Ecos e Silêncio
Ecos e Silêncio
Era só um menino adulto vazio de tudo. Vivia em um passado que o sufocava de muito em muito.
Desejou que todos ardessem em chamas tão abrasadoras quanto sua cólera. Inundou o mundo de álcool e muniu suas mãos trêmulas com uma caixa de fósforos.
Iria destruir. Iria matar.
O que aconteceu? Em um instante estava prestes a encenar o ato de sua vida. No momento seguinte corria como animal acuado, buscando o mais distante dos distantes dali.
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Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!Ele fugia. O adulto menino fugia.
***
Se ainda me restasse alma, quem poderia enxergá-la?
Nem eu conseguia ver através do vermelho das feridas e do negrume das manchas. Meu corpo apodrecia a olhos vistos. Nada mais justo; ele estava simplesmente se igualando à minha essência.
Restava-me salvação? Minha expectativa fraquejava a cada lata de lixo revirada. Bicho não entrava no paraíso, ainda mais um tão miserável e sujo.
Estava fadado ao chão e lá ficaria. A natureza trataria de me decompor.
***
Eu estava de pé, mas sabia que iria cair. Era a tendência natural da minha vida: estar por baixo. Na lama.
No concreto impiedoso da calçada. A mãe sempre dissera que o chão só era frio para quem tinha uma cama.
Mãe. Cama. Casa. Fogo, muito fogo. Queimando. Ardendo. A cabeça, os braços, as pernas. Dor, dor, dor.
A consciência. Fumaça. Fugindo. Sumindo.
***
A pele mal sentia, os pés mal andavam, os olhos mal abriam. Mesmo assim, havia me erguido. Mãos guiavam-me.
Paradoxos mil nasceram bem no fundo. Esperança e desolação, vontade e medo. Poderiam estar me levando para o céu? Imaginei brinquedos espalhados pelo ar, lençóis macios ao toque, um ‘eu te amo’ sussurrado na calada da noite, mãos delicadas acariciando meu rosto. O seio materno a alimentar-me e proteger-me do mundo infecto.
A irregularidade do solo respondeu minhas dúvidas. Não, meu destino era o submundo das acusações, dos chutes, dos olhares tortos e das palavras mordazes. Inferno ou Terra, o nome pouco importava.
Se até cachorro tinha direito a dignidade... Por que eu não?
***
Tiraram-me tudo e entregaram para ele.
Abençoado ele era. Valor ele tinha. Coração pulsante. Amor.
Um movimento melhor calculado, uma força um pouco maior e sua existência também estaria necrosada.
Arrepender-me de quê? De ter desistido ou de ter contemplado sublime vingança?
Era a dúvida que matava e fazia viver.
***
Era pequena, sempre fora. Joelhos ossudos e rabiscados de cicatrizes. Pés fortes e mãos mais ainda.
Gostava de catalogar minhas fraquezas e muito fazia para expô-las. Punha-me a correr e rastejar para seu próprio deleite. Desarmoniosa aos extremos, findava meu equilíbrio já doente.
Eu desejava sua ruína como que me fosse visceral. Queria nunca mais a ver, mas sentia prazer ao ter a chance de encarar seu rosto e dilacerá-la com suas próprias inseguranças.
Criatura desprezível... Destroçara a materialização de todos os meus anseios de criança: uma bola. Jurei que cada lágrima derramada um dia perfuraria sua consciência como uma adaga.
Estava certo de que iria cumprir a promessa. Até quando?
***
Acordei. Acostumei os olhos à luz que inundava meus sentidos.
Bem ao meu lado um rosto de mulher. Adormecida, estática. Contorno por contorno de suas feições foram mesclando-se até que eu a distinguisse.
Giane?
Os ecos do passado desabaram em silêncio e o mundo tornou a girar.
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