Darker Than Black

Cause Mortis


13. Causa mortis

[14:09] 8/12 — Agora, 16km noroeste, Estrada 337, Nakanocho

(Let's do it till we get it right)

O gosto de ferrugem invadiu o céu da boca como se eu tivesse levado um soco ali e perdido alguns dentes no processo, parecia que eu havia corrido o suficiente para meia maratona já que minhas panturrilhas ardiam e meus pés doíam. A claridade excessiva me forçou a abrir os olhos e senti a dor de cabeça explodir de uma vez.

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O barulho dos urubus, pairando bem acima da minha cabeça que explodia feito uma granada, foi a primeira coisa que registrei. Levantei a cabeça e ela desabou. Parabéns idiota. Mais um ponto de dor, mais uma explosão de granada... Eu estava em cima de alguma coisa. Sério gênio? Pensar, naquele momento, doía.

Tentei levantar uma perna, mas ela escorregou como se fosse feita de gelatina e fez um barulho irritante quando a sola da minha bota desliza pela lataria; virei um pouco a cabeça enquanto uma série de rosnados, grunhidos e urros começavam a aumentar ao meu redor, como uma sinfonia caótica de sons primitivos.

Merda... Virei um pouco a cabeça e pares de mãos ossudas, ensanguentadas e sujas me cercavam. Parecia uma multidão de fanáticos em algum show, erguendo as mãos para o alto e pulando de acordo com a música. Merda... Merda... Então vieram mais gritos, alguém me chamava, mas eu sentia a sonolência me dominando aos poucos.

Tentei levantar a perna mais uma vez e tive sucesso em mantê-la flexionada, respirei fundo algumas vezes e virei a cabeça lentamente e me deparei com pares de olhos vermelhos e famintos.

— Ah... Merda...

[12:51] 8/12 — 1:58h antes, 5,1 km dos portões da Muralha, Nakanocho

O balanço do jipe sobre a estrada de terra recém-explorada era suave, a brisa era confortável e a temperatura aumentara consideravelmente. Um grupo de oito pessoas, cada uma bem equipada por facões e protetores de cotovelo e joelho, além de coletes rígidos e capacetes, enfrentava os infectados que estavam encostados nos arredores dos portões.

Nenhum deles se dera ao trabalho de perseguir os três jipes que saíram apressados da Muralha, apenas se contentaram em avançar nos adolescentes que tinham como trabalho garantir que todos os infectados permanecessem ali.

Os carros permaneceram em linha reta por cerca de quase dois quilômetros e depois viraram à esquerda, atingindo uma das estradas principais que levavam à cidade. O tapete negro se alongava por mais alguns quilômetros, havia alguns carros tombados no meio do caminho e outras bagagens abertas abandonadas como lembretes de que outras pessoas passaram por ali e, no melhor dos casos, foram estraçalhadas até a morte.

Havia alguns infectados aqui e ali, jogados sobre os capôs ou com os corpos magros estirados no meio do caminho. Poucos deles se atreviam a iniciar uma perseguição, mas logo tropeçavam nos trapos das próprias roupas ou no que restara dos sapatos que calçavam; outros estavam descalços e estendiam os braços ossudos na direção dos jipes, como pedintes à beira da estrada.

O fim do mundo consumira cada Estado rápido demais. Os poucos estabelecimentos que permaneceram de pé estavam depredados, com os vidros quebrados e pichados com avisos para prosseguir viagem ou simplesmente ficar longe. Havia um pedágio mais a frente com alguns corpos pendurados ali, era difícil distinguir se eles foram humanos ou não enquanto os pés balançavam na forca improvisada.

Porções de grama e relva nasciam entre as rachaduras na estrada e aos arredores a grama alta escondia alguns animais e infectados que se arrastavam no chão, fracos demais para se erguer e perseguir o que quer que fosse. O cheiro de podridão ardia as narinas de cada um dentro dos carros, os abutres e corvos grasnavam, brigando por um punhado de carne estragada e delimitavam nos ares suas propriedades.

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O primeiro carro parou, pouco depois de ultrapassar o pedágio e os dois postos de gasolina; um dos garotos que estava dentro do carro usou a ponta de seu taco de basebol para cutucar o pé de um dos cadáveres. Houve uma risada nervosa depois disso, além da troca de alguns socos e piadas a respeito.

O segundo e o terceiro jipes pararam, aos poucos as pessoas deixavam os bancos estofados e o suor que grudava as roupas nas costas, inspiravam o ar e tentavam ignorar o som das moscas zumbindo nos corpos a poucos metros dali.

— Espero que todos vocês limpem bem os ouvidos, porque não vou repetir, meninos e meninas... — a voz autoritária e quase zombeteira de Gaara se sobrepôs ao barulho das moscas por um tempo. — Hoje nós temos dois pontos de busca: uma creche e um manicômio. Há quase 17 quilômetros de distância entre os dois e são mais de 8 até aqui, então prestem atenção.

Ele limpou o suor que escorria da testa e pegou um mapa de dentro do jipe que dirigira e o estendeu sobre o capô do carro, usou seu revólver e seu rádio* como pesos de apoio. Havia dois pontos circulados em vermelho e um quadrado vermelho com algumas setas também.

— O ponto quadrado é o pedágio, nosso ponto de encontro quando alguma merda acontecer... — ele apontou no mapa e escorregou o dedo no primeiro círculo. — Aqui fica a creche. Deve ter alguma coisa interessante ali e talvez algo por perto também. — Uma risada nervosa escapou de Gaara e ele indicou o segundo círculo. — Aqui, a casa dos loucos. Algumas pessoas foram jogadas lá dentro quando a merda toda começou, achavam que estavam delirando sobre a coisa toda...

— Eles têm alguns remédios fortes lá, deve haver algo para aproveitar — Shikamaru se pronunciou e estudou o mapa com cautela por alguns minutos. — Deve estar trancado e ter portões grandes, esse tipo de coisa. É melhor entrar pelo prédio do lado, deve haver menos infectados e podemos estudar a movimentação de lá.

— É uma... opção — Gaara admitiu e encarou Shikamaru por algum tempo. Franziu o cenho rapidamente e prosseguiu: — Havia uma unidade policial instalada por perto, quem sabe eles deixaram alguma coisa para trás? Já a creche ocupa quase um quarteirão, não devia estar protegida quando...

— Quando os policiais enlouqueceram e atiraram nas pessoas? — Karin disparou, interrompendo-o e ganhando a atenção dele para si. Ela mantinha os braços cruzados sobre o peito e enrijeceu o corpo automaticamente. — Por que gastar tempo numa creche?! Não tem nada lá, além de...

Ela não teve coragem para completar a frase e apenas esfregou os olhos com força, enquanto um nó fechava sua garganta. Nenhum deles conseguia dizer que havia crianças com braços arrancados, pequenos seres humanos de todas as alturas e idades que tiveram as barrigas abertas e os intestinos arrancados; não conseguiam tirar da cabeça a imagem dos lábios azuis e dos olhos inocentes eternamente vidrados em horror ou do sangue coagulado e seco no chão, nas paredes, nas janelas e portas.

Não conseguiam parar de imaginar os corpos miúdos destroçados por animais irracionais, quantos pedaços de pele nova estavam agora em gargantas ferozes e mais velhas ou quantos dedos haviam sido torcidos e roídos por aqueles dentes podres, mais fortes e famintos durante dias ou semanas. Os gritos... Era o horror dos gritos que embrulhou-lhes os estômagos e fez a bile surgir.

— Eu não vou pra lá — Karin determinou com a voz falha e respirou fundo algumas vezes. Imaginou o quão perto daquela sentença esteve Jun durante todo o tempo em que esteve perdida até encontrá-la. — Nenhum filho da puta vai me forçar a ir lá e quem tiver bolas para tentar isso, bem... Eu realmente acho que é o desgraçado mais sem coração que existe.

— Não seja tão mulherzinha... São apenas crianças... — cortadas, destroçadas, mortas, foi o que a mente de Gaara completou enquanto ele tentava forçar o autocontrole no resto do corpo. Ele ignorou o sorriso desafiador de Karin e apontou para o mapa outra vez. — Temos três dias para completar a busca, nada mais do que isso. Quem ficar preso pode tentar se safar se conseguir abrigo até que alguém queira aparecer...

— Aposto que você adoraria ser deixado com um bando de infectados bufando na sua cara... — Kankuro manteve o corpo rente a lataria do jipe e cerrou os punhos com força, ignorando a vontade de marchar até o irmão mais novo e socá-lo por algum tempo. — Eu gostaria de abandoná-lo assim.

— Como fez com a pobre Dina e as crianças, maninho?

Foram necessários apenas cinco passos largos de Kankuro para alcançar o irmão e logo seu punho cursou o trajeto reto e curto até o nariz de Gaara, cada movimento que sua mente havia planejado por todo aquele tempo era idealizado com perfeição diante de seus olhos – o choque, o atrito de pele contra pele, a adaptação grosseira de seus dedos esmagando cartilagens e o osso nasal.

Sem qualquer cerimônia ou aviso, o corpo de Gaara o traiu e ele sentiu as pernas tropeçarem quando uma explosão dolorosa e inicialmente anestesiante atingiu seu rosto.

Os socos seguintes desgastaram a pele entre os dedos devido a brutalidade e força aplicadas em cada murro de Kankuro, aquela ardência não o incomodara de forma alguma e ele sentiu-se energético enquanto o sangue escorria do nariz de Gaara; a adrenalina e a raiva o impulsinaram a lançar-se sobre o irmão e jogá-lo contra o jipe. Três dos adolescentes que os acompanhavam tentaram separar a briga e falharam miseravelmente quando Kankuro os afastou bruscamente.

— O qu... foi maninho? — Gaara tentava manter a cabeça reta e conseguiu com dificuldade, escorou o corpo na lataria do carro e tentou manter o equilíbrio. Seus olhos verdes brilhavam em escárnio e recebeu outro soco no maxilar. Aquele era o terceiro. — Não... consegue se lembra dela? Dina? As meninas?

— Cala a boca!

— Parem com isso! Que droga! — as vozes de Kankuro e Sakura se misturaram, uma mais histérica que a outra e o olhar cauteloso de Sasuke os seguiu quando a Haruno se intrometeu entre os irmãos. — Ninguém dá a mínima para a merda de vocês dois ou para quem vocês perderam! Isso não importa mais, agora se controlem e mantenham a droga do foco nessa busca.

— Não se intrometa, Sakura — Kankuro a avisou e deu mais dois passos na direção de Gaara. Ela o empurrou e continuou encarando-o, numa súplica muda de que simplesmente parasse e ignorasse o sorriso manchado de sangue e sobrecarregado de desafio do ruivo. — Estou avisando...

— Isso, Sakura! Não se intrometa! — Gaara repetiu as palavras do irmão com certa dificuldade e tentou recuperar o fôlego pela boca. O nariz começou a bombear sangue rápido demais e o filete grosso e úmido caía de forma insistente pelo queixo. — Essa merda não é sua.

— Será que você não consegue calar a boca? — Sakura questionou e a irritação começou a dominá-la. Ela manteve uma mão sobre o ombro de Kankuro e pôs a outra no coldre preso à cintura. — Não me force a isso, Kankuro... E você, cale a porra da boca!

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(Dog day nights)

— Ou o quê, doutora? Vai dar um jeito em mim como...

— Jesus... — o sussurro enojado de Karin chamou a atenção de Naruto por meio segundo. O sorriso ensanguentado de Gaara ficou largo quando notou o desconforto de Sasuke e de Sakura. — Não me faça imaginar isso...

— Ou quem sabe você possa ajudar meu querido irmãozinho a esquecer as cria...

— Já chega!

Aquelas duas palavras rosnadas por Kankuro mal pareceram que saíram de sua boca e seu corpo tremia em pura adrenalina e ira ao encurtar a distância entre ele e o irmão, empurrando quem estivesse na frente até que seus punhos cerrados encontraram o rosto de Gaara com mais violência do que antes. Naqueles instantes, pouco lhe importava os dedos intrometidos de quem tentava separá-los, os gritos desconexos ou o barulho de algumas armas sendo destravadas.

Joelhadas e socos foram trocados com brutalidade, Gaara se jogou contra o irmão na esperança de derrubá-lo a tempo, antes que sua cabeça começasse a girar rápido demais e o ardor no nariz explodisse outra vez; o corpo todo de Kankuro começava a reclamar pelo esforço repentino e sua respiração ficou mais ofegante quando sentiu que era empurrado e derrubado. A pressão dos dedos de Gaara sobre o pescoço de Kankuro era maior do que ele próprio previra e assistiu o sangue começar a se concentrar num ponto do rosto do irmão.

Parecia que para o ruivo o mundo girou bem devagar, quase cintilava em câmera lenta enquanto assistia o fôlego ameaçar abandonar seu irmão em definitivo. Quase. Seu olhar estava focado, vidrado na forma como a respiração de Kankuro começava a ficar mais forçada, mais lenta e como suas narinas trabalhavam mais rápidas em busca de ar. Quase.

Então seus dedos foram abruptamente arrancados dali.

Com igual violência e brutalidade, Sakura se aproximou e enfiou as unhas no couro cabeludo dele, forçando-o a erguer as mãos e tentar afastá-la – ela manteve as unhas ali e puxou-o com o máximo de força que possui. Kankuro rolou para o lado, as mãos pararam na garganta rapidamente e a tosse seca, machucando-a no processo, parecia um silvo aliviado de um animal ferido. Shikamaru e Sasuke puxaram Kankuro pelos ombros e Karin se aproximava com a arma em punho.

Ela mirou na direção da cabeça de Gaara enquanto Sakura sacava a própria arma e apontava-a contra a nuca do ruivo.

— Eu quero que você faça algo estúpido pra que eu enfie uma bala no seu crânio. Então, por favor, por favor, seja um idiota de novo... — o sorriso torto de Karin era tão sincero quanto suas palavras, seu dedo alcançou o gatilho e ela encarou os dois irmãos. — Espero que vocês tenham se estapeado o suficiente por hoje meninas... Vamos deixar o resto da emoção com os infectados, sim?

O silêncio que se instalou era incômodo, os olhares vidrados e ensandecidos de Gaara e Kankuro esclareciam que haveria mais emoção até que um deles parasse de respirar por completo ou engasgasse no próprio sangue enquanto isso.

— Vamos rodar um pouco, seus putos. Temos muito a fazer — Karin afirmou enquanto encarava os demais rapidamente e retornava sua atenção à Gaara. — Quem te colocou no comando, sua vadia louca?, você ia dizer isso, não ia? Então meu chapa, eu fiz isso e não me importo nem um pouco em te mostrar como eu sou uma vadia louca pra enfiar uma bala no seu rabo branquelo se você tentar agarrar aquele garotão ali — apontou para Kankuro rapidamente com a arma e depois direcionou-a ao ruivo.

— Eu dou as ordens aqui, garota!

— Não. Você só reproduz o que o Capitão Gancho diz, porque se você fosse tão bom assim, seria você a dar as ordens e não o caolho — as palavras foram ditas com casualidade e certo deboche por parte de Karin, mas o sorriso torto em seu rosto era o que realmente irritara Gaara. Ela sorriu um pouco mais satisfeita e se afastou um pouco, ainda com a arma mirada no rosto do ruivo.

Shikamaru pegou a metade restante do cigarro que estava amassado no bolso e segurou-o com os dentes enquanto apalpava os bolsos até encontrar o isqueiro. O gosto de tabaco e outras toxinas invadiram sua boca enquanto analisava a situação e tentava se lembrar qual foi o caminho feito até ali. Creches e manicômios não têm nada a oferecer além de mortos e alguns loucos trancafiados. Então por quê? Encarou o mapa estendido sobre o capô do carro e estudou-o como se sua vida dependesse disso – e dependia -, tentando reconhecer quais rotas de fuga poderiam usar em casos de hordas aparecerem e quais locais poderiam servir de abrigo.

Três dias na cidade. Não há recursos suficientes para tudo isso ou para alimentar todos. Havia quatro caixas de munição para dois tipos de revólveres: .38 e .22, além de duas caixas e meia de munição para a submetralhadora e uma caixa amassada de balas para o único e estimado rifle. Seis facões, duas katanas, dois tacos de basebol e duas machadinhas.

Havia 40 litros de água, doze caixas de bolacha e mais oito enlatados diversos. Um kit de primeiros socorros e pouco mais de três tipos de remédios: antibiótico, anti-inflamatório e morfina. Nada mais do que isso.

Seriam três dias exaustivamente longos. Longos até demais.

[05:33] 17/7 — Cento e trinta e quatro dias antes, Distrito de Osaka

O suor gélido acompanhava os tremores nos corpos pequenos encolhidos na parede de madeira mofada e arrancada aqui e ali, os olhos castanhos das duas irmãs gêmeas – Kim e Iume – pairavam sobre o rosto assustado da mãe, a forma como ela segurava as mãos de cada uma e tentava garantir apenas por aquele gesto de que elas ficariam bem.

As janelas foram tapadas às pressas com tapetes, tábuas quebradas e com o que encontraram ali dentro, os móveis restantes bloqueavam a porta e a escada. Estavam presos ali desde que simplesmente saíram correndo do centro até a esquina seguinte e entraram na casa aparentemente abandonada.

O piso rangia do andar de cima com os passos pesados, o barulho de rosnados e uma voz quase humana ecoavam constantemente tão desconexa quanto a voz de um bêbado; os outros três adultos permaneciam petrificados, brincando eternamente de estátua.

Kankuro mantinha a cabeça entre os joelhos e tentava ignorar os sons de sapatos arrastados, encontrões fortes de um corpo contra os móveis que haviam no andar de cima e o quão abafado aquele casebre estava ficando, vez ou outra erguia os olhos e encarava sua esposa e suas filhas, sorria fraco como se tudo não passasse de um jogo. Agora ninguém pode se mexer... Estátua!

Os dedos calejados de Gaara passeavam pelo próprio couro cabeludo, o corpo estava escorado no sofá que bloqueava a escada e os olhos estavam fixos ora no chão ora nos feixes de luz que penetravam as janelas tapadas, mas sua mente dava voltas sobre como foram parar naquele trecho ruim de filme de terror, bem naquela parte em que o protagonista está com a família esfomeada, trancafiados num cubículo e sem qualquer tipo de arma para matar o monstro do andar de cima.

Tudo o que sabiam era que pessoas realmente armadas estavam matando as coisas lá fora que saltavam, gritavam, arranhavam e estraçalhavam qualquer um que não corresse rápido o suficiente. As pessoas com armas estariam vivas até o fim do dia, eles não.

— Nós precisamos de armas — o ruivo murmurou encarando o irmão e se moveu da forma mais silenciosa que pôde até ele, sentou-se e fingiu encarar os próprios pés por alguns instantes. — Nós precisamos de armas se quisermos sair em segurança daqui maninho e...

— Nós precisamos de comida — Kankuro interrompeu-o bruscamente e o encarou por alguns minutos. Ambos se encararam seriamente por todo aquele tempo. — Eu não vou arriscar a minha família, entendeu? E não há armas aqui, nós já procuramos.

— Talvez no andar de cima — a sugestão saiu rápida e soou prática demais dos lábios de Gaara por um momento e depois como se fosse um convite suicida. Realmente era. — Vamos lá, só tem uma dessas... coisas... Um transformado... Pronto, soa melhor? Só tem um deles, deve ser magrela e patético. Nós sabemos lidar com esse tipo de coisa. — A empolgação crescente na voz do ruivo traçava o plano perfeito em sua mente, roteirizava a parte em que o protagonista encontrava uma arma e lutava com os monstros sem nenhum arranhão.

Era perfeito em sua mente. Prático.

— Nós sabemos lidar com esse tipo de coisa maninho. Passamos por merdas maiores que essa — o olhar de Gaara sustentava a arrogância e a ambição que lhe eram de praxe, embora sua voz permanecesse o mais baixa possível, era a sua convicção que crescia e inflava o próprio ego e o de Kankuro. Ele encarou Dina e as meninas por algum tempo. — Dina nunca se importou com o que nós fazemos...

— A situação é diferente Gaara. Isso não é um trailer de caipiras... Essa merda é diferente — a hesitação que Kankuro transmitia era tão falsa quanto o seu autocontrole diante da situação toda.

Ele queria provar aquele tipo de aventura, afinal não eram caipiras bêbados que levariam uma surra e teriam as carteiras, joias e chaves dos carros velhos e sem revisão levados. Aquela aversão do mundo normal era mais instigante do que qualquer coisa que seus olhos haviam visto e Gaara sabia disso, também sentia que cada fibra do seu corpo clamava por provar a adrenalina que esta realidade tinha a oferecer.

— É exatamente por isso que nós podemos lidar com essa merda. Escuta, você quer deixar as meninas morrendo de fome, hã? É isso? — ele inclinou ligeiramente a cabeça e depois respirou fundo, erguendo as mãos e deixando-as cair sobre os joelhos. — Elas estão assustadas porque você está se borrando de medo maninho, você é o herói delas e vai deixá-las morrer nesse buraco com fome e com sede porque você não conseguiu quebrar um transformado patético magrela, hã? É isso mesmo irmão?

Dina observava, mais assustada do que antes, a forma como Gaara hipnotizava Kankuro para realizar seus objetivos, como o persuadia a acompanhá-lo em todas as suas investidas ambiciosas e formas miraculosas de ganhar grana fácil e sair de uma briga sem um arranhão. Ela nunca questionara, nunca se metera, nunca vasculhara as roupas de Kankuro à procura de qualquer indício de como ele fazia o que fazia para viver; desde que ela e as meninas estivesse bem o mundo continuaria a ser cor-de-rosa para Dina.

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Até o momento em que vira Kankuro tirar uma arma das costas e deixá-la sobre a mesa como se fosse uma carta de um parente chato, foi bem ali que o seu mundo ficou um pouco menos róseo.

Kankuro era seu badboy numa cidade do interior cheia de caipiras alojados numa porção de terra quente e infeliz, estrangeiros e velhos lotavam as pensões invadidas por insetos, pelo cheiro de comida frita e de álcool e para Dina bastava a promessa de que ela, uma garota de pouco mais de dezenove anos, subiria na moto (roubada) de Kankuro, agarraria sua ridícula jaqueta de couro e pegariam a estrada para a cidade grande, como um daqueles casais de seriado.

Eles saíram daquela cidadezinha, tiveram filhas antes do previsto e moravam num casebre decente, num bairro decente na cidade grande, mas nada glamouroso e extraordinário como havia desenhado para si mesma com seus lápis-de-cor rosa e mágicos. Moravam nos fundos de um aglomerado de casas que fedia a gordura, álcool e tinha mais estrangeiros do que os insetos. Ponto! Novo endereço e a mesma velha merda de vida de sempre.

A grande diferença era que Gaara estava mais presente do que antes, não aparecia mais vez ou outra e era quase frequente vê-lo instalado na sala ou nos fundos, sempre murmurando as palavras mágicas que faziam Kankuro sumir por dias ou semanas e aparecer com a grana: o dinheiro fácil, voluptuoso e amontoado em rolinhos agradáveis aos olhos e bolsos.

Era parte do acordo entre Dina e Kankuro não fazer perguntas, era parte do que eles eram e de como haviam se tornado um casal relativamente estável com filhas e uma casa decente. Ela não perguntou para onde iam, se deviam levar roupas, grana, comida ou até mesmo a arma escondida em cima do guarda roupa (não que ela houvesse xeretado, é que era óbvio demais onde Kankuro escondia a arma); não questionou o que diabos estava acontecendo ou o porquê de Gaara parecer tão afobado quanto um garotinho de dez anos que tem medo do que há no armário.

Apenas fez o que Kankuro disse: pegou as meninas e o seguiu para fora daquela casinha que fedia a óleo quente, bebida barata e a sexo fresco pela noite. Pensou que finalmente viveria o grande sonho: pegariam a estrada glamourosa da vida perfeita e viveriam naquela terra até o fim de seus dias, suas filhas seriam mulheres belas e de sucesso, Gaara seria apenas uma sombra outra vez e... Falta!

A cidade parecia um carrossel de corpos rodopiando aqui e ali, unhas sangrentas e lábios vermelhos, bocas que se abriam e emitiam sons tão horrendos e sôfregos que fizeram-na se questionar se alguém podia gritar assim. Os edifícios flamejantes jorravam pequenos pontos aleatórios que caíam aqui e ali, todos em chamas como fogos de artifício lançados ao contrário.

Foi um pouco tarde demais que percebeu que não eram pontos em chamas e sim pessoas pegando fogo. Só notou quando os corpos começaram a atingir o chão, os tetos dos carros estacionados próximos à calçada e as pessoas que tentavam correr pela calçada.

Seus pés se moveram o mais rápido possível, uma mão agarrada ao pulso de Iume e a outra na de Kankuro, Gaara os seguia mais atrás com Kim, todos corriam na mesma direção da multidão amontoada e desesperada para fugir. Havia uma fileira de carros abandonados, deixados para trás pelos donos que tentavam alcançar a estrada principal que os levaria para outras estradas interligadas ao interior e para outros distritos.

Dina movia a boca, tentava emitir qualquer som que não fosse de puro pânico e virava constantemente a cabeça para visualizar Kim nos ombros de Gaara e mal havia percebido que Kankuro havia feito o mesmo e lhe puxava pela multidão. Mas ela não conseguia desviar os olhos das pessoas ensanguentadas que corriam entre eles, dos braços esticados e dos dedos que agarravam outros braços, outros pescoços, outras pernas, outras mãos e os subjugava.

Não conseguia parar de continuar olhando a maneira como eles eram humanos, como não havia nada em sua aparência que os denunciasse como monstros. Ela via pessoas feridas, pessoas que tentavam alcançar outras e pessoas que se agachavam sobre outras como animais famintos e sanguinários. Ela os escutava berrar, pedir ajuda, praguejar, lutar por suas vidas e pelo fim de outras; escutava os estrondos dos corpos flamejantes, o cheiro de sangue e carne carbonizada se misturava ao de pólvora.

Os disparos feitos pelos policiais, apenas a alguns metros atrás daquele bando de condenados que tentavam fugir, feriam e matavam crianças, velhos, jovens e adultos sem qualquer cerimônia e os que fugiam dos tiros eram pegos por dentes e unhas ferozes. Alguns eram atingidos pelos corpos flamejantes, pelos destroços dos prédios sendo destruídos por tiros, lança-chamas e pela perseguição de balas dos helicópteros.

Corpos caíam, tombavam em fileiras ou amontoados sobre carros, o asfalto ou onde quer que fosse. Dina sentia seus pés tropeçando nos braços estirados, sentia os dedos roçando suas canelas e fios de cabelo delicadamente encostados em suas panturrilhas; ela via que avançavam para algum canto mais afastado do centro, atravessando corpos e se esquivando como fugitivos dos ensanguentados e dos policiais.

Ela não questionou absolutamente nada quando entraram apressados no casebre ou quando Kankuro e Gaara tapavam as janelas, travavam a porta como podiam e bloqueavam a escada. Dina não abriu a boca quando ficaram enfurnados naquele lugar invadido por cupins e manchas por mais de dois dias, nem mesmo reclamou quando o estômago começou a doer e tudo o que os cinco tinham para comer era uma sopa enlatada e um pacote de macarrão cru. Portanto ela não perguntou ao marido o que iria fazer quando ele levantou com o irmão e ambos começaram a arrastar o sofá.

Os passos no andar de cima pararam repentinamente e todos os olhares ficaram fixos no teto, houve um rangido longo da madeira e depois o silêncio. Os dois irmãos se encararam rapidamente e afastaram o sofá lentamente, deixando o espaço suficiente para que eles passassem esgueirados.

— O que vocês estão fazendo? — Iume perguntou transmitindo parte do desespero que a mãe sentia naquele instante. As três se encolheram um pouco mais quando perceberam que o barulho de passos havia recomeçado. — Papai! Tio!

— Saiam daí! — Kim disse aflita e assustada. Os olhos castanhos se arregalaram de medo quando viu que o tio começava a enfiar o tronco pela brecha entre a escada e o sofá, seu coração disparava tão rápido e frenético quanto havia lembrado. — Parem!

— Quietas! Vai dar tudo bem — aquelas palavras padrão de consolo foram ditas de forma tão automática por Kankuro que tudo o que sua mente registrava era que as meninas estavam falando um pouco alto demais.

Sua mente não conseguia se concentrar nas palavras igualmente padrão de consolo proferidas por Gaara, no desespero transbordando nas vozes das filhas, no rangido da madeira ou no barulho do teto cedendo a algo excessivamente pesado. Tudo o que importava era que havia alcançado a escada e subia os dois primeiros degraus como sempre fazia em suas rondas com o irmão: da forma mais silenciosa e ágil possível.

A quietude bruscamente interrompida pelos urros apenas aumentava a adrenalina que os dois sentiam, parecia que aqueles sons guturais e todas aquelas meias palavras os convidava a dar mais alguns passos e encarar o tal monstro, exatamente como o protagonista do filme faria. Eles eram a dupla que saía de assaltos sem grandes ferimentos, a dupla que tinha dedos ágeis e boa sincronia para assaltar caipiras de regiões perigosas e dar uns bons socos em alguns valentões.

Então o que era quebrar um transformado patético magrela que estava preso no andar de cima? Aquilo seria a coisa mais emocionante que enfrentariam e não lhes renderia dinheiro algum, mas seria uma ótima válvula de escape para toda aquela tensão.

Então o que seria quebrar um transformado patético magrela desarmado? Nada.

Só havia três portas naquele andar e a única que estava escancarada era a do cômodo com o transformado barulhento que se movia como um bêbado, dava passos vacilantes para frente e para a direita, movia freneticamente a cabeça para os lados como se estivesse aguardando que alguma coisa aparecesse e esbarrava nos móveis dali como se não os visse. Kankuro e Gaara avançaram, cada qual com um sorriso confiante e arrogante de que aquilo era mais fácil do que previram.

Não perceberam o quanto a madeira cedia sobre seus pés, apenas tentavam fazer o mínimo de ruído possível enquanto se moviam em direção ao transformado. Se aproximaram furtivamente da soleira e aguardaram por qualquer movimentação estranha lá dentro logo entraram no cômodo amplo. A silhueta magra e esguia se virou, o pescoço tinha uma parte sangrenta em carne viva, as pontas da pele irrompiam ao redor do ferimento e a roupa estava suja de sangue.

Era uma adolescente e talvez tivesse quinze ou dezesseis anos, os cabelos excessivamente curtos molduravam o rosto fino e os olhos negros ficavam em evidência com as orbes cheias de veias vermelhas pulsantes. Era apenas uma garota desarmada, magrela e que abria e fechava a boca como se estivesse prestes a vomitar.

(Forever young)

Ela flexionou os joelhos levemente e avançou rapidamente, mas seu pé esquerdo afundou repentinamente na madeira fina e rangente, foi em segundos que sua perna esquerda e depois parte da direita afundaram repentinamente. Kankuro se afastou levemente enquanto a menina franzina pedia por ajuda e gritava que queria rasgar suas gargantas.

— PAPAI!

— KANKURO! KANKURO POR FAVOR!

Os gritos das suas meninas o fizeram sentir medo. Ele as ouvia gritando, pedindo que ele fizesse alguma coisa, que fizesse sumir aquela coisa. Quando finalmente moveu as pernas para a soleira outra vez, sentiu seu braço ser puxado repentinamente por Gaara que apenas apontou para a porta da frente com a mão trêmula e disse com a voz assustada:

— Eles... Tem mais...

Tudo o que a cabeça de Kankuro se lembrava era da fresta entre a escada e o sofá, alguém podia se esgueirar ali facilmente, especialmente se fosse magrela, patético e transformado. Suas pernas não se moveram quando ele assistiu dois magrelas patéticos que deviam ter pouco mais de dezesseis anos se esgueirando escada abaixo, tateando a parede e deixando-a com linhas irregulares e úmidas enquanto desciam os degraus.

Ele não se mexeu quando eles desapareceram do seu campo de visão ou quando a madeira fina começou a ceder sob seus pés, ele não conseguia tirar os pés do lugar enquanto ouvia a menina a pouco mais de um metro de distância se remexer inquieta, cuspindo palavrões e pedidos de ajuda até seu corpo passar pelo buraco no teto com facilidade e seus olhos encontrarem as suas meninas.

Ele não sabia quando Gaara havia enfiado as mãos em seus ombros e puxado-o até a janela, mal lembrava que havia levantado as pernas e passado-as pelo espaço relativamente estreito da janela. Não sentiu o impacto dos joelhos ao amortecer a queda do telhado poeirento até o chão, não sentiu as lágrimas que caíam ou o ardor das panturrilhas.

Só se deixou cair no chão alguns metros adiante e rastejou de volta ao casebre, enfiava as unhas na terra seca e estéril, tentava conseguir o impulso suficiente para voltar correndo para lá e salvá-las.

— Não! Não! NÃO! Kankuro!

— E-EU CONSIGO! Dá tempo! Vai dar! ME SOLTA GAARA! NÃO! — ele enfiava as unhas curtas e sujas nas mãos que envolviam seu peito e o forçavam a recuar, chutava freneticamente o ar e gritava como nunca havia gritado. — DÁ TEMPO! DÁ...! NÃO! NÃO!

— Já era! JÁ ERA!

Quando as mãos de Gaara o soltaram, Kankuro desabou com a testa encostada no chão e as pernas dobradas, sustentando parte do peso do próprio corpo. O choro que rompia seu peito era doído, agonizante e surreal; o ruivo permaneceu deitado encarando o céu e ouvindo os berros do irmão em silêncio, permitindo-se continuar murmurando que tudo havia acabado.

Kankuro ergueu os olhos rapidamente e visualizou, entre as lágrimas e a poeira, o casebre de madeira no qual Dina e as meninas continuariam pedindo a sua ajuda e gritando de dor, de desespero e de pânico quando aquelas coisas patéticas avançassem e mordessem suas peles, abrissem ferimentos com os dentes e fizessem o sangue jorrar compulsivamente da jugular. Ele imaginava os gritos, os sons doentios de carne mastigada, o cheiro e suas garotas no meio daquilo tudo, inertes como bonecas enquanto engasgavam no próprio sangue.

Gaara não ousou dizer nada enquanto ouvia os soluços descontrolados do irmão e fitava o casebre cheio de manchas e de pedaços do que antes era a sua família.