Lost It All

Hell Above - Primeira parte


A única coisa que me acalma no momento é escutar o som chapinhado de meus passos pela rua, devido à chuva agradavelmente forte do momento. O capuz cobre meu rosto, escondendo minha expressão assustada de olhares estranhos ou de uma ajuda politicamente correta. Sinto o peso das palavras de Reyna sobre meus ombros, mesmo sem entender o que queriam dizer:

“A culpa é toda sua.”

Culpa de que? De Nico ter sumido essa noite? Dele estar cortando-se cada vez mais fundo? Ah, vá a merda. Eu nunca quis para que ele ficasse mal ou quisesse se matar, todos sabem que na verdade sempre me esforcei ao máximo para que ele se sentisse bem. Não faço a menor ideia do que meu amigo passou, mas tudo que eu mais quero é que ele não seja como minha irmã e desista, quero que entenda que não um fraco ou um perdedor: porque o que vence, é aquele que tenta. Pode até falhar, mas tenta.

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Respiro fundo, parando no meio de uma praça próxima a um cemitério. Tiro o capuz, sentindo as gotas escorrendo pelo meu rosto e se misturando com o suor que formou-se em minha testa. Ergo meu rosto para cima e, fechando os olhos, relaxo meus braços ao lado do corpo; aquela sensação de pavor repentinamente some e é substituída por um calor gostoso. A chuva sempre me acalma, como um abraço apertado. A ansiedade insiste em voltar com tudo; aperto minhas pálpebras com força, engolindo um nó que se forma em minha garganta. Merda, merda, merda. Não posso chorar agora. Tenho de encontrar Nico, dizer que me importo e impedi-lo de se martirizar ainda mais por seja o que for...

Aqueles olhos são tão sombrios que nem parecem de um adolescente de quinze anos, e sim de um homem que já está cansado da vida. E ele realmente está. Cansado de ser julgado ou ignorado, cansado de pensar ou ser frio, cansado de não ter voz ou vez, cansado de sentir ou estar vazio: cansado de viver. Aqueles olhos... Aqueles olhos gritam de forma muda por um socorro que jamais chegará. O fato é que esse pedido não chega nem perto de ser atendido, uma vez que tudo que ele faz é esconder-se e impedir que os outros saibam o que se passa em sua cabeça. Eu daria minha alma para saber o que acontece com Nico, daria sem hesitar. Faço tudo para vê-lo feliz.

Fiz uma lista das coisas com as quais não posso brincar/falar com ele, guardei carinhosamente aquelas que o fazem sorrir. Escutei as músicas que ele gosta, com aqueles sons bizarros e incompreensíveis, mas que o faziam bater a perna e balançar a cabeça. Passei a ver beleza em lugares macabros ou sinistros, apreciar aqueles desenhos estranhos que fazia e assisti-lo interpretar formas de arte que para mim eram sem sentido. Adquiri com ele o gosto pela leitura, pelas variadas formas em que se pode organizar uma frase e deixá-la bonita. Ainda rio toda vez que recebo um olhar frustrado dele, quando erro a conjugação dos verbos no pronome “tu”. Acalma-me sentir a mão constantemente fria dele no meu ombro, em um momento em que estou à beira de um ataque de pânico. Agonia-me ver aquelas cicatrizes e não poder beijá-las, dizer que ele é muito mais que isso, mesmo que afirme o contrário. Agora você deve estar se perguntando: por que Jason Grace se sinte assim?

Porque estou psicoticamente apaixonado por Nico di Angelo.

E a cada nova marca naquele braço é uma nova facada no meu coração.

Olho para o lado, para o cemitério na outra quadra, com seus mausoléus repletos daquele goticismo que ele tanto adora. Meu coração aperta, ao imaginar o que ele pode estar fazendo no momento. Aquele lugar cheira a morte e, por incrível que pareça, isso me atraí; faz com que eu dê passos lentos em direção ao portão de ferro. Está trancado com um cadeado, mas nada me impede de voltar a alguns anos atrás (época em que pular muros dos vizinhos era normal) e escalar a grade. Chegando do outro lado, sou recebido pela estátua de um anjo, que olha para mim fixamente com aqueles orbes de pedra.

— O que foi? – pergunto, mesmo sabendo que uma estátua não responderia ­– Eu já vou para o inferno mesmo, então qual o problema?

O silêncio arrepiante perdura, fazendo-me inspirar fundo e soltar o ar vagorosamente por meus lábios entreabertos. Há um pequeno corredor entre os túmulos, pelo qual caminho sem pressa alguma; sinto falta de um cigarro, nesse clima até cairia bem, porém prometi a Bandit que pararia antes de me encontrar em um estado grave de vício. Qualquer coisa pode ser vício hoje em dia.

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Sou arrebatado de meus pensamentos por um sou incomum num cemitério: garrafas. Mais precisamente: garrafas sendo quebradas.

Meu corpo inteiro entra em alerta, mas o medo me impede de virar-me em direção ao som. Vamos para pensar... Ou tem um gótico bêbado por aqui, ou os irmãos Winchester* resolveram fazer algum ritual maluco. Com essas duas possibilidades, minha imaginação acaba criando a imagem de Sam e Dean* cantando em latim para um gótico bêbado dançante. A cena me faz prender o riso e relaxar, coisa que me ajuda a voltar-me para o som e caminhar naquela direção. Depois de alguns passos, acabo indo parar em outro corredor, onde há um mausoléu que chega a parecer um pequeno castelo, e me deparo com a última pessoa que eu imaginaria estar num estado daqueles. Sentado nos degraus de pedra negra, com duas garrafas espatifadas no chão e outras três ainda intactas, os cabelos grudando no rosto e as mangas cobertas de uma fina camada de sangue recente:

Nico di Angelo.

Meu coração falha uma batida, para logo depois acelerar loucamente. Corro em sua direção e me ajoelho ao seu lado, puxo um de seus braços observando os vários novos cortes que foram feitos apenas naquela região. Não estão apenas nos pulsos, se estenderam por toda a extensão do mesmo, desde o cotovelo para baixo. Sua profundidade é mínima, mas é o suficiente para fazê-lo sangrar e sentir bastante dor, principalmente nessa quantidade tão alarmante. Envolvo seus ombros em um abraço apertado, sentindo as lágrimas insistindo em sair; deixo-as escorrer, não é como se Nico esperasse que eu mantivesse a postura numa situação como essa.

Mesmo com meu choro compulsivo, ele não esboça uma mísera reação. Isso me deixa ainda mais desesperado, fazendo com que soluços comecem a escapar, em uma dolorosa súplica para que tudo seja um pesadelo. Um terrível pesadelo, daqueles que eu acordo sobressaltado, suando frio e tremendo.

A voz do meu amigo, em um sussurro incompreensivo faz com que me afaste.

— O que?

Ele repete a frase, mais ainda num tom baixo demais para que eu possa entender.

— Ainda não escutei...

Seus olhos se fixam nos meus, aquele negrume todo faiscando com uma raiva que nunca imaginei existir naquele garoto tão contido. Sua mão direita agarra uma garrafa e a ergue como se quisesse me acertar; jogo o corpo para trás, levantando logo em seguida. Sua voz sai rouca:

— Eu disse... – tosse – A culpa é toda sua.

Nico fica de pé, para logo depois atirar a garrafa na minha direção.

Desvio-me com facilidade, e escuto o vidro se estilhaçar bem atrás de mim. Por que?

— O que?! O que eu te fiz?!?

Os olhos dele se enchem de lágrimas, mas ele trinca o maxilar, prendendo-as.

­— Você sabe muito bem, Jay. – ele cospe a frase em mim, atirando outro recipiente logo em seguida – Eu tenho certeza de que você sabe.

— Não sei! – digo – Mas você poderia me explicar e eu entenderia...

Imediatamente, me arrependi de ter dito isso. Ele dirigiu a mim o sorriso mais cínico que já vi, e agarrou-me pela gola do casaco, deixando meu rosto a poucos centímetros do dele. Seria uma situação engraçada, uma vez que Nico é mais baixo que eu, mas no momento tudo que eu sentia era desespero.

— Entenderia? – responde com sarcasmo – HAHA, que hilário! Já pensou em fazer stand up?

Aquela ironia toda não costumava ser dirigida a mim daquela forma, como se quisesse me machucar. Nico parecia estar querendo me destruir, mesmo que fosse apenas com palavras. Ele me empurrou, deixando uma distância razoável entre nós.

— Não, você não entenderia Jason! Você não conseguiria entender qual a relação de garrafas cheias de bebidas alcoólicas e a sua existência! Você não consegue entender nada! – a última garrafa é atirada – Você não consegue entender o que eu sinto por você!

Uma vez escutei uma frase de um anônimo, que dizia que as palavras regem as nossas vidas. Tudo o que somos é constituído por aquilo que dizemos, sejam mentiras ou verdades, realidades ou ilusões, elogios ou insultos. E aquelas palavras... Aquelas palavras regeram a minha ação, que por muitos seria considerada um crime.

Mas se eu era um criminoso, Nico é meu cúmplice.