Pare! Não se aproxime

6 - Dia cinzento


Capítulo seis

Dia cinzento

"Minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite"

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(Clarice Lispector)

Meu final de quinta-feira foi resumido em:

a) Lavar a roupa (por sorte tenho duas calças de uniforme);

b) Costurar o urso de pelúcia de forma desengonçada, o que resultou em um olho ficar mais torto que o outro;

c) Malhar no estilo “no pain no gain”;

d) Jantar e fazer o lanche;

e) Terminar o trabalho de literatura para entregar daqui um mês.

Revezei entre dormir, massagear minha cabeça dolorida, soar meu nariz por conta da gripe e decidir se ia ou não na festa do Henry. Apesar de ser daqui um mês o aniversário, ter o seu convite em mãos me deixou encucada e com fortes duvidas.

Ele ainda me mencionou como “fofa” atrás do papel. Era muito descarado. E duvidava que provaria sobre eu ser assim, até porque nem eu acho isso.

O dia começou nada bem, pois o namorado da mãe estava na cozinha. O pai da Sophie, e que me detesta tanto quanto a mulher. Suas ações perante a mim me deixavam mais culpada em relação a morte que presenciei.

Tomei o remédio por causa da tosse, esperando que logo melhorasse.

— Não se esqueça que terá de cuidar da minha filhinha o carnaval inteiro. Vamos aproveitar durante esses dias e não queremos interrupções ou ligações fora de hora. — Iniciou o homem.

— Está bem Senhor. — Afirmei para que não falasse mais.

Quando minha progenitora passou deu um tapa na bunda dela e começou a beijá-la de forma esfomeada, e mesmo comigo ali faziam isso. Mas era o que sempre acontecia quando ele vinha.

— Gostosa, estou doido para chegar março. — Berrou e lambeu o beiço.

Isso não é amor, é tesão apenas. Só pode.

— Eu também meu amor, não quero sair do hotel. — Devolveu.

Não fiquei para ouvir o resto e fui em direção a parada. Resmunguei o quanto eram nojentos até o veículo estacionar e eu entrar nele. Hoje teria química, umas das minhas aulas favoritas, e infelizmente teria de desperdiça-la com o Nagel.

Ao chegar no corredor minha mochila pesou mais. E constatei ter um tijolo nela quando fui pegar os materiais necessários no armário 666. Tinham colocado naquele instante e abominável estava escrito no objeto. Taquei rapidamente na rua em meio a risos e fui para a sala.

Sem Lorena para me derrubar e...

Tarde demais, ela tinha colocado um pé na frente e me olhou de forma macabra quando cai. Com o impacto meu pulso doeu, e tinha quase certeza que estava aberto. Mirei a garota da forma mais irada que pude e fui até a sala. Massageei o ponto machucado ao sentar na carteira do lado da parede, com a outra já colada a minha.

— Você não existe amiga. Muito má. — Riu Thalia e disse de maneira alta para que eu ouvisse.

Iria falar com elas no intervalo. Iria não, precisava.

— Bom dia alunos, vamos começar... — Foi cortado por um garoto entrando na classe rapidamente.

Era Henry, que chegava atrasado algumas vezes.

— Imaginei que era você, como sempre apressado. — Começou.

— Não ouvi o sinal. — Respondeu nervosamente.

— São só desculpas que nunca explicam sua demora. Faça o favor de se sentar ao lado da Ortiz. — Comentou.

Posicionou-se na cadeira e sorriu para mim.

— Perdoe-me por quase te deixar sozinha. — Sussurrou.

— Preferia que nem tivesse vindo. — Rebati sem o mirar.

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Não sei se foi por ver minha reação, mas logo senti um calor em minha mão. Era o toque rotineiro de Henry, que eu já conhecia muito bem. Fulminei-o e tirei de imediato.

— Isso mesmo, espero que continue a olhar para mim enquanto fala. Quis realmente que eu não estivesse aqui? — Questionou com calma e a voz se tornando mais rouca a cada palavra.

Suei rapidamente e fiquei estática, mas logo me recompus.

— E eu é que sei, não me importo se está presente ou que tenha faltado. — Rebati com fúria.

— Não terminaram com a fofoca ou posso dar a matéria? — Questionou em nossa direção.

Caraca! Até fiquei vermelha por conta da vergonha.

— Pode prosseguir o assunto professor. — Respondeu por mim o castanho.

Ainda bem que ele o fez, pois não sei se conseguia formular uma frase por conta do constrangimento que sentia. Ainda mais eu que nunca entendi o porquê dos outros ficarem atrapalhando ao invés de se esforçar um pouco para prestar atenção.

— Aprenderemos massa e volume de alguns elementos da tabela. Então darei uns exercícios e resolverão com a ajuda da apostila, depois darei a resposta e começarei a explicar.

Sorte que disso eu sei.

— Está rolando uma química agora entre nós. — Brincou o garoto ao meu lado, aproximando seu rosto do meu.

Odeio piadas desse tipo. Meti a mão em seu rosto e o empurrei quando estava a centímetros de mim.

— Vai dizer que eu não arrasei? — Questionou.

— Estou rindo potássios com o que você disse. — Confessei sem rir.

Ao procurar o que disse no material começou a gargalhar muito, tanto que seu rosto estava quase roxo. Ignorei-o e fiz as perguntas de número 1, 3 e seis enquanto o pressionava para começar o resto. Quando finalizamos o educador corrigiu e acertamos tudo, até porque dei uma revisadas nos de Henry.

O recreio veio rapidamente e fui em direção as três com o recado delas na mochila. Ia mostrar e perguntar o motivo de terem quebrado o acordo, mesmo que seja apenas uma que tenha descumprido.

— Com licença. — Iniciei em um baixo tom.

— Que foi garota? — Disse Megan, o olhar superior.

— Isso. — Sussurrei e peguei o papel, mostrando a elas.

— Eu estou cumprindo. — Devolveu.

— Também. — Rebateu Thalia.

— Eu não. — Disse a última na cara-de-pau.

— Por quê? — Estava curiosa.

Tinha conhecimento de que iria me arrepender disso.

— Vi você com o Henry na quarta, no intervalo ainda. Ele pegava em sua cintura e tu deixava, ficava se insinuando que nem a vadia que sempre foi. —Mentiu.

Tão feio que eu fiquei perplexa. Neste instante queria fugir e me trancar em casa.

— Não é verdade. — Contrariei com lágrimas nos olhos já.

— Tentar se fazer de santa não me engana mais. — Lorena.

— Por favor. — Implorei, sabendo o que viria.

Todas me pegaram pelos braços e pernas, levaram-me no depósito e começaram a me dar fortes tapas.

— É para aprender a não nos desobedecer, cadela. — Gritou alguém, pois não via nessa escuridão.

Acho que era Megan que me acertava com o salto e até tentaram me machucar com as vassouras, mas quando mexeram na maçaneta se afastaram. Salva pelo zelador.

Saíram com a cara deslavada e eu fui atrás com lentidão. Meu corpo todo doía e minha barriga. O homem pareceu não notar ou pouco se preocupar. Trotei até o banheiro, levantei meu moletom e me assustei com os hematomas – grandes e muito roxos. Em alguns locais o sangue saia, mas nada tão grave por não terem me batido por tanto tempo.

Coloquei minha toalha molhada nos mais doloridos e apertei. Gritei com o contato e meu choro veio junto com o soluço. Em meu rosto nada tinha, e isso me aliviou. O gongo soou e fui em direção a sala já no primeiro, pois sabia das limitações que tinha no momento.

Amélia, deixe-me te ajudar. — Disse uma guria.

Era a Jully. E como sabia meu nome?

Não falei nada e só me largou quando cheguei até a porta da minha turma. Quando me virei para dizer obrigada ela tinha se afastado. Na carteira em que era dona continha uns palavreados e rabiscos. O que nem li para me preservar.

— Como foi seu intervalo? — Era o de olhos azuis.

O tom sempre curioso. Entretanto sabia que que era uma preocupação falsa. Até porque populares não se misturam com o resto sem alguma intenção por trás. E com isso notei que não tinha me alimentado.

Anotação – selva escolar: Os reis da escola só se aproximam dos súditos para pedir algo, seja para realizar no futuro ou presente.

— Muito bom. — Ironizei.

Ele se calou e notei que eu tinha o dom de disfarçar. A aula continuou, sendo a última educação física. A única vantagem dela era porque sairíamos cedo. O professor vendo minha dificuldade me liberou para ir na enfermaria, porém antes de ir ao local peguei minha pasta.

— Você de novo? — Questionou.

Parecia não querer minha presença.

— Se não quer me atender vou indo. — Fui rude.

— O que houve, querida? — Mudou o tom de voz.

Tirei a minha veste de cima e ela viu os hematomas. Começou a colocar um produto que ardia e eu gemia a cada encostar. Era tanto que a tortura parecia não acabar. Ao tocar no meu pulso berrei. Então com isso começou a mexer nele e do nada a dor parou. O que significava que tinha botado no lugar.

— Marcarei um psicólogo para você. — Argumentou.

— Mas... — Tentei revidar.

— Não contrarie, precisamos tratar do seu problema com urgência. — Autoritária.

Se ela soubesse que eu já compareci em tantos e nada deu certo não falaria isso. O motivo do fracasso foram que esses ferimentos nunca foram feitos por mim, mas sim por outra pessoa. Ninguém conseguirá para-las. Nem eu, infelizmente.

— Está bem. — Aceitei.

A mulher me deu o papel e fui até o Sr. Clemente para que falasse o horário. E eram toda a terça, das 11h30 até 12h20.

— Sabe que é a última chance não? Já foi cinco vezes nos anos em que se seguiram, o número máximo que poderemos permitir. — Começou.

— Entendo. — A cabeça baixa.

— Agora pode ir. — Finalizou.

Arrastei minha perna e sai pelo pátio até a parada. Meus olhos novamente vermelhos e penando para se aliviar em lágrimas. Não havia Henry no banco, nem algo que me distraísse. Com isso em mente entrei na condução, permitindo-me chorar.

Coloquei o telefone da minha residência no ouvido e avisei a minha chefe que já estava indo, mas que não almoçaria lá. Peguei meu lanche praticamente destroçado da mochila e comi. Era sanduiche de peito de peru com alface, tomate e ricota. O suco de melancia complementou a alimentação.

E assim termina a manhã de uma sexta-feira praticamente cinzenta.