Renascer

O dia seguinte


Meu corpo está recoberto de uma moleza estranha e muito gostosa. Estou acordada, mas ainda não tive coragem de abrir os olhos. O sorriso em meu rosto, no entanto, já despontou. Aos poucos as imagens da noite anterior vão se assomando na minha memória e eu suspiro, alegre. Tateio a cama procurando o corpo forte de Peeta ao meu lado, mas ele já não está mais lá. Uma pena. Queria seus abraços, seu beijo, seu sorriso aberto. O amaldiçoo baixinho. Graças a ele, agora nunca mais vou me contentar com sobreviver. Agora que eu sei o que é estar extasiada, o que é amar uma pessoa completamente e ser correspondida, agora que eu aprendi que a vida é feita também de prazer, vou querer que todos os meus dias sejam assim. A minha depressão constante tem uma nova companheira: a satisfação.

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Finalmente abro meus olhos e decido sair da cama de uma vez. Levanto, totalmente nua e me contemplo no espelho em que me vi ontem. Nada pareceu mudar de um dia para o outro, mas eu me sinto tão mais feminina, mais madura, mais mulher. A Katniss do espelho é, de certa forma, outra pessoa. Corro para o banho e depois, enquanto me enxugo, encontro o pijama de Peeta dobrado, em cima da cadeira. Não resisto em usar a blusa que ele usa para dormir, ela é tão aconchegante, tão mais confortável que as minhas próprias roupas. E eu não pretendo ir a lugar algum agora. Meu corpo ainda está em um estado desconhecido, entre o desconforto e o relaxamento total.

Um miado conhecido chega aos meus ouvidos. Buttercup voltou, depois de uma estadia sabe-se lá onde. E parece estar feliz, pois assim que ele me avista, se aproxima e começa a roçar-se entre minhas pernas, ronronando...

– Gato horroroso! - Digo, acarinhando sua cabeça - Você tem muita sorte de eu ainda não ter te jogado fora, e mais sorte ainda de eu estar muito feliz hoje. Por onde você andou, posso saber? - O gato me dá um miado como resposta, o que me arranca um sorriso.

– Muito bem, você quer comer? Eu quero, estou faminta! Vamos ver o que Peeta fez para nós?

Buttercup parece ter reagido muito bem a palavra comer, uma vez que parou rapidamente de ronronar e saiu em direção ao andar inferior. Eu fiz o mesmo. Desci as escadas pulando degraus, ansiosa. Gritei no meio do caminho:

– E melhor que você esteja cozinhando, Peeta! Eu estou morrendo de fome e Buttercup finalmente se lembrou que tem uma casa!

Escuto duas risadas em resposta aos meus berros. Mas que droga! Não estamos sozinhos. Meu mentor, que passou meses e meses sem me visitar, enquanto eu me afogava em uma depressão sem fim, agora é uma presença constante na nossa casa.

– Docinho, quanta felicidade! - Haymitch fala, o tom sempre sarcástico - Imagino que você esteja mesmo com fome. Já está quase na hora do almoço, afinal. Mas não se preocupe, seu namoradinho já está quase terminando tudo...

– Muito obrigada por me avisar, Haymitch! - Respondo, desprovida de sentimentos - E o que te traz aqui novamente? Esqueceu que tem casa? - Pergunto, enquanto dou a volta na bancada da cozinha para alcançar Peeta. Ele sorri quando percebe que estou usando a sua camisa, mas percebo que tem algo mais no seu olhar. Trocamos um beijo rápido, quase um roçar de lábios. Haymitch volta a falar:

– Estou atrapalhando os pombinhos? Eu já vou embora, fique tranquila. Na verdade, vim pedir ajuda para o seu namoradinho e ele está de acordo. Preciso pegar algumas encomendas na estação de trem, mas já estou muito velho para carregar peso. Nada melhor do que usar a força bruta do garoto...

Que belo dia pra ele precisar de ajuda... Logo hoje, ele vem e estraga tudo...

– Não há bebidas suficientes para você aqui no Distrito mesmo? - Questiono, enquanto abro a geladeira, buscando algum resto de carne das refeições anteriores para dar ao animal faminto ao meu lado.

– Você sabe que nenhuma quantidade de bebida é suficiente para mim, não é mesmo? - Peeta acena em concordância com Haymitch. - Além disso, também pedi que me mandassem alguns grãos para meus gansos. Aparentemente, não tenho capim suficiente na minha casa e esses bichos vão começar a invadir todas as propriedades da Vila dos Vitoriosos...

O que aconteceu com esse velho para achar que realmente me deve satisfação? Seria melhor que ele estivesse em seu humor de sempre e, de preferência em sua própria casa... Só me resta interagir com todos e guardar a frustração para mim... Peeta não para de olhar para mim... Será que ele está se sentindo da mesma forma?

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Não há formalidades neste almoço. Todos nós nos servimos da própria panela e nos sentamos na pequena mesa da cozinha, abdicamos do luxo do conforto das cadeiras da grande mesa da sala. Eu mal espero que eles se sentem e já estou comendo, com toda a vontade do mundo. Os dois parecem alheios a mim, conversando, Peeta perguntando notícias da Capital e dos outros distritos e Haymitch respondendo a tudo com as poucas informações que tem. Ao ouvir o nome de Effie, observo um lampejo de sorriso surgir nos lábios do meu antigo mentor. Se os dois se amam, ou se amaram, acho que nunca chegaremos a saber.

Peeta me olha uma vez mais e agora tenho certeza que ele quer repetir a noite passada tanto quanto eu. Ele vem a minha direção, na intenção de tirar o prato sujo e levá-lo à pia. Mas quando se inclina para pegar a louça, para bem rente ao meu ouvido. Meu corpo se acende ao mínimo sinal de um toque mais íntimo de Peeta. Ao chegar bem perto escuto-o dizer:

– Não que eu não goste dessa camisa em você, mas ela foi posta do lado avesso. Acho que Haymitch pode perceber algo...

Inacreditável! Cogito sair correndo imediatamente do lugar onde estou, porém pondero que isso pode ser ainda pior para a minha situação. Decido começar algum assunto, talvez tudo passe despercebido pelo homem mais velho. Pergunto o que o fez nos visitar tão cedo, algo tão incomum desde que voltamos para casa:

– De verdade? Eu vim ver se vocês estavam bem. Ontem não consegui dormir, minha bebida acabou e ela é meu sonífero... Achei ter escutado alguns gritos seus, já estava bem tarde, então deduzi que tivesse acontecido alguma coisa. Ainda com os pesadelos, Katniss? Ou foi mais um ataque do garoto?

Acredito que minhas bochechas nunca estiveram tão vermelhas quanto devem estar nesse exato momento. De todos os dias em que Haymitch poderia escolher para ficar sóbrio, ele resolve escolher logo ontem. Maldito Peeta e sua mania de manter a janela aberta. Maldita eu, que aparentemente resolvi dar um pequeno show particular. Como eu posso ter gritado? Como eu pude não ter percebido? Eu estou tentando formular alguma resposta que contente a ele, sem que eu fale a verdade, mas não consigo pensar em nada. Estou afogada em vergonha.

– O importante é que estamos bem não é Haymitch? Já aprendemos a lidar com essas coisas todas... - Peeta, interfere, da melhor forma que pode. Ele também está constrangido, posso notar.

– Se vocês me dão licença, vou até meu quarto rapidinho - Fujo desta conversa antes que ela fique ruim demais para o meu pudor suportar.

Antes de levantar, percebi nos olhos de Haymitch que, de alguma forma, ele está começando a se dar conta do que aconteceu entre mim e Peeta na noite anterior... Eu saio ainda mais rápido do lugar, mas ainda estou nos primeiros lances da escada quando escuto:

– Garoto!!! O que você fez com a docinho?

Sem respostas de Peeta, Ótimo.

– Isso é simplesmente nojento! - Haymitch resmunga - Eu fico uma noite sóbrio e tenho que escutar vocês dois fazendo sabe-se lá o quê...

Acho que ele parou de falar. Agora é só esperar para que ele vá embora, volte a beber e esqueça tudo isso...

– Mas que belo presente de aniversário você ganhou, hein garoto!

Oh, não! Nunca mais vou. Velho idiota! Quem ele acha que é pra dizer uma coisa dessas? Escuto uma gargalhada retumbar pela casa. Não preciso ir para a sala para saber que é de Peeta. Como ele é capaz de rir disso? Eu vou matar os dois, ainda me resta habilidade suficiente com o arco e flecha para dar conta deles. Finalmente, Haymitch solta a frase que me toca mais profundamente.

– Eu acho que vou começar a vir menos aqui... Toda essa coisa melada de vocês dois, os filhos que vocês vão ter daqui a pouco... Isso aqui vai parecer uma creche e, garoto, já tive contato com crianças suficientes na minha vida...

A realidade me acerta com força total. Se todas as feridas não me tornaram inaptas a conceber uma criança, cada vez que eu e Peeta tivermos uma noite como a de ontem haverá a possibilidade de que eu engravide. E isso é completamente aterrorizante. Pior ainda é pensar em perder esse contato com ele depois de termos demorado tanto para chegarmos onde estamos, nos amando livremente, completamente... Haymitch serve para algo, afinal. Se não fosse por ele, jamais estaria considerando essa questão. Mas ele não me deu o mais importante: uma resposta eficaz para esse problema.

Subo para o quarto, sem a menor intenção de sair dele enquanto nosso mentor estiver na casa. Demora meia hora até que Peeta sobe e me avisa que está de saída, e que voltará no meio da tarde. Acredito que ele acha que eu não escutei nada da conversa dos dois, pois ele tenta manter um rosto impassível enquanto está falando comigo. Eu me despeço com um sorriso falso e ele me diz que me recompensará o susto pela visita surpresa que recebemos fazendo uma sobremesa nova pra mim. Eu preferia que ficássemos os dois, juntos, mas não posso negar uma oferta dessas.

O sol vai mudando a sua posição no céu e meu cérebro ainda ecoa as palavras do meu mentor repetidamente. Nós temos somente um posto de saúde, recém construído, em nossa cidade e a vergonha de ir até lá qualquer dia e pedir algum remédio que impeça a gravidez é muito grande. Fora a especulação que isto pode gerar, consigo ver os anúncios nos programas de televisão: "Por que Katniss Everdeen se recusa a ter filhos com Peeta Mellark"? Não importa que eu ainda nem tenha chegado aos vinte anos. Se esse tipo de informação cair nas mãos de pessoas erradas, nossa vida vai voltar a ser terrivelmente devassada...

Sento na cama inconformada de ter que escolher entre ter Peeta ou deixar de correr o risco de ter filhos, quando me vem a cabeça uma fala qualquer de minha mãe para uma das muitas mulheres que vinham em busca do seu auxílio. Sendo o 12 o mais pobre dos distritos, gerar novas vidas era algo apavorante para muitas delas. Grande parte delas pedia a minha mãe, alguma receita de algum chá ou de algum alimento que prevenisse a concepção. E se ela por acaso já receitou alguma coisa, certamente ela estará registrada no livro de plantas que eu não cheguei a terminar. Basta que eu olhe com cuidado. Nunca precisei me importar com isso antes, mas eu agora sou uma mulher, afinal.

Vou para a sala, todos os nossos livros estão guardados na mesma estante, assim que em pouco tempo já tenho o livro de plantas nas mãos. Viro e reviro as suas páginas, as mãos trêmulas, a vontade de encontrar uma resposta aumentando a cada minuto. Olho cada folha desenhada, cada palavra escrita com a minha caligrafia. Ainda nenhuma resposta. Não percebo o tempo passar, então quando eu escuto a voz grave vindo de algum canto do cômodo, me assusto de verdade.

– O que está acontecendo, Katniss? - Peeta pergunta, preocupado. Buttercup já está ronronando para ele, doido por alguma comida, ou talvez tentando avisar que algo está errado. Eu fingi estar muito bem, então é de se esperar o nervosismo na sua voz.

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Eu cogito não dizer o que está me incomodando pra ele. O medo é tornar tudo muito difícil entre nós, coisa que não vou poder suportar... Mas algo dentro de mim me impele a dizer, a contar, a não me retrair na sua presença...

– Eu não quero ter filhos - digo seca. Ele arqueia a sobrancelhas em surpresa. Depois, lentamente, vai se dando conta do motivo do meu rompante.

– Suponho que você tenha escutado todas as asneiras que Haymitch resolveu dizer durante esse almoço... - ele diz, resignado - Eu esperava do fundo do coração que você já tivesse subido as escadas e tivesse perdido o rompante de sinceridade dele. Não o leve a sério, Kat... - suas mãos a esta altura estão repousadas em meu ombro. E a reação imediata do meu corpo é responder a elas.

– Peeta, isto é sério! Ele não está errado. Podemos ter filhos a qualquer momento. A menos que eu me afaste de você. Ou a menos que eu encontre uma solução nas páginas destes livros - enquanto eu falo, me dou conta de que já posso estar grávida e empalideço. Ele imediatamente entende a razão de meu rosto ter perdido a cor e se apressa em dizer:

– Acho que nossa cota de azar já terminou, Katniss. Eu posso ficar afastado de você, se é isso que você quer, mas tenho certeza que há outras soluções que podemos tomar. Você ainda não achou nada neste livro, mas se ele se baseia em receitas da sua família, por que não ligar diretamente para ela?

E dizer o quê, penso: "mamãe, eu estou fazendo sexo e preciso de sua ajuda". Jamais.

– Não acho que seja uma boa idéia - rechaço.

– Eu não acho. Ela é sua mãe, Kat. Não há que o que temer. Ou eu mesmo posso buscar um médico, talvez possa falar com o Dr. Aurelius...

– NÃO! - meu grito ecoa pela casa - Não faça isso! Acho que falar com a minha mãe é a melhor das opções que nós temos... Eu vou fazer isso agora, mas você pode ir para outro lugar? Já vai ser constrangedor demais falar sobre isso sem ter você por perto...

– Claro que sim - ele responde - Você ainda está com vontade de comer aquela sobremesa?

– Muita! - digo, mas minto. Não consigo pensar em qualquer comida descendo pela minha garganta.

– Então vou prepará-la - Com uma piscadela Peeta sai do cômodo.

Ligo para minha mãe e tento desenvolver qualquer tema, para finalmente chegar ao ponto chave da conversa. Quando menciono algo sobre contraceptivos, percebo a surpresa na voz da minha mãe. É algo controlado, no entanto. Rapidamente ela muda seu tom para um mais conciliador.

– Eu não percebi o quanto você cresceu. O quanto você teve que amadurecer durante esse tempo. Vocês e Peeta estão juntos, ele está fazendo o que eu nunca pude fazer por você. Te trazer felicidade. Eu vou ajudar você no que precisar. Vou mandar tudo hoje mesmo. Eles devem chegar em dois dias, mais ou menos. Se precisar de qualquer coisa, me retorne.

Eu me despeço de minha mãe mandando um beijo e desligo o telefone. Essa conversa foi diferente das outras. Durou um longo tempo. Não houve culpa nem dor. Nem tristes lembranças da minha patinha e do meu pai. Foi o mais perto de um acolhimento que recebo dela em muito tempo.

Vou ao encontro de Peeta, que está na cozinha, fazendo todo tipo de comida. Ele costuma ter esse tipo de reação quando está nervoso. Não poucas as vezes, tivemos que distribuir comida para os nossos vizinhos mais próximos, ou para os meninos que trabalham na padaria. Eu amoleço meu coração ao vê-lo assim e resolvo contar o resultado da conversa.

– Eu falei com ela. Ela vai mandar tudo o que pode, mas as coisas devem chegar aqui em dois dias. Você acha que consegue esperar? - a pergunta é dirigida a mim também

– É claro que sim, Katniss. Nada que um banho frio não resolva, não é mesmo? - Ele responde, brincalhão.

– E o que vamos fazer com essa comida toda? - mudo o assunto, mas já estou mais leve

– Por hoje, coloco tudo na geladeira. Amanhã destinamos parte dessa comida a alguém. Mas eu tenho planos para essa sobremesa aqui - Ele aponta para um tipo de creme - E acho que você vai gostar deles

Eu mal pergunto qual e ele suja metade do meu rosto com a mistura. Está deliciosa. Eu rio e o sujo igualmente. E passamos algum tempo naquela brincadeira, aproveitando todo o tempo que temos juntos para sermos felizes.