The Way You Look Tonight

Quando o amor floresce


Um dos fenômenos mais interessantes deste mundo é o quanto todo aquele discurso acerca do poder transformador do amor nos soa risível e clichê em infinitas circunstâncias, entretanto, quando finalmente somos inebriados por tal sentimento, nos enxergamos ali, sob uma nova ótica, prontos e mais do que dispostos a mudar e fazer tudo certo. O antigo Poseidon riria da minha cara, se considerando muito superior e correto, no direito de fazer o que bem entendesse pois, afinal, era seu o poder. Não é à toa que os deuses são imortais: precisamos de milênios para amadurecer...

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Concentro-me em minhas ações ao ajeitar a gola da camisa diante do espelho e sinto-me um adolescente vestindo-se para seu primeiro encontro, todo consternado acerca de qual será a opinião dela sobre mim, se a roupa está boa o suficiente, se o cabelo não estará desarrumado demais e uma infinidade de coisas que fazem minha cabeça parecer que vai explodir. Encaro as capinhas de DVD que repousam sobre meu criado mudo e não me decidi ainda se elas soam mais como um ultimato, uma possibilidade ou um desafio, e só a ideia maluca de tentar algo e criar esperanças em relação à Atena, congelando até o último centímetro de minhas entranhas. Eu sou mesmo um acéfalo...

Balanço a cabeça e resolvo lidar com uma situação por vez, já que a iminência do jantar faz com que a divagação sobre os filmes se torne uma questão adiável. Respiro fundo e parto em direção do quarto de Atena e é curioso o quão pouco eu realizava este trajeto pelo Olimpo até pouco tempo atrás e agora já me soa tão comum, os pés conhecendo bem o caminho, como se fora habitual, como se fora simplesmente correto. Entretanto, lá estava eu, indeciso, estacado em frente à sua porta, mal podendo escolher entre manter ou tirar as mãos dos bolsos, mas enfim respirando fundo e decidindo-me por bater timidamente.

Ao me atender, Atena sustinha uma expressão leve e seu corpo todo assim o era, conforme fluíam seus movimentos. Ela era inteira uma ninfa, uma deusa, uma dama. Daquelas que transbordam os olhos de encanto e que mereceriam grandes obras de arte e esculturas, mas nem o mais hábil pintor seria capaz de fazer jus a delicadeza de sua pele ou ao espectro único de cores em seus cabelos.

Conduzi-a silenciosamente até a saleta onde tinha preparado a mesa no melhor estilo Dama e Vagabundo que pude (inspiração mais apropriada entre eu e ela, impossível). Bem no centro, uma cloche tirada não sei de onde, mantinha aquecida uma quiche de coloração dourada aparentando estar deliciosa, cortesia de Perséfone.

—Uau – espantou-se Atena ao se sentar diante de mim – O cheiro está maravilhoso! Devo confessar que esperava algo como nuggets ou batata frita, então definitivamente você me surpreendeu.

—Minha vez de confessar, então, que não sou o cozinheiro responsável – afirmei com certo riso na voz – Eu até tentaria fazer algo, mas com minhas habilidades limitadas você provavelmente interpretaria meu completo fracasso como uma tentativa de te matar.

Sua gargalhada era como a sensação do estourar de bolhas de champanhe no céu da boca: suave, embora inesquecível e, mesmo quando as risadas cessaram, ainda havia um resquício daquela alegria no canto de seus lábios.

—Agradeço pela consideração. É uma grande evolução considerando nosso histórico, não acha?

—Pois é! Não que eu não tenha ficado tentado a provocar aquele velho olhar de desaprovação que você tinha para todas as minhas ações, mas achei melhor não arriscar nossa recente parceria. Tá vendo só, uma semana na sua companhia e você já me transformou num chato!

Atena apenas balançou a cabeça e revirou os olhos diante de minha falsa exasperação, enquanto separava a espátula para cortar uma fatia da quiche.

—A aparência está ótima, mas é realmente seguro?

—Pode confiar. É obra da Perséfone e, não fosse sua doçura e beleza inegável, eu diria com certeza que Hades a sequestrou pelos dotes culinários.

Falar da minha sobrinha me fez recordar seu jeito tão particular de boa ouvinte, de mulher tão menina, que é rainha, mas não poupa esforços em ajudar sem pedir qualquer justificativa. Talvez justamente por ser assim, a antítese perfeita de meu irmão, sempre tão jovem, tão viva, que nem questionei quando, ao me entregar a bandeja ainda quente, Perséfone tenha somente me dirigido um profundo olhar logo antes de um tímido sorriso desabrochar em sua face, ela virar-se e ir embora. Em seu singelo silêncio, acho que, naquele momento, a deusa primaveril compreendia o mundo melhor do que qualquer um.

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Chamado de volta para o presente, assisti, então, a deusa da sabedoria, como sempre, muito absorta em seus movimentos, servir um generoso pedaço a mim e depois a si mesma sem deixar cair uma migalha sequer e, os deuses que me perdoem, mas era quase sensual a maneira delicada com a qual ela soprava cada garfada antes de efetivamente leva-la à boca.

O jantar se estendeu por todo o tempo de cada uma das nuances lilases no céu serem substituídas por um azul cobalto muito vívido e, entre o dulçor das uvas no vinho em nossas taças e a enorme profusão de assuntos multiplicados em nossa conversa, jamais imaginei que uma única noite pudesse me fazer tão grato por, enfim, encontrar sentido em estar vivo.