abriria. Mas abriu! A porta não estava trancada como deveria estar. Será que Myriel ou meu pai estão lá embaixo?, pensou.

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Sem dúvida, levaria bronca de um deles se o vissem no porão, mas Seph queria saber o que estavam fazendo. Desceu os degraus da forma mais silenciosa possível. Na metade do caminho, ouviu súplicas e impropérios murmurados, além do rugido furioso, mas pouco potente, de Tiamat. Quando Seph visualizou a cena completa, um dos guardas de seu pai tentava enganchar os dedos na gaiola, enquanto o dragão insistia em abocanhá-los. Ele permaneceu em silêncio até ouvir o seguinte argumento delituoso.

— Sua criaturinha repugnante! Já deixou marcas suficientes nos meus dedos… Merda, não para de sangrar. Fecha a droga dessa boca! Juro que te espetava com minha espada se não quisessem você inteiro.

— O que está fazendo?

O guarda virou-se. A face assustada por ser pego em flagrante dissolveu-se em instantes ao ver que era o pequeno pirralho Dracomir ao invés de Boris ou Myriel. Depositou a gaiola sobre uma mesa ao lado e falou com dissimulação:

— Não deveria estar aqui, pequeno Seph. Seu pai vai ficar furioso se descobrir que tentou entrar aqui no meio da madrugada.

— Você está roubando o dragão — acusou Seph, fazendo o sorriso dissimulado no rosto do outro desaparecer. — Pare! Não vai sair daqui com Tiamat.

— Tiamat? Quer dizer que você já até batizou o filhote? — riu o guarda. — Ah, garoto, apenas saia da frente. — E desembainhou a espada.

Seph engoliu em seco, mas estava disposto a não sair dali. Concebeu a possibilidade de sair gritando pela mansão inteira para que os guardas...

Chamas esverdeadas envolveram o rosto malicioso do ladrão, que gemeu e revirou-se em agonia. Foi a primeira baforada de Tiamat. Seph aproveitou a oportunidade para pegar a gaiola — era um pouco pesada — e subiu as escadas para o corredor. Tão logo atingiu o térreo viu-se cercado por um semicírculo de guardas, com Boris Dracomir no meio deles.

— Saia daí, Seph — ordenou Myriel. O garoto rompeu a guarnição e pôs-se em segurança.

Todos aguardaram a subida desesperada do ladrão, e quando ele abriu a porta do porão, duas dúzias de espadas pairaram no ar em torno dele. Em seguida, o homem capturado foi levado ao saguão. Todos os guardas e a família Dracomir foram acordados para o evento. Houve interrogatório, e não foi necessária muita violência para o ex-guarda dos Dracomir revelar suas verdadeiras intenções em relação ao roubo. Por fim, decidiu-se o que fazer com ele, e Seph ficou tão surpreso com a decisão de deixá-lo simplesmente ir embora que não reprimiu sua indignação:

— Mas ele quis roubar Tiamat. Devia ir para a prisão!

— Ele entregou os nomes dos envolvidos por trás do roubo. — Myriel tentou explicar. — Como compensação, estamos o libertando de seu juramento aos Dracomir. Não se preocupe, Seph, estamos sendo justos.

Muito tempo depois Seph compreendeu o que era ser justo naquela ocasião.

— — — —

Se Myriel soubesse a verdadeira identidade de Maison, a cabeça com o prêmio de quinhentas mil moedas de ouro teria se desprendido do corpo, e o mundo poderia usufruir de uma era afortunada com cinco deuses remanescentes. Contudo, nenhum membro decepado, sequer uma gota de sangue, maculou o chão forrado da tenda.

— Você não é o dracocida — concluiu Myriel, retirando a mão do punho da arma. — Não é nada parecido com a imagem do cartaz de procurado. E parece dizer a verdade sobre ter roubado o mapa de quem afirma ser o dono, ou pelo menos é isso que acredita. Então, diga-me. Como sabe que isto aqui realmente pertenceu ao dracocida? Embora seja uma teoria plausível, a julgar pelas anotações, esse mapa também pode ter estado nas mãos de um Ofensor.

— Achei que a palavra dracocida tinha mais chances de manter-me vivo quando tentou cortar minha garganta. De qualquer forma, esse mapa contém informações relevantes, não?

— Hmpf, provavelmente. Talvez seja uma pista bem pequena do paradeiro do dracocida, mas útil. Conte-me quando, onde e como o conseguiu.

— Há oito dias, numa taberna em Beltic. Roubei-o sem o dono ter notado depois de ele ter enchido a cara e adormecido sobre a mesa. Estava encapuzado, mal dava para ver o rosto dele. — Seph aglutinava informações de passados distintos, torcendo para que o cavaleiro não percebesse.

— Beltic, né? A cidade sagrada mais próxima desse lugar é Agridain. Ofensor ou dracocida é provável que esteja indo para lá.

Myriel tornou a analisar o mapa desdobrado, coçando o queixo despojado de pelos — aparentava menos idade do que possuía. O item continha informações úteis ao clero, incluindo a localização de pontos estratégicos — desatualizados — dos Ofensores. Para Seph, seria uma perda pequena se comparada à descoberta de seu próximo alvo em Agridain. O segredo de sua identidade foi sacrificado por seu futuro paradeiro. Isso eu não posso permitir. Preciso de um embuste que o faça pensar que o dracocida está visando outra cidade.

— O homem do mapa… ele conversou com o taberneiro. — disse o dracocida. Myriel rapidamente voltou a olhá-lo, pois sabia da importância de seus olhos para não cair em redes de mentiras. — Perguntava as direções para Ziengs. — De fato, Seph lembrava-se de uma cena na qual seu antecessor perguntava a um taberneiro, mas de outra cidade, o melhor caminho para Ziengs, uma das cidades sagradas, embora aquele dracocida tenha falecido antes de alcançá-la.

— Ziengs? — estranhou Myriel. — Se há uma chance de ser o dracocida, talvez valha a pena fortificar as redondezas daquela cidade sagrada. Já estou farto desses assassinatos. Aquele maldito vem escolhendo uma ordem aleatória desde o primeiro dracocídio. É muito difícil prever onde será sua próxima ação.

Seph podia sentir o ódio direcionado ao inimigo dos deuses pregado nos olhos de Myriel, a expressão determinada em caçar até o fim da vida a praga ambulante que vinha conspurcando o mundo. Embora tenha logrado seu interrogador até ali, precisava manter o esforço em criar as verdades aceitáveis aos olhos dele.

— Quanto a você, Maison — continuou o cavaleiro. — Eu lhe agradeço pelas informações. São de grande valia em nossa caçada pelo dracocida.

Após convencer o outro de que era um mercenário, Seph achou-se em extrema situação oportuna para investigar sobre o clero. Na verdade, queria muito dissolver o mistério do dragão que escutara há pouco, mas temia ser mortalmente silenciado para o resguardo de algum segredo. Preferiu perguntar-lhe o que os religiosos andavam fazendo para impedir a calamidade frente a gradual queda da Dragonia. Quais os planos dos cavaleiros de fogo para combater o dracocida? Outras perguntas já estavam aquecidas, prontas para serem servidas por sua boca, quando Myriel salientou, na segunda pergunta despejada, que qualquer informação concernente aos métodos de procura pelo dracocida e a atual condição do clero era confidencial. Aparentemente era uma preferência do clero que o assassino dos deuses fosse capturado por um cavaleiro de fogo e não por um mercenário qualquer.

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— Não importa o que aconteça com o mundo, vocês, mercenários, se adaptarão a ele. Por mais que a humanidade decaia, homens com poder sempre irão lhes pagar uma sobrevivência transitória. — Myriel enrolou o mapa e avaliou os demais itens carregados por Maison. O mais atrativo, sem dúvida, era a espada embainhada. Myriel retirou-a da bainha e contemplou-a em deleite. — Ela tem a aura de uma espada gloriosa. É estranho que justo você seja o portador desta arma. Aposto que lhe foi dada por alguém que a perdeu em algum acordo. Qual o nome dela?

— Cinzenta. — Pelo menos, era assim chamada quando ela mantinha a aparência de uma espada comum. Em outras ocasiões, ele a batizara de Escarlate. Aliás, era arriscado demais manter a lâmina à vista do cavaleiro. E se a cor do metal, de cinza virasse vermelha, por causa do dragão nas redondezas? Ali estaria, diante daquele homem loiro, o próprio dracocida.

Myriel deteve seus olhos na lâmina da arma como quem admira uma escultura.

— Verdade, o metal é mais escuro que o de outras espadas. Gostei do nome. Cinzenta… Reflete a alma humana. — disse ele, sorrindo. — Há quem diga que somos mera fumaça expelida das narinas dos deuses. Nosso destino é esvair-se com o tempo. Isto é a única coisa que o ser humano é capaz de fazer para se eternizar. É realmente uma bela espada — concluiu o cavaleiro, embainhando a arma e oferecendo-a ao mercenário —, não importa em quais mãos.

Seph hesitou alguns instantes, avaliando algo de negativo e implícito naquelas últimas palavras.

— Estou lhe devolvendo todos os seus itens, exceto o mapa do dracocida — esclareceu Myriel.

— Está me libertando? — perguntou Seph, lamentando em segredo por causa do mapa.

— É uma forma de compensação por ter me dado informações preciosas além deste mapa. Justo, não acha? — Recebeu o assentimento verbal de Maison e finalizou: — Ótimo. Agora recolha seus pertences e saia daqui.

Mas Seph não queria ir embora, não sem antes perguntá-lo a respeito do que ouvira essa noite. Era arriscado, mas crucial.

— O que era… aquilo?

O cavaleiro hesitou na resposta.

— Leve esse segredo com você até o dia de sua morte, mercenário. Agora, vá. — Myriel não parecia muito solícito em esclarecê-lo sobre o dragão.

Seph coletou seus pertences e afligiu-se com o fato de tirar aqueles homens de seu encalço ao preço da ignorância do evento que o levara até ali. Não descobriria nada ao ir embora, mas, talvez, fosse melhor não abusar da sorte. Eram muitos oponentes. Ele relegaria esse episódio e voltaria a se concentrar no dragão de Agridain.

Ao sair, foi observado por Myriel, e depois pelo grupo de cavaleiros de fogo no lado de fora; não deixou de reparar na expressão carrancuda de Kolin. Ninguém lhe disse uma única palavra, e ele nem esperava receber alguma. Somente quando Seph penetrou mais uma vez no bosque, é que se sentiu liberto da observação. Felizmente, havia prestado atenção nas direções quando fora capturado. Presumia que não estava fora do curso, e isso o lembrou da inconveniente falta de um mapa. Seria complicado arranjar um segundo com todos os detalhes do primeiro.

O mercenário libertado pausou seus pensamentos ao escutar ruídos de cascalhos não muito atrás dele. Parou. Grilos e outros insetos preencheram o silêncio humano. Seph retomou a passada, e vez ou outra se podia flagrar o som de uma aproximação. Os olhos se puseram com urgência a exame da floresta. Não espiou a retaguarda, para não dar a entender que percebera o movimento inimigo, apenas os lados. Quando encontrou o que queria, fez parecer o mais natural possível sua caminhada até um pedaço da floresta onde a mata não era tão esparsa, o solo exibia diversas depressões e o luar ainda era mais escasso. Seu corpo farfalhou os arbustos e passos pisotearam a terra recheada de minhocas.

— Pra onde ele foi? — perguntou um dos perseguidores ao perceber que tinha perdido o rastro do criminoso.

— Não sei. Não podemos perdê-lo. O Kolin vai ficar irado quando souber que a gente deixou o maldito escapar — praguejou o outro.

— Decidimos o par no jogo do palitinho. Ele que nem reclame.

— Eu sei, mas o chefe pediu que só voltássemos com a cabeça espetada na espada.

— E você terá uma — pronunciou o homem que irrompeu atrás deste último e brandiu a espada em um rápido movimento horizontal, separando a cabeça do corpo do cavaleiro de fogo.

Se o gume escarlate era afiado para dragões, o cinzento era para humanos.

O companheiro gritou de susto e afastou-se desembainhando a espada para se proteger.

— Myriel pediu apenas uma cabeça, não é? — Seph se aproximou, vislumbrou o pavor e a coragem reprimida no rosto do cavaleiro remanescente. — Mas eu darei uma extra a ele, como recompensa por ter deixado o dracocida escapar. Justo, não acha?