A Pele do Espírito (versão antiga)

O nome dele é Byakko


Cada soluço e sussurro retumbava dentro de mim, como meus próprios pensamentos. Eu atravessei o arco e me deparei diante de um salão arredondado, de paredes altas e curvadas como a caverna lá fora. E, no centro do teto abobadado, um cristal gigantesco emergia e emitia seu brilho, iluminando a câmara como um lustre. Todas as superfícies ao redor eram perfeitamente lisas e polidas, diferente do acabamento rústico da escadaria que me trouxera ali. E, no centro do salão, dois tronos de pedra se erguiam, com seus espaldares altos. Atravessando o cômodo havia outra saída, um grande arco para um ambiente escuro.

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No trono à direita, o menor, uma criança chorava e uma jovem a consolava. A menina tinha cabelos curtos, ondulados e negros, e escondia seu rosto contra o peito da jovem de cabelos longos e lisos e escuros. Comecei a me aproximar e a mais velha levantou sua cabeça na minha direção. Seus olhos se arregalaram e sua boca se escancarou, mas não emitiu nada mais que um silvo baixo, o cicio do vento, nada de palavras. A voz das almas dos mortos.

Ela balançava as mãos na minha direção, gesticulava, sacudia sua cabeça tentando me dizer algo. Finalmente, ela tentou se levantar e andar até mim; mas em dois passos correntes tilintaram em seus pulsos e tornozelos. Ela estava acorrentada ao trono em que se sentava. A irmã de Um e Dois.

— Mérope? – Um vulto encapuzado entrou pelo arco do outro lado do salão. Meu coração deu um pulo ao pensar que Byakko finalmente estava aqui, mas ele vestia apenas negro. – O que você andou dizendo para nossa visitante?

Ela se encolheu diante da voz, recuou os dois passos que havia dado e voltou a sentar-se em seu lugar.

— Lorena – ele se aproximou, postando-se atrás do trono de Mérope.

— Yasuko...

— Vejo que meu irmão falou de mim – Ele tinha um sorriso irônico e debochado, mas os movimentos muito contidos, calculados. – Pena que ele não tenha dedicado a mesma gentileza a mim. Você entende, não é? Ele não vem aqui para... conversarmos.

— Nem consigo imaginar o porquê – rebati.

— Quem diria que eu iria gostar do seu senso de humor. Você também usa de ironia com Byakko? Ele não se dá muito bem com ideias ambíguas.

— Você quer dizer que ele é justo?

— Estou dizendo que ele é ingênuo.

Yasuko se sentou em seu trono, de pernas cruzadas e os braços apoiados nos joelhos, inclinando-se em minha direção. Seu capuz caiu, revelando detalhes de seu rosto, mais alongado que o do irmão. Seu queixo era mais fino e o nariz era reto, as bochechas eram lisas e sem ossos ressaltados. Seus cabelos eram mais longos, curvados nas pontas, e pretos. Seus olhos eram de um dourado pálido, como moedas vistas através de metros de água cristalina, um tesouro naufragado.

— Eu já o vi antes – refleti.

Ele sorriu, satisfeito.

— Na casa dos meus pais – complementei. – Eu era criança.

— Eu tinha ouvido falar de você. Não pelo meu irmão, é claro.

— Onde ele está...? – Perguntei, num átimo percebendo que ainda não sabia de seu paradeiro.

— À caminho.

Yasuko se apoiou no espaldar da cadeira.

— Achei que fosse ser mais rápida em pegar o que veio buscar – ele disse.

— O que quer dizer com isso?

Ele apontou a criança chorosa que se agarrava à Mérope.

— Era de se esperar que fosse reconhecê-la – desdenhou.

A criança enxugou seus olhos, me encarando finalmente, e eu não era capaz de desviar os olhos de seu rosto.

Meu rosto.

Eu olhava para a criança que eu fora até a morte dos meus pais. Meu passado. Minhas memórias. Diante de mim.

— Mamãe... – Ela choramingou.

Mérope sussurrou algo em seus ouvidos e ela fungou.

Fiz menção de ir até elas, mas estaquei de repente, refletindo:

— O que você está planejando? – Perguntei a Yasuko. – Você nos trouxe até aqui, por quê?

— Eu gosto de quitar meus débitos.

— Que...

— Yasuko! – Byakko rugiu, atravessando o arco atrás dos tronos.

Ele e Um entraram, cada qual seguindo por um dos lados do salão circular, como se cercassem Yasuko, e andaram até mim. Um tinha o corpo inteiro enrijecido, algo significativo para uma alma que animava um corpo de pedra, e continha um rosnado em sua garganta. Ele só relaxou ao ver sua irmã, mas sem baixar a guarda.

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— Irmã... – Ele disse, e ela respondeu com um sorriso e um cicio.

— Ela me disse que seu nome é Mérope – sussurrei-lhe, lembrando que Yasuko lhe tirara as memórias até mesmo do nome dela.

—Mérope... – Ele saboreou cada sílaba.

Tanto ele quanto Byakko agora me ladeavam, de olhos fixos no dono do lugar.

— Olá, irmão – ele cumprimentou.

— Diga o porquê toda essa encenação, Yasuko.

Ele pareceu bem incomodado pela interrupção, mas depois de um segundo deu de ombros e respondeu:

— Como você bem sabe, eu tenho um débito, digamos..., inoportuno. E a única moeda que pode quitá-lo, bem, está nesta sala.

Ele me encarava.

— A aposta... – Concluí.

— A última Thânat, não é mesmo? Você não tem ideia o quanto Isméria a quer... Nem o quanto detesto estar lhe devendo o que for...

Ele encarou Byakko, obviamente remoendo internamente a interferência do irmão em seus negócios.

—É claro que ter só metade não adiantava, não é mesmo? Ainda bem que você queria muito esse pedacinho seu de volta.

— Por que tanto trabalho para me atrair até aqui? Por que não me capturar, simplesmente?

— Porque Byakko é muito bom em vigiar você. Mas aqui... – Yasuko gesticulou. – Aqui eu sou muito mais forte.

Os punhos de Byakko estavam fechados; se seu irmão se levantasse, ele provavelmente atacaria. Segurei sua mão, tentando acalmá-lo. Mesmo assim ele não desviou os olhos de Yasuko.

— Isméria não vai negociar com você – eu disse, atraindo imediatamente a atenção do Espírito. Sua sobrancelha se ergueu com perplexidade.

— Como tem tanta certeza?

— Porque ela já negociou comigo. Em três meses eu vou me entregar... E ela terá minha alma, como queria.

Yasuko me analisava friamente, enquanto se debruçava em minha direção, procurando algum sinal de uma mentira, de um blefe. Infelizmente, era a verdade, e ele logo se convenceu.

— Por quê? Por que você iria se entregar? O quê ela lhe ofereceu?!

Byakko baixou os olhos e Yasuko captou seu movimento, mesmo que não fosse capaz de decifrá-lo.

— Isso não importa – respondi. – Mas nós temos um acordo. Três meses. E suponho que, por mais perversa que ela seja, Isméria não faz acordos em vão. Ou você não estaria tão ansioso para quitar seu próprio débito.

Aquilo o afetou. Sua postura relaxada e indiferente subitamente se transformou em uma raiva contida, uma chama gélida.

Ele se levantou lentamente, como se despendesse muito esforço para manter uma fachada comedida e tranquila. Mesmo assim, frustração era tudo o que ele emanava.

— Acho que não haverá acordo então – ele deu de ombros. – Isméria pode ter você, mas vai ter que vir buscar a outra metade comigo.

Imediatamente uma lufada de fumaça negra começou a cobrir a menina no colo de Mérope, e girar rapidamente. Da mesma forma como fazia Byakko sempre que desaparecia. A criança ficou assustada e começou a chorar. Yasuko ia leva-la embora, sabe-se lá para onde. Para fora de nosso alcance.

Byakko percebeu as intenções do irmão num instante, e arremeteu sobre ele, jogando-o sobre o próprio trono, destruindo seu espaldar de pedra, e voando ambos até o outro lado do salão. Yasuko aterrissou de costas no chão polido e, antes que pudesse se recuperar, foi golpeado no rosto. A fumaça negra se dissipou.

No entanto, Yasuko interceptou o soco seguinte, segurando o punho do mais velho por um segundo, com um sorriso zombeteiro no rosto sem quaisquer marcas. Ele o jogou na parede com um pontapé no estômago. O corpo de Byakko abriu um rombo na rocha e ele tossiu, subitamente sem ar.

Yasuko ria.

— Um corpo, Byakko? Um corpo mortal? Você consegue sentir a ironia disso? – Ele caminhou até Byakko, pôs a mão em seus ombros e o empurrou novamente contra a parede, fazendo mais rachaduras brotarem sobre sua superfície. O mais velho era mais alto, mas Yasuko tinha o tronco mais largo. – Eu mal consegui acreditar quando soube que você era mortal agora... Sabe o que mais eu ouvi falar sobre Espíritos caídos? Ouvi dizer que seus corpos se curam em segundos. Então por que a moleza? Esse drama... – escarneceu. – Você consegue me bater mais forte que isso... Mesmo nessa roupa de carne.

Byakko se virou para mim e nossos olhares se cruzaram.

— Vai... – A forma de seus lábios me disse, à um salão de distância. – Vá pegá-la.

Esse gesto não passou despercebido por Yasuko.

Eu corri.

Lóris se apressou até sua alma. Agora, dependia dela. Yasuko era problema meu. Ele se moveu, como se fosse persegui-la, mas eu o segurei.

— Que cara mais séria – Yasuko despejou seu sarcasmo sobre mim.

— Era o que você queria. Uma luta séria.

Enquanto eu corria, ouvi um rugido. Talvez muito mais alto do que de fato era, por causa dos ecos do salão abobadado. Mas eu ouvi, e virei minha cabeça em direção aos Espíritos. Pensei, primeiro, que fosse Um, afinal ele agora tinha o corpo de um animal, mesmo que de pedra. Mas ele estava atordoado no chão, depois de tentar avançar sobre Yasuko.

Mas Byakko estava de pé, e tinha o mesmo olhar de quando se exaltava: as pupilas verticais e finas dividindo as íris prateadas. A névoa se agitava ao seu redor como se ele fosse desaparecer, mas ao invés disso ele estava mudando. Duas caudas esbranquiçadas seguiam cada um de seus movimentos, sua boca parecia cheia demais com as presas dentro dela, suas orelhas... Logo a névoa o havia coberto completamente e, quando se dissipou, a criatura no salão era um misto da estátua de olhar bondoso que Dois agora animava e do monstro que Taiga se tornara, vigiando a entrada para Este Lado.

Era a primeira vez que eu via o Byakko capaz de habitar os pesadelos de todos na ilha. A primeira vez que eu via a Morte.

Yasuko encarou o tigre branco diante de si, e a estátua negra às suas costas como se nunca tivesse se divertido tanto.

Forcei-me a parar de assistir e correr.

Quando alcancei Mérope, ela jogou a criança em meu colo tentando, impacientemente, me dizer para fugir, mesmo que sua voz não fizesse sentido algum para meus ouvidos. Seus gestos e seus olhos eram muito claros. Mas a pedra em meu peito queimou contra minha pele.

Eu havia prometido.

Coloquei a criança sentada sobre o que sobrara do trono de Yasuko, abri minha bolsa e lhe dei a boneca que achara na praia, havia tanto tempo.

— Espere aqui – eu disse. – Fique calma. Vou ajudar Mérope.

Ela anuiu, apertando a boneca contra seu corpinho.

Virei-me para Mérope, analisando as correntes em seus membros. Ela tentava puxa-las da minha mão, ou me empurrar para longe, mas ora ela parecia não ter força, ora atravessava-me como uma sombra. Mas as correntes pareciam ser capaz de afetar tanto corpo quanto alma: eu era capaz de tocá-la, e elas eram capazes de aprisionar um espirito.

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Eu não tinha ideia do que seria necessário para destruir aquele material.

Segurava, de forma inconsciente, a pedra turquesa em minhas mãos, que parecia cada vez mais quente.

Calor. Talvez o fogo pudesse fazer algo contra essas correntes.

Tentei, mais uma vez, acender uma chama em minhas mãos. Se havia um momento para a magia funcionar, definitivamente era aquele. Tentei me concentrar, pensar em coisas que me aquecessem, que me fizessem feliz. No entanto, as imagens que encheram minha mente em flashes foram de um inferno sem controle,... quente e ofuscante. O fogo devorando as paredes e os móveis; o cheiro acre da fumaça escura que se acumulava sob o teto.

Minha alma infante soluçou ao meu lado, de olhar vidrado, como se estivesse diante da mesma coisa. Se lembrando do incêndio de maneira tão vívida quanto eu mesma acabara de ver. Mas era ela quem tinha todas as lembranças. Ela quem se lembrava de toda a dor.

Ela voltou a chorar e se encolher. Punha as mãozinhas contra os olhos fechados, tentando se impedir de ver o que quer que se passasse em sua mente. Mais do que eu era capaz de lembrar. Mesmo assim, o pouco que eu vira me fizera suar e reconhecer quanto medo do fogo eu tinha.

Ao mesmo tempo, eu via Mérope acorrentada àquele salão frio havia quanto tempo? Muito tempo, eu tinha certeza... Que chance ela tinha se não a tirássemos de lá? Que outra chance ela teria. Mesmo assim, seus olhos me diziam para fugir. Eu vou ficar bem, eles mentiam, eu sabia. Quantas vezes não contara a mesma mentira? A imagem da garota jovem e prisioneira me indignava.

A gema em meus dedos pulsava e irradiava calor. Levei minhas mãos até os lábios e disse, pedindo-lhe ajuda, por favor...:

— Por favor... eu preciso cumprir essa promessa...

Um halo de luz encheu o salão, ofuscando meus olhos preparados para ver perfeitamente até mesmo no escuro. Yasuko nocauteou Um e, diante da minha cegueira momentânea, aproveitou para montar em meus ombros e passar os braços ao redor da minha garganta. Demorou um tempo para o ar me faltar, mas ele apertava meu pescoço sem misericórdia, asfixiando-me. Yasuko explorava cada fraqueza de um corpo mortal e, então, as jogava na minha cara. Em compensação, ele ainda era um Espírito. Podia tornar-se intangível aos meus punhos quando quisesse, e quando se deixava atingir ele desdenhava de mim. Lute de verdade!, ele gritava pra mim, sabendo que eu não estava dando tudo de mim. Os Espíritos tinham medo de mim por um motivo: minha magia era capaz de tocar até mesmo suas formas intangíveis, suas almas... e destroçá-las. Mostre-me do que é capaz!

Eu podia desaprovar a postura de meu irmão, e cada uma de suas decisões mesquinhas, mas eu não estava ali para feri-lo. Eu só precisava ganhar tempo. Não ia mata-lo.

Nem ele me mataria.

Ele só se divertia quebrando meus ossos e vendo-os se curar para quebra-los outra vez, consciente de que aquilo não era, de verdade, algum mal para mim.

Finalmente atingi meu limite e fui obrigado a voltar à minha forma humana, desvencilhando-me de Yasuko. Eu caí no chão, tossindo, sentindo minha garganta abrasada se curando. Enquanto eu me recuperava, ele se virou para observar Lorena, e viu a criança que corporificava suas memórias correr, chorando e assustada, para fora do salão.

— Parece que ela não quer voltar – riu.

A crisocola começou a brilhar intensamente, tanto que sua luz escapava como raios por entre meus dedos. Mérope a encarava, espantada.

Um círculo luminoso surgiu ao nosso redor e um corpo se ergueu dele, entre nós duas. Era uma mulher tão alta quanto Taiga, vestindo uma armadura completa de cor turquesa-azulada, como a superfície da gema que a manifestara. Um Espírito, pelo que Byakko me explicara. Um Espírito aliado dos humanos.

Apesar de seus olhos e cabeça estarem cobertos por um elmo, seu sorriso visível era bondoso, e apesar de sua armadura robusta, ela não carregava qualquer arma.

Eu ouvi você, ela disse em minha mente, como Byakko fazia muito tempo atrás. E eu respeito seu compromisso, sua palavra... Sua gentileza não será esquecida.

— Quem é você?

Eu sou o Espírito Crisocola, a pedra que você segura. Meu nome é Saoroli, ela respondeu. Você pergunta meu nome sem saber o poder que ele tem.

— Desculpe-me – gaguejei.

Eu não estaria aqui se achasse que você não é merecedora de ouvi-lo.

Ela se virou para Mérope.

Você será livre.

O Espírito se abaixou, pegando as correntes entre as mãos, e as partiu ao meio. Com seus elos quebrados, o material tornou-se fumaça negra, como toda a magia de Yasuko, e dispersou-se.

Então, Saoroli olhou fixamente para Mérope, como se estivesse dizendo algo apenas à ela, na privacidade de seus pensamentos. Mérope abriu os lábios para agradecer.

Ela então se voltou para mim, e envolveu minhas mãos com as suas.

Cuide bem disso, apertou a pedra. E não se esqueça de que eu sou sua aliada.

E mergulhou novamente em seu círculo de luz.

Virei-me para o trono de Yasuko, buscando minha alma, quando percebi que ela desaparecera. Vasculhei o salão em tempo apenas de vê-la mergulhar no escuro do outro lado do arco maior, castelo adentro. Certamente, o clarão de que Saoroli emergira fora demais para ela, tão assombrada pela luz do fogo. Pensei em perseguí-la, talvez pudesse resgatá-la antes que se perdesse, mas algo me distraiu.

Eu vi Byakko ser jogado do outro lado do salão, com vários hematomas que se curavam diante de seus olhos, e manchas de sangue nas roupas esfarrapadas. Depois de se chocar contra a parede, ele escorregou até o chão e lá permaneceu, vendo Yasuko caminhar até ele. O caçula, por outro lado, não trazia qualquer sinal da batalha além de um sorriso vitorioso. Um estava caído mais atrás, desacordado e com a pata dianteira direita destroçada.

Voltei a olhar para o arco atrás de mim, e depois para Byakko adiante. Um nó cego se formou em minha garganta.

Ia correr em direção ao meu verdadeiro destino quando Mérope me segurou pela mão.

Ela abriu seus lábios, mas, como todas as vezes anteriores, sua voz não tinha qualquer sentido para mim. Ela percebeu e pôs um dedo sobre meus lábios, pedindo silêncio; ou calma, talvez? Então ela deu um passo adiante, depois outro, e seu espírito atravessou meu corpo como uma sombra. Foi como mergulhar no mar gelado e tempestuoso do inverno outra vez, com o ar faltando em meus pulmões, mas passou num segundo. Ao mesmo tempo, imagens inundaram minha mente; imagens da mente dela. E palavras ressoaram dentro do meu crânio.

Pegue o coração, ela tentava me dizer.

E obrigada...

— Por quê? – Yasuko me indagou. – Por quê está agindo como meu capacho?

Eu engasguei com a risada que acabou emaranhando-se nas minhas costelas que se remendavam.

— Você tem medo de assustá-la? – Tentou um palpite.

— Ela não tem medo de mim – respondi. – Nunca teve...

— Então por que você se contém?

— Porque eu não odeio você – cuspi. – Posso detestar cada decisão que toma, e a forma como brinca com a vida dos outros, mas eu não estou aqui pra punir você. Se parasse um pouco para pensar no que eu fiz, ia perceber que não fiz nada para contrariá-lo. Pelo contrário, eu passei séculos tentando concertar suas péssimas ações. Como um irmão faria – ele recuou a cabeça como se houvesse levado um safanão. – Eu sei, porque passei anos protegendo humanos da sua aposta. Passei anos assistindo como eles cuidam uns dos outros. E vi por anos os irmãos de Mérope se torturando por ela, mas mesmo assim cuidando um do outro. Você também saberia se...

— O quê há de errado com seu rosto...?

Levei minhas mãos até minhas bochechas úmidas, e respondi:

— Ser humano, eu acho...

Por algum motivo, Yasuko havia parado de atacar e apenas observava seu irmão caído contra a parede. Eu só esperava que ele continuasse assim para que eu fizesse o que Mérope me mostrara. Corri, e nas passadas finais eu fechei meus olhos, com a mão estendida diante do corpo. A mensagem dela era confusa, uma torrente de imagens e frases desconexas, mas algumas pareciam se encaixar. E todas pareciam se encaixar ao redor de seu comentário imperativo: pegue o coração.

Meu braço afundou dentro das costas de Yasuko, da mesma forma como fizera com o de Mérope, como se não fossem nada mais que imagens. E então, subitamente, meus dedos tocaram algo definitivamente material, no âmago de sua forma intangível de Espírito.

Minha mão envolveu algo em seu peito, um pequeno caroço. Quando arranquei o coração de Yasuko, ele não era mais do que uma pedrinha morna, uma safira com uma chama vacilante pulsando em seu interior. Mas, mesmo seu coração sendo de pedra, Yasuko se contorceu ao tê-lo tomado. Seu corpo dobrou-se ao meio e, engasgando-se, ele caiu prostrado no chão, como se lhe faltasse ar também.

Byakko me encarava com olhos enormes e pupilas espantosamente dilatadas, quase engolfando o prateado de sua íris. Gotas de seu sangue, mesmo as que verteram de feridas que já haviam cicatrizado, escorreram por seus membros e pingaram no chão quando ele se levantou e sentou, exaurido, diante do irmão que agora era aquele caído e indefeso. Ele encarou o coração de Yasuko com uma expressão sombria e insondável.

Minhas pernas tremeram quando o peso daquilo que eu tinha em mãos me atingiu, e eu cambaleei dois passos para trás. Apesar de ser um coração mesquinho, arrogante e, talvez, cruel, eu tinha uma vida em minhas mãos.

Em poucos segundos Yasuko começou a se recuperar, enquanto eu continuava atônita. Sua respiração se estabilizava e seu corpo voltou a responder aos seus comandos. Num instante, ele tentou se jogar sobre mim com um rugido, e teria arrancado meu braço para ter seu coração de volta, se Byakko não o tivesse interceptado e segurado contra o chão. Furioso, oscilando entre humano e animal sob o aperto asfixiante do irmão, golpeou-o repetidamente tentando se desvencilhar, mas não parecia tão poderoso quanto antes. Mesmo assim, a única coisa em meu foco era o sangue de Byakko que voltara a escorrer à cada novo golpe. Quanto mais ele podia aguentar eu não sabia, mas sabia que ele já havia perdido sangue demais desde o começo ao tentar me proteger sem destruir seu irmão.

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Pensar nisso me fez cerrar os punhos com força, e yasuko gritou, levando a mão ao peito.

Conclui rapidamente como ter seu coração me concedia poder sobre ele. Yasuko olhava da minha mão para meu rosto, cuidadosamente imóvel. De repente, passado seu torpor inicial, Byakko começou a gargalhar.

— Você consegue sentir a ironia disso? – Devolveu ao irmão seu próprio comentário.

Yasuko rosnou para ele, furioso.

— Me devolva... – ele me pediu entredentes. – Por favor...

O Espírito pressionava seu peito, numa mistura de dor e sensação de vazio.

— Você não sabe o poder que ele tem.

— Eu sei, sim. O poder de controlar você – rebati. – Sente-se.

Tanto ele quanto Byakko pareciam surpresos.

— Eu não sou um cão...

— Não. Você é um menino mal... Agora, sente-se.

Byakko soltou seu irmão e se levantou, e Yasuko se sentou, contrariado.

Apesar de meu tom de voz imperioso, minha mão e minhas pernas tremiam. Eu não me sentia tão forte por dentro quanto me fazia parecer. Estava assustada, queria abraçar Byakko e perguntar se ele estava bem, e o coração de Yasuko pesava uma tonelada. O peso de uma vida.

— Lóris, e suas memórias...? – Byakko me perguntou com relutância.

— Elas se foram... – Respondi. – Ela... saiu correndo. Não pude ir atrás dela.

— Por quê?

— Porque eu não conseguia mais suportar ver você ferido. Eu tive que escolher... – Enxuguei meus olhos marejados. – Me desculpe por todo seu esforço ter sido em vão...

— Não... – Ele me abraçou. – E Mérope? – Perguntou, apesar de ser capaz de ver, acima da minha cabeça, que ela se fora.

— Eu cumpri minha promessa.

— Então não foi em vão.

— Um...? – Eu perguntei. – Ele estava ferido. Ele... – Procurei ao redor. – Ele se foi...?

— Ele e Mérope estão livres agora – Byakko respondeu. – Não precisamos nos preocupar com eles. Os três irmãos vão para o mais longe de Yasuko que puderem...

Yasuko resmungou.

— Vamos embora... – Eu disse. – Vamos pra casa.

— Espera – Byakko me interrompeu. –Você está ouvindo isso?

— Isso o quê?

— Um choro baixo... – Ele respondeu. – Uma criança.

Byakko começou a procurar de onde vinha o ruído, rondando o salão de olhos atentos e orelhas em pé. Ele parou diante do arco ao fundo e eu o segui. Agora eu conseguia ouvir. O cômodo do outro lado estava completamente escuro, mas a luz do salão o adentrava e iluminava por alguns passos.

Ao contrário do que eu acreditara, meu eu criança não desaparecera castelo adentro; ao invés disso ela estava lá, no escuro, chorando encolhida.

— Mamãe? Papai...? – Ela chamava. – Byakko?

Ouvi-la chamando por Byakko me assustou. Ela o conhecia? Ele nunca havia me dito que havíamos nos encontrado antes do incêndio. Ela chamava o nome dele junto dos pais, como se buscasse ajuda. Byakko também parecia surpreso por ela, eu, pronunciar seu nome dessa forma. Mas, surpreendentemente, ela pareceu amedrontada quando ele se aproximou.

— Você está assustando ela.

— Mas ela disse meu nome – defendeu-se, confuso.

— Não... Não acho que ela esteja falando com você.

Pedi para que ele se afastasse um pouco e me abaixei diante dela, com nossos olhos na mesma altura.

— Oi... – eu disse-lhe.

Ela fungou, tentando tomar fôlego para responder.

— Oi...

— Você está com medo?

Ela negou com um aceno.

— Então porque está chorando?

— Porque dói.

— Onde?

— Aqui – pôs a mão sobre o peito. – Você viu meus pais? O homem de preto disse que ia me levar até eles.

Byakko franziu as sobrancelhas, guardando um ronco em seu peito para não assustar a menina.

— Não... – Eu respondi tristemente – Na verdade, faz muito tempo que eu não os vejo. Eles se foram...

— Foram pra onde?

— Para longe.

— Mas eles vão voltar? – Ela perguntou, com uma pontinha de esperança no olhar.

— Não – eu respondi, fazendo-a desviar o olhar inconsolável. – Eles não vão voltar, mas, um dia, você vai vê-los de novo. Você vai encontra-los. Você quer vê-los? – Perguntei-me, lembrando de uma coisa especial que trouxera comigo.

— Por favor!

Abri minha bolsa e tirei dela a única foto que tinha dos meus pais. A menina arregalou os olhos ao vê-la, e lhe entreguei a imagem.

— Você pode ficar com ela, se quiser.

— Posso mesmo?

— Um-hum.

Ela a observou por longos segundos até seu olhar triste voltar.

— Então... Então eu estou sozinha...?

— Não! Você não está. Você...

Vi a boneca que eu lhe dera abandonada ao seu lado. Obviamente o objeto não significava nada para ela, muito menos podia consolá-la. Então, abri minha bolsa outra vez, e tirei Damien de dentro. De repente, seu rosto se iluminou.

— Byakko! – Ela gritou, abraçando-o.

E então percebi que ela não chamava o Espírito, todo aquele tempo. Ela chamava seu amigo.

Seu melhor amigo.

— Ele vai cuidar de você – eu disse. – Vai ficar tudo bem.

Abraçei-a para tirá-la dali, mas Byakko pôs a mão sobre meu ombro.

— Está na hora – sorriu e se abaixou ao nosso lado.

Ele, então, abraçou nós duas. E, diante da minha expressão surpresa, a menina me disse:

— Vai ficar tudo bem.

Byakko nos apertou contra seu peito, forte demais. A alma, minha própria alma, me atravessou e permaneceu dentro de mim, de onde nunca deveria ter saído.

Foi como mergulhar no mar gelado e tempestuoso do inverno outra vez, com o ar faltando em meus pulmões, mas passou num segundo. Ao mesmo tempo, imagens inundaram minha mente; imagens da mente dela.

Nossas memórias:

Eu me lembrei da luz.

Uma luz quente e ofuscante, acuando-me; o fogo devorando as paredes e os móveis; o cheiro acre da fumaça escura que se acumulava sob o teto. Tão bem quanto qualquer criança de cinco anos poderia se lembrar de seu maior pesadelo.

E se lembrar da morte.

Byakko estava lá, diante de mim. Eu vi. Não passava de uma criança, igual a mim. Um menino com olhos e cabelos sem cor, como papel em branco, que refletiam o matiz bruxuleante do inferno ao nosso redor.

Não sei porque se disfarçava com uma máscara tão pueril, nem me lembro de algum dia ter-lhe perguntado. Talvez para me acolher como a uma igual, e para isso encolhera-se em um corpo pequenino, com os olhos, na mesma altura dos meus, examinando-me; ou para me acalmar, e por isso usava uma face tão gentil e familiar que poderia pertencer a qualquer dos meus amigos.

Ele piscou, e só então percebi o quão fixamente eu o fitava nos olhos. Ah, um pequeno gesto tão humano... Além disso, havia algo lá, no fundo de seus olhos... seria dissabor, tristeza, culpa? Ele carregava tanto de todos esses sentimentos... agora eu entendia.

Meus lábios se abriram e palavras lhes escaparam. E elas o fizeram se encolher e virar o rosto, mas não os olhos, que continuavam fixos nos meus.

Uma viga fumegante caiu ao lado de Byakko, que sequer se assustou, enquanto eu me encolhi e abracei mais apertado o boneco em meu colo: um grande gato branco de pelúcia, agora coberto de fuligem. Ele vai proteger você, meus pais diziam...

Só então o Espírito pareceu vê-lo, e o brinquedo o fez sorrir. Um gato de duas caldas, como ele próprio.

Espelhando seu gesto, eu sorri também; e ver-me imitando-o deixou Byakko desconcertado, a ponto de suas bochechas pálidas corarem.

E também, percebi, apesar de sua pele clara, as íris prateadas enormes e os cabelos branco-osso, a proximidade entre nós me acalmava, como se meu medo houvesse sido abafado por um espesso cobertor.

De repente, ele me estendeu sua mão pequena de criança e segurou a minha. Seus dedos eram frios, agradáveis contra minha pele, como uma brisa fora de contexto no meio daquele inferno.

No último instante antes do teto inteiro ruir, com sua estrutura completamente corroída pelo fogo, ele sorriu pra mim.

— Vocês podem ajudá-la? – A voz soou baixa e distante, mas preocupada, como se não quisesse que eu ouvisse o que conversava. – Eu não sei, não posso curá-la, mas vocês... Vocês podem e sabem. Estudaram toda a sua vida no templo para isso... Ajudem-na! – Suplicou.

Minha pele ardia, mas não havia sangue, porque o fogo cauterizara as feridas. Várias mãos me tocavam e me tratavam, e vários olhos me observavam; olhos com pupilas verticais, rostos com orelhas pontiagudas, bocas com presas, pessoas que se pareciam muito com animais. Eles moíam ervas, faziam unguento, acendiam incensos e sussurravam no ritmo da energia estranha e densa que pairava no ar. Eu vi minha pele se refazendo magicamente. Todos no lugar ocupavam-se comigo, um jovem de pele morena e olhos de cores diferentes enfaixava minha pele nova e frágil, menos Byakko, que mantivera distância todo o tempo...

Sentado num canto, com uma expressão muito tensa e cansada para uma criança, os olhos baixos amargurados, as mãos apoiando o rosto, a culpa vincando sua testa por algum motivo. Byakko só se aproximou, com passos cuidadosos e lentos, como se eu fosse um animal acuado, depois que todos os outros se foram, e se sentou diante de mim.

Apesar do corpo curado, algo em mim ainda latejava. Algo muito mais doloroso que o corpo queimado... Eu não sabia onde estava, só sabia da notícia que recebera assim que chegara. Onde estão meus pais? Perguntei. Estão mortos, o menino respondeu.

Doía na alma...

Byakko, como que lendo minha mente, fez sua proposta:

— Eu posso fazer a dor parar.

— Parabéns, querida – minha mãe me entregou o grande gato de pelúcia. – Feliz aniversário.

— É pra mim? – Meus olhos brilharam.

— Claro que sim – meu pai respondeu.

Eu o abracei e agradeci.

— Mas antes de sair para brincar com ele, você precisa ouvir uma história... – disse minha mãe.

— Uma história boa?

— Uma história boa – ela concordou. – Esse não é um presente qualquer. Quando estiver com medo ou achar que corre perigo, você pode pedir a ele para lhe proteger.

— Como um anjo? – Perguntei.

— Essas coisas não existem... – meu pai falou baixinho e minha mãe o encarou com severidade, fazendo-o se virar e arranjar algo mais para fazer.

— Talvez, querida. Talvez ele seja um anjo...

— E qual é o nome dele?

— O nome dele – respondeu, – é Byakko.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.