Os verões em Hawkins eram sempre breves.

No momento em que a sirene do último dia de aula tocava anunciando o fim do período letivo e o inicio das férias, todo e qualquer relógio -- cujos ponteiros pareciam se movimentar com insistente vagarosidade em qualquer outra época do ano -- começavam a correr em velocidade inversa a usual, transformando dias inteiro em breves instantes de calidez, fazendo com que cada minuto que não fosse gasto em pura diversão parecesse desperdiçado.

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As pessoas geralmente tinham plena consciência disso, tanto que era comum vê-las nas ruas já nas primeiras horas do dia, debruçadas sobre a grama do parque da cidade, desfrutando de um piquenique ao ar livre, com seus Walkmans plugados em algum hit do momento enquanto planejavam entre si como passariam a tarde sem nem mesmo terem cumprido todos os planos para a manhã.

Não importava quando, os dias quentes eram sempre consumidos por uma ansiedade coletiva provocada pela vontade de aproveitar cada segundo das férias ao máximo, pois afinal: os verões em Hawkins eram sempre breves.

Bem.

Quase sempre.

Em sua curta vida de apenas quinze anos completos, Mike Wheeler não se lembrava de ter vivido um verão tão longo como esse. Nem tão tedioso ou desinteressante.

Sentado na varanda da residência Byers, enquanto esperava pela volta do amigo que saíra de viagem há quase três semanas, ele vasculhou mentalmente suas memórias em busca de um único momento de diversão que não envolvesse os dias em que ficou no porão de casa treinando acordes variados em sua nova guitarra.

Não encontrou muitos.

Tudo era surpreendentemente chato sem Will por perto.

Os dias ficavam menos quentes, ir ao cinema era menos divertido e as férias pareciam perder a aura de descontração que que geralmente possuíam.

O grupo de amigos ficava desfalcado e aquela sensação de que tinha algo faltando estava sempre lá.

Mike já havia sentido isso antes, há alguns anos dos quais não queria se lembrar, quando o amigo fora sugado para o Mundo Invertido.

Não era a mesma coisa.

Dessa vez Will não estava em perigo, estava percorrendo as estradas da Califórnia em decorrência de uma viagem que o irmão havia ganhado numa promoção do Estúdio de Fotografia em que trabalhava. Nancy naturalmente foi junto, era a oportunidade perfeita pra que comemorassem o noivado recente.

Max havia lhes dado uma lista inteira de coisas que deveriam fazer quando chegassem lá. Sendo uma Californiana de carteirinha e exagerada como era, segundo ela seria um crime se eles não provassem coisas como o delicioso sorvete da Sorveteria Salt & Straw em Los Angeles ou assistissem de perto as gigantes ondas do mar da praia de Malibu.

Era uma descrição tentadora, digna de paraísos tropicais.

Mike quase foi também, mas algumas pendências o impediram. Como o fato de estar ensaiando arduamente pra entrar na banda do Colégio, uma atividade extra curricular muito valiosa quando se é um aluno do ensino médio.

Agora o verão estava a uma semana do fim.

A notícia boa é que finalmente veria o amigo de novo, ele pensou sorrindo ao ver o conhecido Ford LTD de Jonathan Byers dobrar a esquina.

Will estava de volta.

Antes que o motorista tivesse tempo de sequer desligar o motor, Mike correu em direção ao carro, abrindo uma das portas traseiras.

Ele sorriu, contemplando o semblante surpreso do outro.

"Olá, Sr.Califórnia."

"Mike?!" exclama, saindo do carro "Pensei que a gente só ia se encontrar na sua casa hoje mais tarde."

Finalmente de pé, Will parece diferente.

Ele definitivamente cresceu alguns centímetros nos últimos dias, ambos estão quase da mesma altura.

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Agora não havia a menor chance de Mike apoiar o queixo no topo de sua cabeça quando o abraçasse dali há alguns segundos.

Droga.

Ele coloca as mão nos bolsos, encolhendo os ombros.

"É, mas um passarinho me contou que você tomou tanto sol esses dias que ficou parecendo um legítimo Californiano." diz, olhando de relance pra Nancy "Não consegui esperar e vim conferir de perto."

Will balança a cabeça em negação, gesticulando em direção ao próprio corpo com as mãos.

"Então, eu pareço mesmo?"

Californiano ou não, ele parecia bem.

Muito bem, na verdade.

A pele normalmente pálida estava dourada de sol, o rosto pigmentado com pequenas novas sardas que pontilhavam seu nariz e bochechas, os olhos maiores, mais brilhantes e de alguma forma, um pouco mais verdes.

Por Deus, ele estava lindo.

Ele era lindo.

Mike franziu a testa, encenando um suspiro desapontado.

"Infelizmente sim. A Max finalmente conseguiu te corromper, eu estou decididamente decepcionado."

Will revirou os olhos, cruzando os braços no peito marcado pela fina regata que usava.

"Não é culpa minha se você não estava lá pra impedir."

"Ok, eu tenho um pouco de culpa, admito." levantou as mãos teatralmente em sinal de rendição "De qualquer forma não posso dizer que não gosto dessas marquinhas de sol aí." disse, apontando para a coloração bicolor que cobria a pele da clavícula do outro

"O que eu posso fazer? Protetor solar não funciona direito na Califórnia."

"Então se eu te abraçar corro o risco de ser corrompido também?"

"Cala a boca, Wheeler." ele diz rindo, jogando os braços em seu pescoço

Mike o aperta contra si, seu corpo inteiro encontrando um maneira única de dizer em um só abraço 'senti sua falta. não é justo que você vá embora assim, Will Byers.'

"Você teria gostado." ele gagueja em seu ouvido, a respiração saindo em intervalos curtos

"Duvido muito." brinca teimosamente "Você gostou?"

"Uhum."

"Droga, então, sim, eu teria gostado."

Will sorri, se desvencilhando do aperto.

"Vou só guardar as coisas e a gente já pode ir pra sua casa. Tô ansioso pra saber o que você fez o verão inteiro."

"Nada muito divertido, eu garanto." ele ri, sentindo o corpo ainda aquecido com o abraço de poucos segundos atrás

Não importava mais.

Will estava de volta e agora ele tinha certeza que os últimos dias de férias passariam voando como de costume.

•••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••

Mike abriu a porta que dava acesso ao porão, agachando-se um pouco ao descer as escadas com o amigo em seu encalço.

Ficar naquele cômodo ultimamente vinha sendo uma tarefa árdua, ambos já estavam crescidos o suficiente pra que suas cabeças as vezes esbarrassem em algumas das coisas penduradas no teto baixo do local sempre que perambulavam por lá.

Felizmente isso não tornava o ambiente menos aconchegante, era o lugar deles afinal.

"Como foi a viagem?" perguntou, sentando-se no velho sofá, observando o outro se desfazer da mochila colocando-a na mesa ao lado

"Na maior parte do tempo foi legal. Quando o Jonathan e a Nancy não estão agindo como idiotas apaixonados até que são boa companhia."

Mike lançou-lhe um olhar solidário.

Aguentar aqueles dois se comportando como recém casados em lua de mel devia ter sido extremamente chato.

"E a Califórnia, como é?"

Will suspirou, os olhos apertados como se vagasse por memórias muito boas.

"Bonita e quente. As paisagens são lindas, eu praticamente não larguei o meu caderno de desenho. Você teria adorado."

"Eu bem que queria ir."

"Eu bem que queria que você tivesse ido."

Mike sorriu.

"Pois é, mas pelo menos tive muito tempo pra praticar. Olha só." levantou-se caminhando em direção a uma das paredes onde sua Fender Stratocaster novinha em folha o aguardava

Ele pegou a guitarra nas mãos sentando-se novamente e com uma habilidade praticada começou a tocar, arranhando acordes de uma canção a qual sabia que o amigo conhecia muito bem.

Quando terminou suas mãos doíam um pouco, ainda desacostumadas á intensidade em que tocara.

Mas aquilo não importava desde que Will continuasse sustentando o sorriso surpreso emoldurado em seu rosto naquele exato momento.

"Isso é...?"

"Should i Stay or Should i Go. Sua música favorita, né?"

"Como você sabe?"

"O Jonathan me contou. Eu meio que passei o verão inteiro tentando tocá-la."

"Ficou incrível."

"Você gostou?"

"Claro que eu gostei! Você é muito bom. Em breve vai ser o novo Slash ou algo assim."

Mike jogou a cabeça pra trás, gargalhando.

"Só se você me prometer que será o próximo Van Gogh."

Will riu.

"Prometo tentar." corou, envergonhado "Sabe, foi o Jonathan quem me apresentou The Clash. Ele conhece muitas bandas e músicas bacanas, posso pedir que te indique algumas pra você praticar."

"Isso seria muito legal."

"Pode ser, mas vai se preparando porque ultimamente ele só anda ouvindo coisas românticas."

"Acho que nisso a Nancy tem um pouco de culpa no cartório." brincou, dedilhando as cordas metálicas do instrumento

"Nem me fale, o noivado deles e tudo mais... Mas apesar disso, são músicas muito boas. Tem uma chamada Patience do Guns N' Roses que tocou no rádio a viagem inteira e-"

Ele se deteve, parando abruptamente.

Um silêncio constrangedor preencheu o ambiente, o tipo de silêncio que se instaura quando alguém diz ou faz algo de errado.

"O que foi?"

"Desculpe."

"Pelo que?"

"Você sabe."

"Não sei mesmo." Mike encolhe os ombros, abismado

Will suspira, olhando para qualquer lugar do local que não fosse o seu rosto.

"Eu aqui, falando de músicas românticas quando não faz nem três meses que você terminou o seu namoro. É meio insensível da minha parte."

Ah, isso.

"Oh, isso."

Sim. Ele havia terminado o namoro há poucos meses.

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Sim. Ainda não sabia muito bem como se sentir sobre o assunto.

Acontece que quando se tem uma namorada aos doze anos de idade, a infância ainda é uma fase que está em pleno vigor e normalmente nesses casos você não espera que vá crescer e mudar. Que seu jeito de pensar, de agir ou até mesmo de se comportar podem se transformar tanto.

Mas isso tinha acontecido com ele e a ex-namorada. Der repente haviam perdido o magnetismo infantil que os conectava.

Eleven se tornara Jane, uma garota forte, decidida, dona dos próprios desejos e de sonhos que construíra e nos quais Mike não se encaixava.

Ele estava contente por ela, de verdade.

Vê-la se tornar a versão de si mesma que sempre almejara ser era incrível, mas não apagava o fato de que as mudanças ocorridas nos dois modificavam consideravelmente seu relacionamento.

Ele sabia, do fundo de seu coração, que amava ambas: Eleven e Jane, a sua maneira. Mas também sabia que só havia uma pela qual tinha se apaixonado quando criança.

Um dia o inevitável simplesmente aconteceu, ele e Jane haviam resolvido pôr um fim a relação da mesma forma que ela começara: como amigos.

'Só porque não estão mais juntos, não quer dizer que vocês nunca se gostaram.'

Sua mãe lhe dissera uma vez, enquanto ele estava deitado no sofá, refletindo sobre tudo o que falaram durante a conversa que culminou no término.

'A vida tem dessas coisas meio inesperadas e um pouco dolorosas, mas absolutamente necessárias.'

No fim das contas, ela tinha razão.

A principio tinha sido estranho, quase como quando você experimenta um novo par de tênis e sente que seus pés não se acostumam a forma como ele pisa, mas conforme o tempo vai passando ele se torna cada vez mais confortável.

Mike sabia que essa era uma analogia esquisita, mas era assim que se sentia sobre o assunto quando pensava sobre ele, o que estava se tornando cada vez mais raro ultimamente.

Ele suspirou, encarando o amigo finalmente.

"Na verdade não, você não tá sendo insensível. Tudo isso é passado, sabe? Eu já segui em frente e tenho certeza que a Jane também."

Will o fitou boquiaberto.

Suas pupilas estavam dilatadas e os olhos arregalados, Mike notou com diversão.

Ele realmente havia sido pego de surpresa.

"Sério?"

"Sim."

"Posso trazer as músicas e você não vai ficar se sentindo mal?"

"Claro."

"Nem ficar chorando no meu ombro?"

"Ei, eu nunca fiz isso!"

"Há sempre uma primeira vez, ainda mais quando se está de coração partido."

"Você só se esqueceu de uma coisa."

"O que?"

"Meu coração não está partido."

'Na verdade, está mais do que bem. Principalmente agora que tenho você aqui.' pensa, mas não diz

"Ok então." ele ri, parecendo aliviado "Tá meio abafado aqui, você se importa se eu abrir a janela?"

"O Sr. Califórnia já está com saudades do sol?" provoca, sorrindo

Will dá de ombros.

"Talvez você tenha razão, talvez eu tenha sido mesmo corrompido." ele responde sério e Mike se perde um pouco no tom melodioso de sua voz

No momento em que abre as venezianas da janela, os raios solares invadem o cômodo com intensidade surpreendente como se só estivessem esperando por isso.

Will fecha os olhos, sorrindo de contentamento, inclinando o rosto como quem erguia os lábios e pedia por um beijo, a luz translúcida engolfando-o, banhando toda a extensão de sua pele.

A visão é, realmente, muito boa e Mike desvia o olhar, sentindo o rosto esquentar com algo que não tinha nada a ver com o calor do verão.

E lá estava ele.

Aquele sentimento de novo, aquela fagulha estranha que aquecia seu corpo sempre que se permitia olhá-lo assim.

Ele não sabia explicar.

Haviam momentos em que Will era simplesmente Will.

Seu melhor amigo de uma vida toda, a pessoa com quem ele compartilhava um pouco de si mesmo todos os dias desde a infância.

E haviam momentos em que ele era... alguma coisa.

Alguma outra coisa que Mike não sabia ao certo como nomear, mas que não inspirava nele sentimentos simples e confortantes como amizade e sim emoções complicadas envolvendo desejos que ele certamente não deveria ter, não por um amigo.

Mike não é nem um pouco bobo.

Ele sabe que o mundo não é preto e branco, que as pessoas não se limitam a ser apenas o que é amplamente aceito, que as linhas entre o que todos dizem ser certo e as coisas que realmente são certas para cada um de nós são muitas vezes turvas perante um olhar um pouco mais atento.

Há muito mais cores pincelando esse arco-íris de relações do que o simples acinzentado que define a maioria.

Isso, claro, não torna as coisas menos complexas, apenas mais e mais confusas, pois o que quer que fosse aquele sentimento crescente que ele nutria por Will, não diminuía a importância de tudo que sempre soube sobre si mesmo.

Mike sabe que gosta de garotas.

Gosta de quando elas se inclinam para ele, cochichando e rindo em seu ouvido no intervalo do almoço.

Gosta de como sorriem admiradas quando diz algo inteligente durante alguma aula do Sr.Clarke.

Gosta do som de suas risadas, do aroma adocicado de seus perfumes, de como suas silhuetas ficam bem desenhadas nas roupas de ginástica que usam durante as aulas de Educação Física.

E elas gostam dele também.

Sabia disso pelas risadinhas que algumas davam quando andava pelos corredores, ofegante e suado depois de uma partida de futebol particularmente exaustiva, o cabelo negro e úmido colado a testa devido ao esforço físico recente.

Sabia disso pela forma como Grenda Gale --- uma colega da turma de Espanhol --- se escorava em seu corpo ao se inclinar sobre o balcão na fila do almoço, fingindo dar uma olhada na sobremesa do dia só para poder agarrar seu bíceps e conferir se era mesmo tão firme quanto parecia ser quando ele se movimentava pelo ginásio da escola.

Mas a verdade é que Mike não pensa nelas durante suas emissões noturnas, ele não pensa em Grenda Gale ou qualquer outra garota, nem mesmo a ex-namorada.

Quando pensa sobre lábios macios pressionando os seus, é a Will que eles pertencem.

Quando pensa sobre o som de sua voz favorita, é Will quem a entoa.

E, der repente, é tudo sobre querer.

Ele quer chegar perto. Perto o suficiente para poder catalogar todos os tons de verde que permeiam as íris de seus olhos.

Ele quer descobrir como seria beijá-lo, se seria breve e desajeitado como seus abraços ou longo e quente como suas risadas. Como ele reagiria, se corresponderia, que ruídos faria quando Mike capturasse seus lábios nos dele, explorando o interior de sua boca com a língua.

E as vezes, em momentos como esse, ele quer coisas mais simples.

Coisas como envolver seu corpo num abraço apertado, aninhar o nariz na curva entre a clavícula e o pescoço e simplesmente... respirar. Absorvendo todos os vestígios de verão que o sol da Califórnia havia deixado nele.

Aquilo tudo era extremamente perturbador, intoxicante de uma forma que nenhuma coisa deveria ser.

Fazia com que Mike enxergasse com nitidez assustadora todos os seu sentimentos, seus desejos mais íntimos.

Se alguém o perguntasse, ele certamente não saberia especificar a hora e o lugar em que Will Byers deixara de ser apenas seu melhor amigo para se tornar o garoto bonito ao qual beijaria caso tivesse a mínima chance, mas o fato é que havia acontecido e saber disso o deixava inquieto, fazendo com ele agisse como um animal enjaulado a mercê dos próprios instintos.

Não era justo, não era nenhum pouco justo.

"Por que você parou?" Will pergunta depois de um tempo, abrindo os olhos vagarosamente "Eu estava gostando de ouvir."

Mike o encara confuso, a mente processando as informações de forma muito mais lenta que o habitual.

Ele olha pra baixo, finalmente percebendo o porque da pergunta. Com a intensidade de seus pensamentos, havia parado de tocar.

As vezes ele fazia isso: dedilhar o instrumento distraidamente sem nem ao menos perceber o que estava fazendo.

É claro que com Will alí essa falta de concentração ficava um pouco mais acentuada.

Ele pigarreou, limpando a garganta.

"Hm, desculpe. Eu me distraí."

"Com o que?"

Com você, parado aí, me ouvindo tocar. ele pensa, mas não diz isso

É claro que ele não diz isso.

Ele nunca poderia dizer que a beleza do amigo estava o desconcentrando, por mais que, na verdade, estivesse.

"Nada em especial." desconversa, a mente trabalhando furiosamente em busca de um novo tópico de discussão que o tirasse de seus devaneios "Você quer tentar?" questiona, indicando a guitarra com a cabeça

"Tentar o que?"

"Tocar. Sabe, não é tão difícil como parece, você pode até acabar aprendendo alguns acordes da sua música favorita por conta própria."

Will bufa, descrente.

"Sem chance."

"Por que não?"

"Não sei, talvez porque eu seja péssimo com instrumentos de corda. Lembra daquela nossa aula de música no 1° ano?"

"Isso foi no fundamental!" ele ri com a lembrança

"E desde então eu continuo sendo horrível, Mike. Tenho certeza de que machuquei alguns tímpanos naquele dia. Não quero correr o risco de te deixar surdo também."

"Ah, qual é! Você estava nervoso, tinha muita gente desconhecida na sala, era a nossa primeira aula. Agora vai ser mais fácil, somos só nós dois aqui."

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"Mais um motivo pra gente não insistir nisso."

"Will."

"O que?"

"Eu sou um ótimo professor de música, sabia?"

"E eu um péssimo aprendiz."

"Você sabe que não vou desistir tão fácil."

"Isso é o que me preocupa."

"Você vai ao menos me deixar tentar?"

"Você está disposto a ter dor de ouvido por três meses seguidos?"

Por algum motivo, isso soa extremamente engraçado e eles logo irrompem em um ataque de risos.

Rir assim era extremamente mais fácil quando Will estava por perto.

"Acho que posso conviver com um pouco de dor de ouvido," Mike diz depois de alguns instantes, enxugando lágrimas dos olhos "Mas não com a curiosidade de te ver bancando um rockstar com essa guitarra."

"Tem certeza?"

"Absoluta."

Will aperta os lábios, ponderando a questão por um momento.

"Tá bom então." concorda, arrancando um sorriso entusiasmado do outro "Mas você vai ter que ser paciente, eu não sei nem se sou capaz de segurar esse negócio direito." diz, apontando pra Fender

"É claro que é. Vem cá."

Will caminha até o sofá, sentando-se no exato momento em que Mike se levanta, pousando cuidadosamente o instrumento em seu colo.

Ele se agacha ao seu lado, fitando-o com a concentração de um legítimo professor.

"Essa guitarra é perfeita para iniciantes, sabe por que?"

O amigo balança a cabeça em negação.

"Ela é leve em comparação as demais, as cordas possuem uma hipersensibilidade que permite tirar o som mais suave com o minimo de esforço."

Ele roça os dedos nos fios metálicos, dedilhando-os brevemente enquanto um som melodioso toma conta do ambiente.

"Tá vendo?" Will acena em concordância "Agora eu vou pôr os seus dedos nas cordas adequadas. Tente mantê-los firmes mas sem aplicar muita pressão. Depois de um tempo você vai ver que é fácil."

O processo é um pouco mais demorado que normal, a proximidade de seus corpos faz com que Mike se desconcentre algumas vezes, a mente vacilando de volta para os pensamentos de alguns minutos atrás.

Will também parece estranhamente nervoso, suas mãos escorregadias com o excesso de umidade.

Mike não pensa muito sobre o porquê disso, supõe que ele está apenas ansioso pra começar logo.

Depois de um tempo, ele se afasta pra contemplar o resultado.

"Eu tô fazendo certo?" Will pergunta, hesitante

Ele parece deslocado, como se não soubesse muito bem como encaixar os braços ao redor do instrumento, mas isso era perfeitamente normal para uma primeira vez.

"Tá sim." Mike sorri, tranquilizando-o "Agora imagine que a guitarra é sua parceira de dança e você o condutor. Olhando por esse lado até que é fácil, não é?"

"Não sei." encolhe os ombros "Eu nunca conduzi ninguém em uma dança antes."

"Então essa é só mais uma das coisas que eu tenho que te ensinar."

Ele se reencosta na parede, cruzando os braços, olhando-o com atenção.

"Agora tente tocar algo, não precisa ser muito. Só faça o primeiro movimento que te ocorrer."

Will respira fundo, encarando os dedos, meio desnorteado por um momento, antes de fazer o que foi pedido.

O som que o ato provoca não é nada agradável.

É rápido, estridente e cortante, o tipo de ruído que Mike sequer sabia que a guitarra era capaz de fazer.

Ele fecha os olhos, contraindo o rosto em uma careta.

"E então, já está arrependido?" Will sorri apologético "Eu sinto muito."

"Não, não, não sinta. Você só foi rápido demais, está tenso, precisa respirar um pouco."

Ele passa a mão pelo queixo pensativo, uma nova ideia permeando sua mente.

"Eu acho... acho que vamos ter que fazer isso do jeito antigo."

"Que jeito?"

"É muito simples: eu vou te conduzir, como numa dança."

"Como assim?" questiona, a testa se franzindo em mais e mais confusão

"Vou te guiar e você fará o mesmo com a guitarra. Os professores fazem isso com estudantes de violoncelo, não sei se funciona em guitarras também mas podemos tentar."

"E-e como vai ser?"

"Vou precisar sentar atrás de você e você vai precisar relaxar. Acha que consegue fazer isso por mim?"

"Uhum." balbucia, o pomo de adão em sua garganta subindo e descendo quando engole em seco

Mike tem certeza de que essa era uma péssima ideia, por tantos motivos que nem sabia por onde começar a enumerar.

Pra inicio de conversa, tinha uma boa parcela de certeza de que se sentia atraído pelo melhor amigo, pelo corpo o qual manteria junto ao seu dalí há alguns instantes.

Isso por si só já era motivo suficiente pra declinar daquela decisão.

Só que agora não havia como voltar atrás, ele já tinha concordado, se mudasse de ideia Will notaria, saberia que havia alguma coisa de errado para que Mike recusasse a proximidade.

De qualquer forma e sendo completamente honesto consigo mesmo, ele não queria voltar atrás.

Ele não iria voltar atrás.

Mike caminha até o sofá, não vacilando uma única vez e desliza por trás de suas costas, sentando-se com uma perna de cada lado das suas, envolvendo-o numa espécie de abraço com o corpo inteiro.

Leva alguns momentos pra ele se acostumar com a tonelada de sensações provocadas por esse novo nível de proximidade.

É tudo que julgava que seria e ainda assim é mil vezes mais do que esperava.

Deus, ele estava tão ferrado.

"Mike," Will começa, sua voz não passando de um sussurro "Você tá legal?"

"Sim." ele abre os olhos percebendo pela primeira vez que os tinha fechado "Eu tô bem. Só tô pensando sobre a mecânica da coisa." diz, repreendendo-se mentalmente um segundo depois

Mike Wheeler não 'pensa sobre a mecânica da coisa', não em situações assim. Ele simplesmente vai lá e faz o que tem que ser feito e Will sabe disso.

Aquilo com certeza havia soado estranho aos seus ouvidos.

"Okay." o amigo entoa com incerteza

"Certo, vamos começar." ele responde, agradecendo aos céus por ninguém poder ver seu rosto no momento "Primeiro eu vou consertar essa postura."

Abaixa as mãos, espalmando-as em sua cintura.

"Assim."

Ele inclina seu tronco pra frente com os punhos, as costas abandonando aos poucos a posição curvilínea e ficando agora perfeitamente retas.

"Eu estou te machucando?" indaga com preocupação ao notar a firmeza de seu aperto

"Não..."

"Ótimo, porque eu não quero te machucar. Agora vou colocar os meus braços sobre os seus, as minhas mãos nas suas e é assim que isso vai funcionar: Eu vou guiar seus movimentos, tocar a guitarra através dos seus dedos e depois vou soltá-los, só então você vai poder repetir tudo que eu fiz anteriormente, entendeu?"

"Entendi."

Ele desliza os braços pela extensão da pele dourada do outro, sentindo-o arrepiar-se com o contato.

Mike sabia que aquela era apenas uma resposta automática do organismo, que os pelos eriçados que roçavam as pontas de seus dedos estavam respondendo á súbita proximidade de um corpo desconhecido colado a outro. Mas isso não diminuía a satisfação de que era ele fazendo aquilo com Will.

Ele não podia dizer que não sentia uma espécie de prazer culpado nisso tudo.

"Você é sempre tão tenso assim?" questiona, pousando as mãos nas dele, que por sua vez estavam firmemente atreladas as cordas do instrumento

"Só quando estou aprendendo a tocar guitarra."

Mike ri, o som abafado pela proximidade de sua boca com a pele macia de um longo pescoço.

"Sua sorte é que sou um professor paciente. Agora relaxe. Não segure a guitarra como o Steve seguraria o taco de Baseball dele. Lembre-se: ela é sua parceira de dança, não seu instrumento de guerra, certo?"

Will balança a cabeça.

"Certo."

"Eu vou dedilhar as cordas com seus dedos e você vai observar, depois vou soltá-los e você vai repetir tudo o que eu fiz. Isso soa como um bom plano?"

"Soa exatamente como só um plano seu soaria: Arriscado mas eficaz." responde e Mike pode sentir o sorriso em sua voz

"Você me superestima, Will Byers." ele diz, começando a executar os movimentos pensados

Tocar com o corpo de alguém é surpreendentemente mais difícil do que deveria ser, mas não é nada impossível e logo eles encontram um ritmo só deles, os sons passando de simples esboços para notas inteiras sendo entoadas em uma frequência linear.

Will ri quando a mão de Mike escorrega ao tentar um acorde pela primeira vez e ele definitivamente ri mais um pouco quando isso acontece de novo, só pra ficar em silêncio contemplativo quando ambos obtêm sucesso na terceira tentativa.

Isso o faz relaxar.

Seus dedos aos poucos ficam mais maleáveis, flexíveis e seu corpo se molda ao de Mike como um rio desaguando no outro, como se fossem um só.

É exatamente como uma dança, exceto que eles não estão mexendo os pés e sim as mãos, trabalhando juntas, uma guiando e a outra seguindo do jeito que deve ser.

Mike já está mais que satisfeito com os resultados quando as últimas notas de Für Elise, a canção que tocavam, deslizam suavemente do instrumento.

E, de novo, o silêncio é soberano.

Dessa vez, um silêncio confortável.

"E aí, como foi?" ele pergunta depois de uma longa pausa

Will exala lentamente.

"É tão estranho, sabe, a sensação das cordas vibrando sob os seus dedos. Mas posso ver porque você gosta tanto disso, é viciante também."

O mais alto ri, a ponta do nariz roçando levemente no cabelo castanho escuro do outro.

"Você acha que consegue tocar?"

"Eu acho que posso tentar."

Mike repousa o queixo em seu ombro, suas bochechas roçando uma na outra quando ele se esforça para olhá-lo mais de perto.

Deveria ser difícil naquela posição, mas não é, porque Will se apoia nele como um marinheiro se apoiaria em uma ancora, inclinando levemente a cabeça pro lado, dando-lhe um vislumbre de seu rosto corado.

"Então feche os olhos, respire fundo e me mostre o que você aprendeu." ele instrui em uma voz mínima "Tenho certeza de que não vai me decepcionar."

"Você me superestima, Mike Wheeler." responde, devolvendo-lhe as palavras ao finalmente começar a tocar

De inicio ele é hesitante, as mãos percorrendo as cordas metálicas com a cautela de um aprendiz nenhum pouco disposto a desapontar seu mestre.

Depois de um momento a insegurança o abandona e ele se permite executar sua própria dança, seus dedos percorrem os fios brilhantes com a destreza de um músico amador, porém dedicado, e o som flui constante, imperfeito, mas bonito como tudo que Will se propunha a fazer.

Mike o observa vidrado, imerso em profunda admiração, percebendo enfim a dimensão do fascínio que aquele garoto de olhos gentis e sorriso enervante exercia sobre si.

E então é isso, enquanto o assiste ali, sentindo o peito se aquecer com cada nota bem tocada, Mike Wheeler descobre uma irônica verdade, uma daquelas verdades que a vida reserva pra ferrar com a sua cabeça em momentos como esse: estava apaixonado pelo melhor amigo.

Podia sentir aquilo irradiando de dentro de seu corpo, revelando-se finalmente com intensidade assustadora, quase como se sempre tivesse estado lá, apenas esperando para ser notado.

Era isso e nada mais poderia convencê-lo do contrário, nem mesmo o discurso racional que o seu cérebro insistia em repetir naquele exato momento, pois a verdade é que negar isso pra si mesmo há um tempo já era difícil, hoje em dia é impensável.

"Eu fui bem?" Will pergunta ao finalizar a música

De alguma forma, ouvir a voz dele tornava tudo mil vezes mais evidente em sua cabeça.

Mike sorri tristemente.

"Você foi o melhor." ele diz

E antes que consiga pensar direito, antes que consiga se impedir, antes que sua mente tenha tempo de projetar um único lampejo de racionalidade e mover seu corpo para bem longe dali, ele se inclina, apoiando a testa em seu pescoço e o beija, os lábios pressionando a nuca, bebendo dos poros de uma pele dourada e macia que praticamente implorava para ser beijada.

É molhado, quente e salgado, tudo ao mesmo tempo e quando se afasta, depois de provar apenas o suficiente para desejar um pouco mais, ele finalmente descobre;

Will Byers tem realmente gosto de verão.

"Mike...?" o amigo entoa num gemido chocado, o corpo ficando tenso de novo "Mike, o que...?"

Seja qual fossem as palavras que diria a seguir, morreram todas em sua garganta quando a porta se abriu de supetão e o som de passos descendo as escadas se fez ouvir no ambiente.

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Mike congelou, levantando-se rapidamente, sentindo o momento se desvanecer com a mesma rapidez com que surgira.

Nada poderia prepará-lo pra imagem da irmã mais nova ali no último degrau da escada, o rostinho gorducho lambuzado com alguma coisa que só podia ser calda chocolate, as mãozinhas agarrando num aperto firme o ursinho de pelúcia surrado que ela ganhara no último aniversário.

"Holly, o que eu falei sobre bater antes de abrir a porta?"

"Isso não vale quando a porta já tá aberta, ué." ela sorriu, os olhinhos curiosos vagando por suas feições coradas "Do que vocês estão brincando?"

Mike olhou para o amigo, um pedido explicito de "socorro" emoldurado em seu rosto.

Como dizer para a irmã mais nova que já fazia algum tempo que eles não "brincavam" mais?

Felizmente, Will interrompeu o silêncio, limpando a garganta antes de falar.

"Bom, EU tô brincando de desafinar a guitarra do seu irmão." disse, apontando pro instrumento ainda em suas mãos

"Will!"

"Que foi? É o que eu to fazendo Mike e você sabe disso! Nunca vou chegar nem perto de tocar como você." responde

Por uns breves instantes em que nenhum dos dois parece respirar de forma adequada, Mike apenas olha pra ele, sorrindo carinhosamente.

"Eu quero brincar disso também!" grita Holly, erguendo as mãos em direção ao instrumento como se fosse o último brinquedo na Terra

"Nem pensar, maninha!" o mais velho a interrompe, pondo-se a sua frente "Você é muito nova pra isso, talvez quando for mais grandinha eu pense no seu caso."

"Mas eu sou grandinha!" protesta "A mamãe disse que já cresci três centímetros esse ano!"

Mike sente uma inesperada vontade de rir, mas se contém. Ele queria sair vivo dalí, afinal.

"No dia que você for grande o suficiente pra enfiar esse murro aí na minha cara" diz, apontando pros punhos cerrados dela "eu deixo você brincar."

Holly olha pra ele indignada e der repente Mike percebe que ela está se tornando uma versão muito parecida e dez vezes mais assustadora da irmã mais velha.

Ótimo, dose dupla de Nancy Wheeler na minha vida.

"Tá bom então, eu vim aqui chamar o Will pra almoçar!" ela dá a volta no cômodo, agarrando a mão do amigo possessivamente e puxando-o pra si

"Só ele?"

"Almoço é pra quem me deixa brincar de desafinar a guitarra."

Ela definitivamente é uma Nancy 2.0 ele pensa, rindo enquanto a observa arrastar Will pelas escadas acima, que por sua vez está sustentando um sorriso confuso nos lábios

E então, como num estalar de dedos, Mike der repente se lembra do quanto queria beijar aqueles mesmos lábios há menos de cinco minutos atrás.

Merda.

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Naquela noite, eles dormem no mesmo quarto, ambos agora em camas separadas pois não havia a menor chance de continuarem a caber no mesmo leito como antigamente.

O sono não vem facilmente e Mike se pega observando o amigo em silenciosa contemplação, adorando a forma como seus cílios descansam na parte superior de suas maçãs do rosto ou como seus olhos estremecem por detrás das pálpebras sempre que ele sonha.

E se Mike Wheeler acorda no meio da noite, ofegante, suado e com a mente e os lábios ainda perseguindo a memória de um beijo salgado com gosto de verão, ele apenas vira pro lado, enterra o rosto no travesseiro e não fala sobre isso.

Com ninguém.