Os Últimos Morgenstern

Poucos são anjos


Perplexa, Clary observou com os olhos arregalados enquanto os Crepusculares, um por um, se transformavam em fumaça vermelha e desapareciam no ar, as espadas caindo no chão num baque metálico. Os Caçadores de Sombras olharam ao redor, confusos, como se procurassem por algum que tivesse restado, mas todos se foram em questão de segundos. No meio da multidão, ela encontrou o olhar dourado de Jace e notou, pela expressão no rosto dele, que ele também não parecia capaz de acreditar no que havia acabado de acontecer. Era bom demais para ser verdade.

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– Está satisfeita agora, irmãzinha? – Sebastian perguntou ao lado dela, apenas para que ela pudesse ouvir. Ela olhou para ele, sem dizer nada, incapaz de entender como ele podia parecer tão calmo quando estava entre dezenas – ou talvez centenas – de inimigos e seus soldados não estavam mais por perto para protegê-lo.

Mas, apesar de não ter certeza do que poderia acontecer de agora em diante, Clary sentia-se realizada, como se tivesse corrido uma grande maratona e finalmente conquistado uma medalha. Fazer com que Sebastian desistisse de seguir adiante com a guerra contra seus amigos era uma vitória a ser comemorada porque, em algum lugar dentro dela, ela sentia que daquela vez era para valer. Ela não tinha ideia do que havia acontecido na breve estadia dele no Inferno e duvidava que um dia ele iria dividir isso com alguém, mas a julgar pelo comportamento dele, algo lá conseguira mexer com a cabeça de Sebastian o suficiente para fazê-lo mudar de ideia. Ao menos, ela deveria ser grata por isso. E por Ithuriel, é claro.

– Está se entregando, Jonathan? – Maryse perguntou, abrindo espaço entre os Caçadores de Sombras até parar na frente deles, somente alguns metros de Clary e Sebastian, trazendo uma expressão ameaçadora no rosto. Como uma líder faria.

Sebastian cruzou os braços, entortando a boca num sorriso debochado.

– Para você, sou Sebastian – corrigiu ele, num tom de voz sarcástico. – Não fique tão feliz achando que algum de vocês irá encostar um dedo em mim. Retirei minhas forças porque meus planos mudaram, mas isso não significa que estou me jogando numa prisão estúpida da Clave.

Em resposta, alguns Caçadores de Sombras que Clary achava ter visto em Idris avançaram para cima de Sebastian, sem esperar a permissão de Maryse, embora não fosse necessário. Clary se colocou na frente do irmão, protegendo-o com o próprio corpo, mas Sebastian tocou o ombro dela com a mão e sorriu com humor. Segurando a espada ainda suja com o veneno do Cálice Imortal sem muita firmeza, os dedos da outra mão tocando o cabo num ritmo leve, Sebastian parecia tranquilamente despreocupado, como se nada pudesse atingi-lo.

E não podia mesmo. Assim que o primeiro Caçador de Sombras chegou perto o bastante para alcançar Sebastian, uma força invisível se projetou num círculo ao redor dele e de Clary, empurrando o Caçador de volta para onde estava. Boquiaberta, Clary ergueu uma mão e a aproximou do bloqueio, sentindo a parede invisível por alguns instantes, dura e fria, até ela desaparecer, permitindo sua passagem; somente a dela. Olhou para Sebastian, assustada, mas ele ainda curvava a boca com humor.

– Como você fez isso? – Ela perguntou, baixinho.

– A Rainha Seelie me ensinou alguns truques – respondeu, dando de ombros. Em seguida, aproximou a boca da orelha dela, como se fosse contar um segredo, e disse: – Não estou tão forte para fazer o bloqueio durar muito tempo, então se apresse. Você tem que se despedir, irmãzinha.

Clary quase sentiu a realidade lhe dando um tapa na cara. No meio de toda aquela confusão, ela havia esquecido totalmente da promessa que havia feito para Sebastian. Ele havia desistido da guerra, então ela teria que ir embora de vez para viver com ele. E apesar de ter colocado na cabeça, há um tempo, que nunca mais iria voltar para dentro do Instituto como a Caçadora de Sombras que havia sido, ela sentia que nunca estaria realmente pronta para dizer adeus.

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Sem saber exatamente o que fazer, Clary seguiu adiante até onde estavam seus amigos, mantendo a cabeça abaixada e os olhos grudados no chão, incapaz de encarar o que estava por vir. Tentou dizer a si mesma que não podia voltar atrás com a sua palavra, não agora que finalmente parecia estar conseguindo o que queria. Tentou, mais que tudo, calar a voz dentro da cabeça dela que dizia que um dia ela iria se arrepender por dar as costas às pessoas que sempre a amaram, que a aceitaram de braços abertos nesse mundo estranho que ela nunca conheceu de verdade. Eles têm uns aos outros, ela pensou melhor. Sebastian só tem você.

Respirando fundo e erguendo a cabeça, Clary apressou o passo até estar diante de Simon, Isabelle, Magnus, Alec e Jace. Atrás deles, ela achou ter visto sua mãe, mas preferia ter que lidar com ela depois. Ainda sentia raiva por todas as atrocidades que ela havia dito para Sebastian mais cedo.

– Oi – Clary disse, insegura. Colocou as mãos no bolso da jaqueta vermelha de Crepuscular para que ninguém percebesse que elas tremiam. E abriu um sorriso tímido. – Eu só queria dizer que sinto muito por todo o mal que causei, de verdade. Espero que um dia vocês possam me perdoar.

Clary nem ao menos sabia porque estava se sentindo tão envergonhada, como se estivesse falando com um grupo de desconhecidos. Eles ainda eram seus amigos, não eram?

– Clary, você não tem pelo que se desculpar – Simon disse, quebrando a distância entre os dois e puxando-a para um abraço de urso. – Você não fez nada de errado.

Sentindo o coração doer, ela percebeu que Simon era o único que não havia deixado que tudo que acontecera mexesse com a amizade deles; sem julgamento no olhar ou tom de voz duro, ele sempre a recebia de braços abertos e sorriso no rosto.

– Eu dei as costas para vocês. Duas vezes. – Clary disse, soltando-se de Simon. Os outros ainda não haviam falado uma palavra sequer. – Isso não é o tipo de coisa que uma amiga faz.

– Não, não é – Isabelle concordou, finalmente se manifestando e aproximando-se um passo, como Simon havia feito. Ela tentou sorrir, embora parecesse exausta. – Eu disse a você que nunca entenderia o porquê de ter feito o que fez, e ainda não entendo, mas eu suponho que você deva ter suas razões. De qualquer forma, você fez Sebastian desistir de atacar o Instituto. Acho que devemos ser gratos a você por isso, apesar de tudo.

Clary assentiu, surpresa, mas aliviada. Com a exceção de Jace, Isabelle era a pessoa que mais desejava ver a morte de Sebastian – de novo –, então Clary nunca esperou realmente que ela ainda ficasse ao seu lado depois de ter salvado a vida do maior inimigo dela, embora provavelmente ninguém desconfiasse que havia sido Clary a salvá-lo.

– Eu que sou grata a vocês – Clary disse – por tudo o que fizeram por mim. Por me acolherem no Instituto e me oferecido uma mão quando precisei. Todos vocês me mostraram o que é uma amizade de verdade e eu certamente nunca vou ser capaz de me esquecer disso.

– Por que isso está parecendo uma despedida, Fray? – Simon perguntou, apertando a mão dela de leve.

– Porque é – Clary respondeu sem cerimônias, apertando os lábios. – Eu vou embora com Sebastian.

Ao dizer isso, Clary notou a reação estampada no rosto de cada um; viu quando Simon abaixou a cabeça, desanimado; Magnus pareceu surpreso; Alec parecia aborrecido; Isabelle assumiu um olhar triste, como se realmente lamentasse não ter mais Clary por perto, mesmo que as duas não tivessem sido melhores amigas. Só então, o olhar de Clary cruzou com o de Jace, o mais afastado no grupo, e apenas um olhar foi o suficiente para fazer o coração dela se partir. Ele engoliu em seco, desviou o olhar e deu as costas para ela, entrando no Instituto.

– Nem imagino como ele deve estar se sentindo – Isabelle disse, ao lado de Clary –, mas não vá embora sem dar uma explicação a ele ou ao menos uma despedida decente. Ele precisa saber que não deve te procurar mais.

Clary assentiu, atônica. Por alguma razão, olhou para Magnus e ele abriu um sorriso doce, gentil.

– Você é uma das Caçadoras de Sombras mais corajosas que já conheci – ele disse – e saiba que isso significa muito vindo de alguém que conheceu o mundo inteiro. Nunca deixe que sua coragem se esvaia de você, Clary, pois ela é seu bem mais precioso.

Clary sorriu. Por mais que ela não se lembrasse de muito, Magnus sempre foi alguém próximo de Clary; alguém que presenciara e acompanhara seu crescimento, conhecendo a mente dela melhor do que ninguém. De certa forma, ela achava que sempre que pensasse em alguém que dominasse a sabedoria e os segredos do mundo, se lembraria de Magnus.

– Me prometam que vão cuidar uns dos outros – Clary pediu, os olhos começando a arder de novo. Ela forçou um sorriso. – E nunca deixarão de ser uma família, porque é assim que quero me lembrar de vocês.

Simon puxou-a para um abraço tão forte que ela quase sentiu suas costelas se quebrarem, mas retribuiu agarrando-se ao corpo do amigo, como se em algum momento ele também pudesse se transformar em fumaça. Fechou os olhos com força e lembrou-se de todos os momentos possíveis que passaram juntos, crescendo e crescendo, descobrindo como o mundo funcionava. Seu coração doía só de pensar em seguir vivendo sem ter Simon ao seu lado para compartilhar segredos e histórias, jogar videogame numa tarde tediosa e dividir os prováveis novos nomes para sua banda. E apesar de saber que a vida deles não era mais tão fácil como beber café no Java Jones ouvindo a poesia ridícula do Eric, ela sentiria falta daquilo todos os dias, pelo resto de sua vida. Talvez até mesmo depois disso.

Isabelle deu um abraço rápido em Clary, apertando-a de leve e prometendo, num sussurro perto de seu ouvido, que ela faria de tudo para garantir que Jace ficasse bem. À menção do nome dele, Clary olhou para a porta do Instituto e sentiu seu coração acelerar. Isabelle deu um aceno encorajador para ela e, trocando um sorriso com Magnus e Simon, Clary foi atrás de Jace.

◌◌◌

Depois de procurar na biblioteca, sala de música e sala de armas, Clary finalmente viu um feixe fraco de luz saindo por uma porta entreaberta, que ela facilmente reconheceu como o quarto de Jace. Sem se preocupar em bater na porta para anunciar sua presença, ela entrou.

O quarto estava exatamente do jeito que ela se lembrava; os lençóis da cama perfeitamente bem-passados, a estante de livros organizada por ordem alfabética e uma escrivaninha simples sem nenhuma bagunça, ao lado de um guarda-roupa grande. Jace estava parado, encostado na parede ao lado da janela que servia como a única fonte de iluminação para o cômodo, os olhos fitando o nada através do vidro. Quando Clary passou pela entrada, ele se virou para encará-la.

– Devia ter ido sem se despedir – ele disse, friamente, parecendo olhar através dela.

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Clary deu um passo, determinada.

– Por que eu faria isso? – Ela perguntou, erguendo uma sobrancelha.

– Porque eu prefiro nunca mais saber de você – Jace respondeu sem rodeios, incapaz de desviar o olhar dela – a ter que ouvir o que você vai me dizer.

A confiança que Clary sentia se foi tão depressa quanto havia surgido e ela se sentiu tentada a recuar. Engolindo em seco, diminuiu a distância entre os dois e se postou ao lado de Jace, encostando os dedos no vidro da janela. Ao longe, ela conseguiu enxergar o amanhecer.

– Não fale isso – ela sussurrou, cansada, os olhos ainda encarando o céu. – Pare de achar que tudo isso só está sendo difícil para você.

Em resposta, ele forçou uma risada sem humor.

– É claro, – disse ele, sarcasticamente – suponho que você esteja sofrendo muito por ter que ir embora com ele.

– Não estou sofrendo por ter que ir embora com ele – Clary negou, balançando a cabeça. E, então, soltou um suspiro cansado. Ela desejava desesperadamente ter uma boa noite de sono, depois que tudo aquilo acabasse. – Estou sofrendo por não poder deixar uma parte de mim aqui, com você.

Só então Jace pareceu enxergá-la de verdade, como se durante todo esse tempo ele não tivesse notado que ela realmente estava ali, em carne e osso, preparada para dizer adeus. Dando um passo, ele se aproximou dela até que estivessem quase se tocando, a respiração dele fazendo os pelos da pele de Clary se arrepiarem.

– Então não vá embora – Jace sussurrou, encostando sua testa na dela. – Não permita que isso destrua tudo o que nós construímos, tudo o que nós vivemos juntos.

Clary tentou abrir a boca para dizer alguma coisa, mas subitamente se sentiu fraca. Ela fechou os olhos, sentindo o peito de Jace subir e descer diante dela, escutando as batidas tranquilas de seu coração, tão perto do dela. Mas, ao mesmo tempo, tão distante.

– Por favor, Clary. Nós podemos esquecer tudo o que aconteceu e fingir que nada mudou – ele pediu, a voz baixa. Suplicante. – Por favor, apenas não me deixe.

Aquelas palavras eram tão afiadas e perigosas quanto lâminas quentes cravadas em seu peito, Clary pensou. Somente estar tão perto de Jace fazia com que seu coração batesse mais rápido, desesperado, e seus dedos coçassem com o desejo de tocá-lo, de sentir seu corpo contra o dela. Se algum dia havia pensado que o sentimento que nutria por Jace havia desaparecido com o tempo, ela nunca esteve tão enganada. Apesar da comparação tola, o amor que sentia por Jace era como um casaco de frio durante o verão; por mais que muitas vezes Clary esquecesse que existia, ele sempre estava ali, guardado para quando ela procurasse. Para quando ela precisasse.

Clary abriu os olhos e percebeu os olhos dourados de Jace a observando, esperando uma resposta. Uma resposta que ela não podia dar sem partir seu coração em dois. Notando o olhar no rosto dela, Jace se inclinou um pouco e encostou os lábios na boca dela, de leve, somente para trazer a ela a lembrança de estar com ele.

E funcionou. Com aquele pequeno toque, Clary percebeu o quanto verdadeiramente sentia falta de Jace, de todos os comentários sarcásticos e irônicos que ele fazia, o talento e a sabedoria dignos de um real Caçador de Sombras, a poesia e o romance escondidos sob a máscara que ele insistia em manter para todos, exceto para ela. O menino que carregava traumas de uma infância destruída, mas que havia aprendido a ser melhor graças à bondade da família Lightwood, que o acolheu como mais um filho.

Colocando os braços ao redor do pescoço de Jace, Clary o puxou para si e retribuiu o beijo. Devagar e delicadamente, como se algum dos dois pudesse simplesmente quebrar a qualquer momento. Jace a beijava com calma e tranquilidade, quase como se estivesse tentando dizer a ela tudo o que não conseguia pronunciar em palavras. Talvez estivesse mesmo. Mas as mãos dele na cintura dela eram firmes e precisas, e quando ele a empurrou para a cama, ela não rejeitou.

Com o corpo de Jace em cima do dela, Clary podia jurar que tremores silenciosos percorriam todo o corpo dela, fazendo-a sentir como se seus ossos estivessem derretendo e seus nervos sendo queimados. Ele desceu a mão pelo rosto dela, acariciando a pele de uma bochecha, e em seguida tocou os cachos do cabelo dela, sentindo a maciez na ponta dos dedos.

Enquanto Jace beijava o pescoço dela, explorando a pele, Clary abriu os olhos. Por cima do ombro dele, ela conseguiu enxergar a linha do horizonte através do vidro, decorada pela ponta do sol brilhante que nascia, enviando raios alaranjados por todo o céu. Era uma visão tão linda que lágrimas brotaram dos olhos verdes de Clary, antes que ela tocasse a boca de Jace mais uma vez, demorando-se o máximo que podia, e gentilmente o afastasse.

– Não posso – Clary disse, abaixando a cabeça para evitar olhar a decepção estampada no rosto de Jace. – Eu fiz uma promessa, Jace. Sebastian cumpriu a parte dele dando um fim na guerra, então agora preciso cumprir a minha.

– Não, você não precisa! – Jace exclamou, levantando-se da cama e atravessando o quarto, as mãos afundadas no cabelo dourado. – Ele já quebrou a promessa dele vindo nos atacar, não lembra?

Clary sentou-se na cama, afastando os cabelos do rosto.

– Um erro não justifica o outro – disse ela, tentando controlar a irritação na própria voz. – E não é como se eu pudesse voltar atrás! Você mesmo falou que podia fingir que nada aconteceu, mas se eu ficasse estaria fazendo exatamente isso: fingindo.

– Nós já superamos outras coisas antes, podemos superar isso também. Você sabe disso! – Jace respondeu, parecendo desesperado. Olhar para ele, preso naquela situação, doía.

– Eu sei disso – Clary concordou, engolindo em seco. – E é exatamente por isso que é tão difícil deixar você, não entende?

Clary se levantou, sentindo as pernas tremerem por um instante, e se aproximou novamente da janela. Lá embaixo, ela conseguia ver Sebastian ainda protegido pelo feitiço e os Caçadores de Sombras ao redor, encarando-o como se pudessem atingi-lo apenas com isso. Por um instante, ela pensou ter visto o olhar dele se voltar para ela.

– Não posso desistir de Sebastian, não agora – ela falou, mais para si mesma, para aquela voz que insistia em tentar fazê-la mudar de ideia. – Ithuriel acredita que eu consegui mudá-lo. Não posso jogar isso fora!

– Foi você que o trouxe de volta, não foi? – Jace perguntou e, mesmo um pouco distante, Clary conseguiu ver o brilho das lágrimas nos olhos dele. – Assim como fez comigo.

Clary se encolheu. Naquele milésimo de segundo, ela não conseguiu encontrar nada suficientemente decente para dizer que pudesse de algum jeito diminuir a dor de Jace. E se odiou por isso.

– Quando aquele Caçador de Sombras te atacou e Sebastian recebeu o golpe em seu lugar, eu fiquei surpreso porque nunca achei que ele pudesse fazer algo assim por alguém. – Jace começou a falar, perdido em pensamentos. – Mas acima disso, eu fiquei com raiva porque quem devia ter feito aquilo era eu. Eu devia ter me jogado na sua frente e deixado que a espada acabasse com a minha vida, porque ela nunca seria a mesma se aquele Caçador tivesse acertado quem ele queria. E você devia saber disso.

Clary queria tocar o rosto dele, dizer que ela sabia disso e que faria a mesma coisa se os papéis se invertessem, mas ele a interrompeu mesmo antes de ela abrir a boca.

– Mas então, quando ele se sacrificou por você, eu realmente me dei conta de que ele ama você. De um jeito torto e absurdamente estranho, é amor. – Então, Jace olhou para ela por uns instantes, como se estivesse esperando que ela continuasse o que ele iria dizer. Quando Clary não falou nada, ele seguiu em frente: – E quando eu te vi sofrendo daquele jeito depois que ele morreu, eu percebi que você o ama também. Eu vi nos seus olhos, enquanto você chorava daquele jeito desesperado, que você não estava sofrendo porque falhou em salvá-lo. Clary, você estava sofrendo porque o seu maior medo é perder quem ama. E você ama Sebastian.

Clary deu um passo para trás e seu ombro bateu na borda da janela, enviando um estalido de dor pelo corpo dela. Mas ela não estava prestando atenção o suficiente para se incomodar; não quando Jace acabara de anunciar que ela amava Sebastian. Por incrível que pareça, o que passava pela mente de Clary não era se aquilo era verdade ou não, mas sim, como ela nunca tinha parado para pensar no que sentia por Sebastian antes.

Alguns dias atrás, ela daria boas gargalhadas e diria que Jace estava maluco se achava que ela podia amar alguém que não se importava em machucar os amigos dela. Mas agora, depois de Sebastian ter oficialmente desistido da guerra e destruído seus soldados, mantendo-se no meio de centenas de pessoas querendo matá-lo apenas com a proteção de um feitiço, somente porque ela havia ameaçado sair do lado? Clary não tinha parado para pensar numa definição certa, mas tinha certeza que o que sentia por ele era tão forte e poderoso que podia transbordar para fora dela a qualquer momento.

Aflita, Clary olhou pela janela para onde Sebastian estava, como se estivesse preocupada com o fato de ele ter ouvido o que Jace havia dito. Mas ele parecia congelado no mesmo lugar, provocando os Caçadores que não podiam alcançá-lo.

– Eu teria sofrido daquele jeito se fosse qualquer um de vocês no lugar dele, Jace. Toda morte é horrível, mas eu não suportaria ver alguém partindo por causa de mim. – Ela disse, tentando manter a voz firme, embora suas mãos tremessem.

– Você ainda não percebeu que o ama, não é? – Jace forçou uma risada, mas que saiu fraca. Cheia de mágoa. E dor. – Caso ainda esteja com dúvidas, preste atenção no que acabou de falar para mim: você o está colocando no mesmo nível que eu, que nossos amigos, que sua mãe e Luke. E você ama todas essas pessoas, Clary, então acho que já tem sua resposta.

Sem responder, Clary permitiu que uma lembrança invadisse sua mente: mais cedo naquele mesmo dia, ela beijando Jace na sala de música e depois enxergando o rosto de Sebastian nele. Os dois garotos que tiveram a infância arruinada por um pai louco por poder, que corriam perigo sem se importar, que não tinham dúvidas ou sentiam medo. Os dois garotos que ela, embora não conseguisse dizer isso em voz alta, amava.

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– Eu tenho que ir – Clary anunciou de repente, limpando o rosto com a jaqueta, apesar de não ter lágrimas a serem secadas. Ela sabia, no fundo, que se não partisse agora, não teria mais forças para dizer adeus.

Jace abaixou a cabeça e suspirou, dando-se por vencido. De certa forma, ela se sentiu aliviada por ele não ter a chance de insistir naquele assunto.

– Você não irá voltar, não é? – Ele perguntou, erguendo a cabeça, parecendo destruído.

– Não – Clary respondeu – e não me procure mais. Será mais fácil assim, Jace.

– Não há nada de fácil nisso, Clary – ele falou, arrasado. E então, apertando os lábios, disse: – Posso te beijar pela última vez?

Clary sentiu o coração em seu peito apertar mais um pouco, mas assentiu, permitindo. Era uma despedida, afinal. Os dois precisavam disso.

Com passos lentos dessa vez, Jace eliminou a distância entre os dois e tomou Clary nos braços, apertando a cintura dela contra a dele. Encostou a testa na dela e se demorou ali por alguns segundos, a respiração ofegante como se ele estivesse se preparando fisicamente – e talvez psicologicamente também, até finalmente encostar os lábios nos dela mais uma vez. Eles se beijaram, suave e delicadamente, sem pressa, sem exageros.

– Eu amo você – Clary sussurrou, depois de se afastarem – e amarei até que meu coração pare de bater. Nunca se esqueça disso, por favor. – E antes que ele pudesse responder, Clary se afastou e caminhou até a porta, parando na entrada para dizer: – Adeus, Jace.

E saiu do quarto extremamente organizado e limpo, deixando um Jace de cabeça baixa e olhos fixos no chão para trás.

◌◌◌

Ao sair pela porta do Instituto, ainda carregando os estilhaços quebrados do próprio coração, Clary virou-se e andou em direção à uma mulher com cabelos tão ruivos quanto os dela. Jocelyn parecia perdida, o uniforme de Caçadora de Sombras sujo de sangue e terra.

– Estou indo embora com Sebastian – Clary anunciou para a mãe – e não tente me impedir. Sou tudo o que ele tem e ficarei ao lado dele de agora em diante.

Jocelyn não pareceu surpresa ou aborrecida; apenas parecia triste.

– Não tentarei impedi-la, Clarissa. Faça o que achar certo – ela respondeu, deixando Clary boquiaberta. Percebendo a expressão da filha, ela relaxou os ombros. – Acredito que todos que estiveram presentes no momento em que Sebastian se sacrificou para salvar a sua vida concordam que ele não representa uma ameaça a você.

Clary balançou a cabeça, concordando.

– Espero que um dia eu possa voltar e provar a você que ele não é mais como costumava ser. Vou provar que é possível reverter o que Valentim fez – Clary falou, determinada, apertando a mão da mãe de leve.

Jocelyn retribuiu o aperto e, com a mão livre, tocou o rosto de Clary carinhosamente, de um jeito maternal. Ela tentou sorrir.

– Acho que você já provou isso – disse. E puxou a filha para um abraço.

Clary fechou os olhos e retribuiu o abraço, demorando-se alguns minutos para assimilar que provavelmente nunca mais veria sua mãe de novo. Mesmo quando Jocelyn havia sido sequestrada por Valentim, Clary ainda mantinha a esperança de que a veria novamente e, agora, lá estava ela dando o último abraço que podia. Porque, no fundo, ela sabia que as chances de voltar para o Instituto eram quase zero.

Depois de se despedir, lembrando-se de pedir para a mãe dizer à Luke que ela sempre o amaria, Clary levantou a cabeça e finalmente caminhou em direção à Sebastian, ainda no mesmo lugar, olhando-a com expectativa. Enquanto sentia todos os olhares voltados para ela, seguindo cada passo que ela dava, Clary focou seu pensamento no que Ithuriel havia dito uma vez: nenhuma pessoa que sacrifica o que você sacrificou pelas pessoas que ama merece o Inferno.

Notando uma rachadura começando a se formar no bloqueio criado por Sebastian, ela apressou o passo até estar ao lado dele, diante de todos.

– Está pronta, irmãzinha? – Sebastian perguntou, entrelaçando a mão na dela e puxando-a para perto de si.

Por alguma razão, o olhar de Clary passou pela expressão triste de Jocelyn e a saudade já estampada no rosto de Simon, até pousar numa janela no segundo andar do Instituto, onde Jace a observava com o coração partido. Engolindo em seco, ela desviou o olhar antes que mudasse de ideia.

– Vamos sair daqui – ela respondeu para Sebastian, apertando a mão dele na dela, como se a qualquer momento ela pudesse desabar no chão.

E então, enquanto Sebastian usava a mão livre para girar um estreito anel prateado que brilhava em seu dedo, Clary teve uma última visão do Instituto de Nova York cheio de Caçadores de Sombras vestidos com roupas pretas de combate e armas em punho, todos com os olhos presos nela, apenas um instante antes do feitiço perder a força e o bloqueio de defesa explodir. Alguns guerreiros se movimentaram para tentar pegá-los, mas Clary e Sebastian já haviam mergulhado na escuridão, ainda de mão dadas.