Os Últimos Morgenstern

Céu e Inferno


Já havia passado da meia-noite, Clary deduziu. Poucos flocos de neve ainda caíam do céu escuro, embora a tempestade houvesse ido embora, deixando o ar gélido e uma cidade afogada na neve para trás. Clary sempre gostou do frio; gostava de sentar perto da lareira e tomar chocolate quente ou de passar a tarde com Simon embaixo de um cobertor assistindo filmes. Sentia falta de todas essas coisas que sempre lhe pareceram tão simples e que agora permaneciam tão distante de sua realidade.

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Ela sabia, no fundo, de que deveria estar com medo de contar o que havia feito e seus amigos a odiarem. Mas, por algum motivo, Clary sentia-se confiante. Sentia-se segura. Tinha a esperança de que seus amigos entendessem que ela havia feito tudo apenas para protegê-los. E porque ela os amava.

Tinha a esperança de que isso bastasse.

— Quando o bilhete de Sebastian chegou, eu sabia que seria apenas questão de tempo até tudo virar uma guerra mais uma vez. — Clary começou. Lembrou-se da palavra grega e de como aquilo a fez tomar sua decisão subitamente. Erchomai. — E eu também sabia que havia chegado a hora de fazer alguma coisa.

Clary respirou fundo e encarou seus ouvintes. Magnus parecia extremamente entediado com tudo aquilo, Alec estava ocupado olhando para as próprias botas, Isabelle mantinha os braços cruzados e as sobrancelhas erguidas e Simon prestava atenção, tentando não perder uma palavra que ela dizia. Jace permanecia sem expressão alguma.

Sebastian, no entanto, era o único que parecia estar se divertindo com aquela cena. Seus olhos negros brilharam quando ele olhou para a irmã e acenou com a cabeça, incentivando-a a continuar. Quando Clary voltou a falar, fumaça saiu de sua boca.

— Eu o procurei — Clary retomou, indicando o irmão com a cabeça. Pelo canto do olho, ela percebeu que Jace a encarava. Tomou fôlego e continuou. — Saí escondida do Instituto numa madrugada e encontrei Sebastian. E fiz uma proposta.

— Chega disso — Jace interrompeu, virando as costas. Clary sentiu algo desmoronar dentro de si.

— Jace, espere — ela o chamou. Ele levantou a cabeça, mas não se virou. — Eu nem ao menos terminei de explicar.

— E você acha que eu não sei o resto da história? — Jace explodiu, virando-se para ficar em frente a ela. Havia lágrimas em seus olhos dourados; lágrimas que ele não permitia que caíssem. — Você nos deixou. Você me deixou! Para ficar com ele.

Clary sentiu lágrimas quentes inundarem seus olhos, embaçando sua visão. De repente, toda a esperança que ela tinha de que Jace fosse entendê-la pareceu escapar por entre seus dedos.

— Eu fiz isso para protegê-los! E isso inclui você, Jace — Clary gritou, fazendo sua voz ecoar nos prédios abandonados daquele lugar.

— A única pessoa aqui que precisa de proteção é você, Clarissa — Jace murmurou, e suas palavras foram como facas no peito de Clary. — Porque você não pensa antes de agir, porque você é precipitada e descuidada, porque você sempre estraga tudo. E porque você ainda é uma mundana.

Jace — disse Isabelle, mas ele a ignorou. Continuava olhando fixamente para Clary.

— Tem alguma ideia do quanto eu sofri por achar que nunca mais ia te ver? — Jace disse, finalmente deixando as lágrimas rolarem por seu rosto. Ela nunca o havia visto daquele jeito; nunca o havia visto sentindo tanta dor. — Meu mundo desmoronou porque eu achei que a tinha perdido, Clary. E nesse tempo todo, você escolheu estar aqui. Você escolheu ir embora.

Clary engoliu o choro e ergueu a cabeça para olhá-lo nos olhos.

— Isso é verdade — balançou a cabeça. — Eu escolhi ir embora com Sebastian, contanto que ele ficasse longe de cada um de vocês. Foi a maneira que eu encontrei de garantir a proteção das pessoas que eu amava, mesmo que eu tivesse que ficar longe delas.

Jace abriu a boca para interromper, mas Clary não se calou.

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— Você acha que foi fácil fazer o que fiz? — perguntou, aproximando-se dele em pequenos passos. Suas botas afundavam na neve e seus joelhos estavam quase cedendo ao chão, mas ela se manteve firme. — Acha que foi fácil largar tudo e ir embora sem olhar para trás? No começo, cada dia longe de você era uma luta que parecia nunca ter fim. Mas eu precisava achar que o que eu estava fazendo era o certo.

— Certo? Você não tinha o direito de... — começou Jace, mas foi interrompido por outra voz.

— Acho que já passou da hora de você calar a boca — disse Sebastian, se colocando na frente de Clary. Ela recuou um passo. — Você é que não tem o direito de dizer todas essas coisas ridículas para Clary quando o que ela fez foi pensando em proteger você e seus amiguinhos estúpidos.

Clary prendeu a respiração e se aproximou um pouco de Simon e Isabelle. Ela sabia o que aconteceria ali e não podia fazer nada para impedir.

— Você não tem nada a ver com isso, Sebastian — retrucou Jace, e Sebastian riu.

— Na verdade, eu tenho mais a ver com isso do que você imagina — disse Sebastian, sorrindo maliciosamente para Clary. Ela desviou o olhar.

Jace rosnou e se lançou para cima de Sebastian. Os dois caíram na neve em uma grande confusão de socos e chutes, como se fossem adolescentes mundanos. Tudo o que Clary conseguia ver era manchas de sangue na neve. Vermelho no branco.

Sebastian empurrou Jace com um chute, se levantou e — finalmente parecendo lembrar-se de que era um Caçador de Sombras — pegou sua espada que jazia no chão. O nariz de Sebastian sangrava, deixando uma grossa linha escarlate correndo até o queixo.

Jace tateou o cinto em busca de alguma arma que pudesse ser útil, mas tudo o que lhe restou era uma adaga e algumas facas. Como ele poderia lutar apenas com aquilo? Bufou e pegou a adaga. Sebastian gargalhou.

— Uma adaga? É com isso que pretende lutar? — debochou.

Jace não perdeu o foco. Girou o corpo e chutou o estômago de Sebastian, que saltou antes que o golpe pudesse acertá-lo. Sebastian atacou, mirando a lâmina no peito de Jace, que se jogou no chão, embora não antes da arma cortá-lo superficialmente. Sangue manchou sua camisa.

Sebastian riu. Parecia tranquilo e despreocupado; segurava a espada sem firmeza, as pontas dos dedos tocando um ritmo leve no cabo. Jace aproveitou-se da distração e chutou a mão de Sebastian, fazendo-o derrubar a espada. Ótimo, agora os dois estavam praticamente desarmados.

Entretanto, Sebastian não pareceu se importar. A luta não era importante.

— Eu já o venci — disse Sebastian. Seus olhos escuros brilharam.

— Do que está falando? — Jace perguntou, arqueando as sobrancelhas.

— Eu a beijei — disse, sorrindo. Sangue encharcava sua boca. — E ela gostou.

Clary ficou paralisada. Esperou que Jace virasse para ela e dissesse mais coisas que ela não queria ouvir, mas ele nem ao menos pareceu lembrar-se de que ela ainda estava ali. Olhava fixamente para Sebastian, que continuava provocando-o com o olhar.

— Você perdeu, menino-anjo.

E aconteceu. Jace envolveu o pescoço de Sebastian com as mãos e levantou-o centímetros acima do chão. Por um momento, Sebastian continuou com a expressão despreocupada, como se fosse fazer mais alguma provocação a qualquer instante. Mas então, Clary notou que as mãos de Jace começaram a tremer. Em seguida, foram ficando transparentes como vidro. E queimava.

Fogo celestial.

Clary correu. Correu o mais rápido que suas pernas curtas permitiam.

Algo tão poderoso que provavelmente mataria um ser humano comum, talvez até um Caçador de Sombras comum, Jace havia dito naquela vez.

Ela havia se esquecido de que o fogo celestial ainda estava dentro de Jace. E obviamente aquilo também havia sido uma surpresa para Sebastian, que arregalou os olhos e tentou inutilmente se soltar das mãos apertadas de Jace.

— Pare — Clary gritou, tentando controlar o desespero na própria voz. Encostou as mãos nos braços de Jace, mas logo as puxou de volta, arfando. O que antes não passava de um simples estalo de eletricidade estática agora se tratava de puro fogo. Fogo e ódio.

— Solte-o, Jace. — Clary implorou, a voz firme dessa vez. Lágrimas correram por seu rosto à medida que ela percebia o quanto estava com medo de perder Sebastian. Não, ela não iria perdê-lo. Sebastian não era um Caçador de Sombras comum.

Clary sequer pensou no que estava fazendo, mas colocou-se entre os dois. Entre Céu e Inferno. Um anjo defendendo um demônio. E fechou os olhos com força.

Então, os olhos dourados de Jace encontraram Clary. Ali, de olhos fechados, na frente do irmão que havia feito tanto estrago na vida de tantas pessoas. Naquele momento, ele percebeu, ela não era mais a sua Clary. Ela não pertencia mais a ele. Ele realmente havia a perdido.

Jace soltou Sebastian, que caiu na neve com as mãos no pescoço, arfando.

Clary voltou a abrir os olhos e sentiu seu coração fraquejar por um instante. Jace estava a sua frente, encarando-a com olhos secos. Não havia mais lágrimas para serem derramadas. Ele a olhava com uma mistura de dor e decepção; como se não a reconhecesse mais. Clary não o culpava. Talvez nem ela pudesse se reconhecer.

— Clary — Simon chamou. Virou-se para olhar seu amigo, percebendo que ele hesitava. — Você vai embora conosco, não vai?

Clary engoliu em seco. Ela não podia mais voltar atrás. Havia feito um acordo que garantia a proteção das pessoas que amava e não podia colocar isso em risco.

Mas não foi Clary que respondeu.

— Não perca seu tempo — disse Jace, prendendo a adaga de volta no cinto. Ele não a olhou. — Ela não é mais a nossa Clary.

Ela abaixou a cabeça. Sentiu braços frios ao seu redor e suspirou ao retribuir o abraço de Simon. Pelo menos ele não a odiava.

— Estarei sempre com você, ok? — sussurrou Simon, bagunçando o cabelo dela antes de voltar para o lado de Isabelle.

No entanto, quando Clary ergueu a cabeça novamente, Jace a encarava. Sua expressão era dura e fria.

— Não se esqueça de uma coisa, Clarissa — Jace disse. Mas seu olhar já não estava mais nela, e sim em Sebastian, ainda caído no chão. — Foi ele que matou Max e mais outras dezenas de pessoas inocentes, e provavelmente mataria novamente sem pensar duas vezes.

Seu olhar voltou para Clary e ela quase não conseguiu reunir coragem para encará-lo de volta. Não havia nada que ela pudesse dizer para se defender.

— Ele é uma causa perdida — Jace disse. E virou as costas para ela. — É isso que você está tentando salvar.

Clary não pôde fazer nada além de assisti-los indo embora, até que seus amigos ficassem fora do alcance de sua visão. Limpou os olhos com impaciência e finalmente deixou suas pernas cederem ao chão. Encostou a cabeça na neve macia e abraçou a si mesma, desejando por um instante que a tempestade voltasse e a cobrisse ali.

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E naquele momento, sob a madrugada ainda escura de Toronto, Clary decidiu que não iria mais derramar uma lágrima sequer. Havia desistido de toda sua vida tentando fazer o que julgava certo. E ela agora sabia que estava enganada.

Talvez o certo fosse outro, de um jeito errado.

Sebastian estendeu a mão. Ele estava destruído; sangue corria por seu nariz e boca, manchando a camisa rasgada. Havia algumas manchas avermelhadas na sua pele, onde o fogo havia queimado, mas nada que não pudesse se curar. Apesar de tudo, ele ainda sorria.

Clary aceitou sua mão.

◌◌◌

No apartamento, Clary apressou-se em cuidar dos ferimentos do irmão. Assim, manteria os pensamentos longe do que havia acontecido há pouco tempo. Entrou no quarto que dividia com Sebastian e procurou por toalhas limpas no guarda-roupa. No entanto, ao passar perto da janela pequena, Clary notou a diferença no lugar em que estavam. Não havia mais neve cobrindo o chão da cidade. Pelo contrário, o clima estava agradável. Ao longe, onde o dia mostrava os primeiros sinais do amanhecer, Clary conseguiu ver a ponta da Torre Eiffel.

— Voltamos para Paris? — perguntou Clary, quando Sebastian entrou no quarto. Ele assentiu e sentou-se na cama.

— Tenho boas lembranças desse lugar.

Clary sorriu. Sentou-se do lado do irmão, pegou uma toalha úmida e começou a limpar o sangue de seu rosto. Era incrível a semelhança que Sebastian tinha com os pais; as feições duras de Valentim, suavizadas pela beleza e delicadeza de Jocelyn. As maçãs do rosto e a boca fina também pertenciam a Jocelyn, enquanto que os olhos escuros e os cabelos louro-brancos eram de Valentim. Ela desejava também ter herdado a beleza dos pais.

— Tire a camisa e me dê a estela — ela pediu. Sebastian puxou a estela do cinto e a entregou. Em seguida, tirou a camisa manchada de sangue.

Lentamente, Clary começou a traçar uma iratze no peito do irmão. Quando terminou, largou a estela ao lado e apoiou a cabeça nas mãos. Ela havia prometido a si mesma que não choraria pelo o que tinha acontecido. Lamentar-se não iria adiantar coisa alguma. Além disso, Clary sempre soube que aquilo poderia acontecer. Estava ciente das consequências quando fez sua escolha.

— Você não tem que ficar assim, sabe — sussurrou Sebastian, tão baixinho que ela não teria escutado se não estivesse ao seu lado. — Você não fez nada de errado.

Clary o olhou. Surpreendentemente, não havia mais nada de maligno em Sebastian na visão dela. Ou talvez ainda houvesse e ela já tivesse se acostumado. Seus olhos escuros a observavam atentamente, mas ele não disse nada. Clary ergueu a mão e tirou uma mecha rebelde de cabelo prateado de cima dos olhos dele.

Ele era lindo, Clary pensou. Como um anjo caído.

Talvez não existisse uma maneira exata ou um momento certo que alguém percebe que gosta de um outro alguém. Talvez fosse o frio na barriga ao estar perto dele ou a necessidade de vê-lo o tempo inteiro. Talvez fosse o jeito como tudo parece bem ao seu lado, mesmo quando tudo está prestes a se perder. Talvez o momento certo fosse quando esse alguém percebe que, mesmo que quisesse, não conseguiria viver sem o outro.

Clary não sabia dizer.

Mas o que ela sabia agora, depois do medo que sentira de perder Sebastian, era que estava condenada ao Inferno para sempre. Qual a punição para alguém que deseja o próprio irmão?

— Tudo em mim é errado — Clary disse, levantando-se, envolta em pensamentos. — O que eu faço, o que eu digo, o que eu penso... E, principalmente, o que eu sinto por você.

Clary encostou-se à parede do quarto e escondeu o rosto nas próprias mãos. Sabia que o que estava dizendo era verdade; finalmente admitira para si mesma que o que sentia por Sebastian era tão forte quanto o poder do Anjo e que não podia ser mudado. Ela não podia ser mudada.

— E eu não me importo — admitiu Clary, mais para si mesma. Estava entrando num beco sem saída, num caminho sem volta. Mas pela primeira vez, ela não sentia nem um pouco de medo de estar enganada. Ela não se importava se era errado.

Sebastian a olhou por alguns segundos. Em seguida, levantou-se calmamente e parou em frente à Clary. Colocou os braços em ambos os lados dela, formando uma jaula, e encostou sua testa na dela. O coração de Clary acelerou.

— Eu também não. — sussurrou, abrindo um sorriso torto. E a beijou.

Clary colocou as mãos em volta do pescoço dele e o puxou para si, rompendo as barreiras que os separavam. Ele tinha gosto de sangue e fogo. Sebastian pressionou o corpo de Clary contra a parede e ela pôde sentir no peito as batidas fortes e aceleradas de seu coração batendo junto ao dele.

O beijo se aprofundou suavemente e, ao mesmo tempo, intensamente. Como uma faísca que logo se transformou num incêndio. Sebastian a levantou e ela enlaçou a cintura dele com as pernas, de modo que ela ficasse da mesma altura que ele. Ele começou a traçar um rastro de beijos no pescoço dela, deixando marcas que provavelmente demorariam a desaparecer, enquanto Clary marcava suas costas com as unhas.

Sebastian não tinha o carinho ou a delicadeza de Jace, embora ela não esperasse nada disso. Ele tinha calor e desejo. E isso bastava.

Quando Sebastian alcançou a bainha de sua camiseta, Clary hesitou, como sempre acontecia. Ele se afastou um pouco e esperou, pacientemente, como se esperasse a permissão dela. Não parecia irritado dessa vez.

Clary fechou os olhos e deixou sua mente vagar por um instante. A imagem de Jace olhando-a com dor e decepção invadiu seus pensamentos e ela quase perdeu o fôlego.

Porque você não pensa antes de agir, porque você é precipitada e descuidada, porque você sempre estraga tudo... E porque você ainda é uma mundana. Suas palavras causavam o mesmo estrago que a lâmina de uma espada. Talvez pior.

Clary abriu os olhos e olhou para Sebastian, que a encarava com expectativa. Ela sabia que se permitisse que acontecesse, não haveria mais volta.

Mas nunca houve volta mesmo. Não com Sebastian.

Clary tirou a camiseta e a jogou do outro lado do quarto. Voltou a colocar as mãos no pescoço do irmão, descendo-as por seu peito forte. Respirou fundo e ergueu a cabeça para fitar aqueles olhos escuros. Ele entendeu o recado e sorriu maliciosamente.

Silenciosamente, Clary permitiu que Sebastian a levasse para a cama.