Varsóvia, Polônia – meados de 1943.

– Herr Komandant, Herr Kommandant! Veja só, quase deixamos esses escaparem!

O oficial da Waffen SS [1] trazia dois prisioneiros aos calcanhares – um casal de gêmeos, ruivos e sardentos, trajados com vestimentas maltrapilhas de camponeses, alguns números abaixo do ideal para suas meias medidas. Empurrava-os como animais doentes, pressionando-os com coronhadas repetidas contra a nuca. Ao que parecia, eram os últimos judeus a se lidar naquela pequena aldeia rebelde dos confins da Varsóvia, saqueada e reduzida a entulho pela divisão comandada pelo impetuoso Untersturmführer [2].

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Sob a chuva fraca que caia nas colinas de centelho, os nazistas executavam a Solução Final [3] com mãos negras de ferro. O negro era a cor do nazismo. Por trás de todos os seus eufemismos, gritava para o mundo através da cicatriz profunda em forma de suástica, recordando-o o quão negro o coração de uma ideia podia se tornar.

– Traga-os até mim, não antes de imediatamente. Já nos estendemos demais nessa imundice. Pretendo chegar a tempo de ver a apresentação de Elisabeth no Pube Cafe, e seria bom para todas as partes que se lembrassem - a seda rubra de Herr Kommandant [4] dava brilho ao negro lustroso de seu cetro, tal como à Totenkopf [5] de prata em seu topo, aparentemente num ciclo de vício e pompa. Vaidoso como todo líder do Terceiro Reich [6], talvez pretendesse reproduzir o gelo de seus olhos.

– Andem, polacos cretinos! Adiante trocar algumas breves palavras com Herr Kommandant. Vai ser divertido, sim, vai.

Dessa vez, ao serem pancados com o rifle, ambos os irmãos desabaram, exauridos. Choramingavam, inutilmente, procurando a mão um do outro uma última vez. Os demais soldados, um total de quatro, estouraram em gargalhadas. O mais embriagado, Mark, recebeu uma bronca coletiva ao derramar o conhaque do único cantil do grupo.

– Oh, não se aguentam de pé? Eles não se aguentam de pé, que engraçado! Vamos, cretinos. Não me envergonhem na frente dos camaradas, ou sofrerão por isso – o soldado ameaçou rispidamente, conseguindo um lamento choroso ao queimar algumas sardas com a bituca do cigarro.

– Dê-lhes de um pouco de seu Pervitin [7], Fou, vamos. Não vai te fazer falta, é um caso perdido – provocou Krauzer por trás da fumaça da garrafa térmica, cujas mãos que poderiam envolver a cabeça de um dos gêmeos com folga desenhavam na neve uma forma peniana cortando uma mulher em duas. Quando seu rosto amassado e costurado ocultava-se contra aquele véu de quentura e cafeína, não conseguia se passar por tão bruto. Entorpecia-o.

– Cale a boca, Krauz! Só não estou no meu melhor momento. Apenas isso. Pervitin demais ou de menos acaba não fazendo muita diferença depois que o café perde toda a graça. E também tem a coca – Fousein defendeu-se num tom infantilmente aborrecido, mas só conseguiu cuspes e vozes finas dos companheiros.

– Escrevi uma carta essa semana. Pedindo um novo estoque, sabem. Espero não estar pedindo o impossível – comentou um Mark desolado, para ninguém em especial.

– Ei , Fousein, talvez devêssemos rastejá-los – opinou o oficial de sorriso amarelo, Sternen, ensaiando uma risada estridente e ansiosa entre o dente que lhe faltava, o que deixava sua cara castigada pelas espinhas ainda mais desagradável. Achegou-se ao companheiro de tropa, puxando o mais encardido dos ruivos pelo couro cabeludo até ouvi-lo rasgar. O choro fez seus olhos de fuinha brilharem. - Como vermes que são, seria apropriado, certo? Certo, Herr Kommandant?

– O que quer que seja, pelo Fuhrer! [8] Contanto que o façam agora - o Comandante polia suas botas de bico de aço. Delas limpava o excesso daquilo que as maculava – sangue.

Numa algazarra beberrona, os soldados arrastaram os prisioneiros através do charco de meio quarteirão da trilha campal até a autoridade nazi do Untersturmführer. Os gritos dos irmãos morreram antes de nascer, abafados pelas raízes e grama que acabavam por engolir no beijo forçado contra o solo. Fousein puxava um pelos braços, enquanto Sternen sentia prazer em fazê-lo pelo cabelo – mas não demorou muito e foi obrigado a trazê-lo pelos tornozelos quando, sob prantos possuídos pela dor, fios e couro desprenderam-se sob as grossura das luvas nazistas. Antes de afastar-se, Sternen ainda fez questão de chutá-los nas costelas, como se se vingasse por estragarem sua diversão.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

– Pois bem. De pé, os dois – o Comandante ordenou, indiferente ao abatimento mórbido dos moribundos. Folheava as páginas de um livro de cabeceira, Poemas de Shakespeare. Com desdém, jogou-o por cima do ombro. Assisti-los divertia-o mais. - Lixo inglês. Entrou lodo em seus ouvidos, moleques? De pé.

Custosamente, os irmãos obedeceram, usando um ao outro como apoio. Quando puseram-se de pé, um dos SS simulou palmas e reverências extravagantes.

– Quais são seus nomes, ratos? - ele concentrou um olhar particularmente clínico em um dos meninos, estudando-o.

Entreolharam-se nervosamente, incertos do que o tirano gostaria de ouvir de suas bocas rachadas. Talvez o sangramento não lhe bastasse. Mas a resposta - qualquer que fosse a palavra-chave para o sadismo - lhes falhou.

O Comandante respirou profundamente.

– Por que dificultam meu trabalho? Vejam, pivetes, estamos escrevendo as linhas da História aqui, e precisamos de tinta - sangue judeu, como o de vocês e todos os putos abatidos nessa chafurda de vila rebelde, claro, pois o homem que dorme com demônios condena-se ao inferno. Acham correto, diante de tão importante obra, enfadar-nos com uma banalidade de pique-e-esconde? Francamente...

O vento uivou, e Herr Kommandante interrompeu sua lamentação: com o corpo rijo do cetro, disferiu uma pancada cheia e precisa contra a clavícula frágil de um dos pequenos, debulhando-o em dor ao parti-la como madeira oca. Os joelhos fracos renderam-se no ato, dobrando-se trépidos sob o gramado orvalhado, e o irmão vacilou um passo hesitante e contido em sua direção – um erro de amor fraternal. A prata do crânio nazista descreveu um arco de sangue no céu nebuloso, e, no instante seguinte, o cenho do garoto curvado estava severamente rompido, lançando-o às cegas num início de convulsão. As mãos, ao cobrirem a ruína do rosto, mergulharam-se de vermelho-vivo. Afogava-se a cada jorro, e o cobre apagado do cabelo avivou-se pela cor sôfrega.

– Ademais, eu tenho um compromisso no Pube Cafe com um linda senhorita, portanto... cumpram de uma vez sua parte para com a Solução Final: morram – o líder nazista cuspiu, literalmente, saboreando a tela de medo e angústia que sua outra vítima era enquanto secava os lábios na manga espessa do casaco. Atormentado pela impotência, relutante em digerir a mutilação do irmão, o ruivo mal notou quando o cano da Beretta [9] foi apontado entre seus olhos. O Comandante sorriu maldosamente, beijando o SS da gola alta do uniforme numa oração hitleriana particular. Apertou o gatilho.

O cheiro de pólvora preencheu o ar frio e carregado tão repentinamente quanto a explosão ensurdecedora da munição. “Flash”, o Comandante sussurrou com lábios mudos. O tiro concentrado perfurou a testa sardenta como um alvo, roubando um último suspiro da criança perdida. As contas verdes reviraram-se nas órbitas, sumindo e dando lugar ao branco absoluto, e, assim que a trilha vermelha engoliu as sardas, o corpo magro pendeu sem vida na terra molhada com um baque esmorecido. A fumaça cinzenta da capsula assomava-se à fantasmagórica nuvem branca das bocas dos nazistas, que fervorosamente ovacionaram seu comandante como um herói de guerra, dando corpo à névoa e seguimento ao espetáculo de ódio e morte do Reich. Dotado de uma sede arrebatada de violência, o Comandante esvaziou o cartucho da Beretta – atirou uma, duas, três vezes, cada tiro acompanhando o berro do anterior, ressonando infindavelmente sua música assassina, rompendo carne e osso. Suas pálpebras tremelicavam, a respiração entrecortava-se de prazer e satisfação. Êxtase, um orgasmo doentio. Atirava no que já estava morto.

– Bravo, Mein Kommandant! Bravo! - bradou Fousein, tomando o corpo destruído por buracos entre os braços, dançando energicamente uma valsa parca e fúnebre. Os demais o acompanharam com vivas e zombações, entre goles de conhaque e tragadas de um tabaco compartilhado.

O Comandante sibilou uma praga qualquer, lançando um olhar desdenhoso para a grande árvore cujos frutos eram mulheres e velhos desnudos, enforcados em seus ramos broncos de musgos e centopeias pelas vestes humanas que alguma vez lhe emprestaram dignidade. Fulminou igualmente a pilha de crianças degoladas, amontoadas como carne para os cães. As moscas rodeavam o cemitério sem túmulos, zumbindo agouros e confundindo-se com o negro das mãos inchadas e podres dos defuntos. “Chega dessa dança” - com um gemido impaciente, pôs a haste longa do cetro no caminho do soldado bêbado, fazendo-o desabar estupidamente no gramado com o parceiro de dança post mortem.

– Não temos tempo para bobagens sem fundamento, Fousein. Mas um bom líder sabe como recompensar seus braços direitos. Um desses gêmeos trata-se de uma timidamente desabrochada garota, caso não tenham notado – como bem percebi que não notaram – o Comandante observou pelo canto da boca enquanto trocava o pente da arma, apontando com as cinzas do cigarro para a criança que ainda engasgava no próprio sangue. - Deixei-a viva por isso mesmo, por ser mulher. Revezem-na, vamos, sou um bom Comandante, não podem dizer que não mereço minha Cruz de Ferro [10]. Mas não se demorem, contarei cinco minutos de cada, não mais – desdobrou um relógio de bolso mergulhado em ouro e pousou-o sob o colo, cruzando as pernas sob o cadáver de valsa de Fousein numa comodidade insensível. A corrente dourada cruzava suas ligações com a suástica nazista. O símbolo amaldiçoado por Hitler acompanhava-o em cada pequeno detalhe. - E sem brigas, sejam civilizados – não somos como esses animais, por favor, não me façam lembrá-los.

Todos trocaram olhares confusos. A seus olhos, aquele mirrado camponês não lhes parecia uma garota, realmente - senão não teria passado ilesa por entre suas pernas. Mas logo o sexo dominou-lhes a mente, ou, como diria a propaganda do partido, a “força da juventude”. Não havia tempo para conjecturas. Herr Kommandante era rigidamente preciso.

– Quem diria, uma garota... até nisso são um problema. Mas bem, cinco minutos. É justamente do que preciso. Vou te ensinar um pouco de disciplina, porca judia – Fousein adiantou-se, rastejando no solo até os soluços de agonia.

– Posso ser o último. Não terei como não gozar assim – troçou a voz esganiçada de Sternen.

– Será que ela se importa se chamá-la de mamãe? - Krauzer divagou, tomando o cantil de um Mark corado e demasiadamente corado; “peitos”, murmurava apenas.

– Mamãe ou irmãzinha, foda-se, chamo-a de não-tão-Virgem-Maria se quiser. O que quero é queimar seus mamilos e torná-los borrões negros - o conhaque dificultava Sternen na tarefa de desafivelar o cinto, mas alimentava sua maldade e blasfêmia.

Então, da desolação veio uma sinfonia. Notas de piano, rápidas e afiadas, cheias de energia e vida, e, sobretudo, harmonia. Os nazistas viram-se alarmados pelo inesperado. Tinham limpado a aldeia, tornado-a terra-de-ninguém – ou assim julgavam. A palmos do horizonte poente, a melodia bela e sensível crescia, em compasso e volume, emprestando tons de arco-íris àquele baço lusco-fusco de crueldade. Frustrado, o Comandante vacilou os dedos no gatilho, quase acertando um soldado acomodado além das calças com a ideia de estupro e morte. A bala se perdeu no campo de centeio, e um corvo levantou voo, grasnando insultos.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

– Louvada seja a sagrada Alemanha! Esses malditos judeus não se acabam?

– Pode ser algum de nossos homens. Não pode? - arriscou alguém.

– Nein! [11] Somos os últimos! Adiantei a operação dispensando o corpo em peso quando os reconhecedores reportaram os números. Esses dois já eram uma surpresa desagradável por si só - o quepe do Comandante oscilou em sua cabeleireira prateada, obrigando-o a acalentar-se. Às vezes, parecia o próprio Führer em suas explosões, como costumavam zombar pelas costas

Pelas costas era mais prudente.

– É Bach?

– Não seja idiota... é... Chopin. Ou talvez Vivaldi.

– Pelas bolas do Führer, é Mozart! Bastardos inglórios, não reconhecem a verdadeira arte! - o Comandante puxou seu lenço perfumado de um dos muitos bolsos, e aspirou as cerejas profundamente, remetendo-se a fantasias de óperas épicas e virgens arianas de tranças douradas e túnicas transparentes. - Deveriam chafurdar na lama com os judeus, eu juro. Aliás, isso é imperdoável, um polaco atrever-se a tocar Mozart. Um grande pecado. Eu poderia quebrar cada um de seus dedos, sim, mas o tempo é meu inimigo aqui também. Lamentável, seria prazeroso.

– Devemos... - arriscou um soldado, confuso e com uma ereção vergonhosa em destaque.

– Cuidem de seus afazeres, senhores. Apreciem a autopsia. Pestes como essa devem ser abstidas dos mil anos dourados pelo melhor do Reich. Enquanto os abutres devoram a carniça, o Fenrir abocanha o ouro de Odin.

Cauteloso, o Comandante adiantou-se.

Perseguiu o compasso da ária misteriosa pelo campo até onde as notas nasciam, e os centeios indicaram-lhe magicamente sua origem com caudas de bruma: um casebre de madeira nitidamente abandonado, molestado por anos de cupins e fungos – e fantasmas passados. Um deboche suicida, pensou. De arma em punho, circundava o cetro habilmente de dedo em dedo, descrevendo círculos confiantes no ar. Cada célula fervia em seu sangue ariano, e sentiu as faces corarem, excitadas sob a fumaça fria que escapava dos lábios enviesados. A música contribuía, exercia um poder místico sobre si, desde criança, uma maldição divina; Eine Kleine Nachtmusik de Amadeus Mozart [12], reconheceu, acompanhando os movimentos com a mão enluvada, incorporando um maestro maléfico. Tocou a porta podre e decadente com a caveira de prata, marcando-a de sangue, e essa rangeu um gemido pestilento ao abrir-se santuário adentro, como se expulsasse aquela criança pervertida de suas paredes centenárias.

O pianista aguardava-o num eixo penumbral.

– Bonjorno – a figura cumprimentou em sotaque carregado, quase caricato, velado pela dança de sombras de uma cortina tétrica. Apenas as luvas brancas e a parte inferior do rosto faziam-se visíveis. Era fino e deveras macilento, como se coberto de pó, e uma peruca aristocrata francesa e fora de seu tempo avolumava cachos sob ombros ocultos.

– Toca bem, devo dizer. Espantoso um judeu ser capaz de tamanha harmonia – o Comandante recostou-se à soleira lascada, focando a mira naquilo que julgou ser o meio das pernas do sujeito, entre a virilha e o escroto. O clique da trava estalou em eco, fazendo as aranhas correrem pelas teias. O gelo dos olhos fuzilava-o. “Não, a cabeça”. Subiu a arma um pouco mais, confiando no instinto, pois a escuridão lhe traia a visão. - Italiano?

– Merci – ele continuou, dedilhando as teclas energicamente, ignorando a mão negra da morte. - Não, Herr Kommandante, se me permitir a intimidade. Sou muitas coisas em muitos lugares, e as tenho sido por muito tempo. Italiano, francês, irlandês, nacionalidades e etnias não me limitam, sinto. Demônio de Deus ou anjo de Lúcifer? Talvez - aquilo apagou o sorriso cínico do Comandante, que azedou-se num timbre de desprezo. Nunca apreciara jogos de palavras.

– É nisso que são bons, não? Fazer dinheiro. Suponho que tem viajado muito, prostituindo as sinfonias de Mozart, fornicando com as valquírias de Wagner [13] – retorquiu, cantando vitória. A Beretta o deixava poderoso. Sempre.

– A vulgaridade bucólica de Wagner não me agrada. Mas tenho boas lembranças do belo prodígio Amadeus. Aceita uma bebida? Algo gelado, o Bowle. Ou talvez prefira conhaque, Pernod?

O pianista realmente desagradava Untersturmführer, a ponto de abalar uma centelha de seu orgulho prateado. "Mas uma bala costuma pôr um ponto nessas discussões inúteis. Bem entre os olhos", pensou, salivando com a expectativa rosada de tingir a parede de miolos.

– Dizem que alguns homens perdem o juízo diante da morte. Conforta-me não ser do tipo que se desalenta na própria merda. Estou farto de fedores por hoje - retesou o dedo no gatilho. - Mozart poderá descansar em seu túmulo, e me agradecerá na vida-além com um camarote privilegiado para seu espetáculo de ninfas escandinavas. Seus dias de cafetinagem acabaram, imundo.

– Amém! - o grito severo veio da escuridão, trovejado por sopros de órgãos invisíveis e poderosos.

O sino da sinagoga soou, e Mozart chegou ao clímax – então, dor e desespero acompanharam seu refrão. Os gritos em coro dos oficiais cortaram a sonata e os pensamentos vilanescos de Herr Kommandant, tomando sua atenção de súbito para a campina.

Nos centeios, ele contemplou o terror.

Fousein, trepado sob a cativa de cabelos ensanguentados, tinha o pescoço torcido ao contrário, e a face deformada, entre mãos pequenas, fulminava o Comandante com um grito mudo de pavor. Possuídos pelas próprias valquírias de Wagner no Terceiro Ato, os gêmeos retornavam da morte e da ruína como demônios - mas era Amadeus o seu acordador. Olhos carmesins diabólicos e garras e presas dantescas dançavam e saltavam sem alma, provendo uma balada de morte. Krauzer esvaziava a munição de sua MG42 [14] automática numa orgia de explosões, lançando maldições contra os dedos longos e vermelhos de uma névoa devoradora de homens que emergia do solo. Renunciava ao deus que os abandonara com a virilidade de um combatente embriagado pela batalha, mas apenas guinchou debilmente quando sentiu algo mastigá-lo por dentro, alimentando-se de suas tripas. Uma língua desconhecida sussurrava nas mentes dos soldados, abrindo caminho com um punhal psíquico, cortando temores profundos, sangrando segredos de meninos em passados enterrados e presentes com máscaras de estranhos.

“Poupem munição, svinkas [15]. Fariam melhor uso se as usassem em si mesmos. Seria uma morte menos violenta. Não que não estejamos nos divertindo.”

Uma risada demoníaca e infantil repercutia distorcidamente da penumbra sobrenatural como uma legião de diabretes travessos, estilhaçando alma e sanidade com citações proibidas de uma bíblia escrita com sangue. Mergulhado em inominável terror, Krauzer rendeu-se à loucura, caindo sem fôlego sob os membros, de coração congelado. Vislumbrou um sinistro sorriso de fera, e então o nada: incontáveis presas caninas emergiram da neblina, fechando-se em torno do crânio como uma armadilha. Catapultaram-no do solo, e a cabeça desprendeu-se do corpo.

– Ora, e eu pensei que quisessem dançar, meninos! - zombou a voz feminina da gêmea meio à arruaça sangrenta. A fenda do ferimento de prata se acimava do queixo até as sobrancelhas, e do nariz arrebitado apenas restavam os orifícios caveirosos. Capturou um soldado fujão pelo braço, Mark, abraçando-o mortalmente pela cintura. Com um puxão fugaz, desmembrou-o com facilidade assombrosa. Os campos foscos tornaram-se vermelhos com a chuva macabra, e ela livrou-se do membro amputado como um trapo. - Não me diga que desconhecia esse movimento?

– N-não! Por favor... - suplicou Mark, vagamente, lutando para acordar de um sonho terrível. Mas os sentidos apenas lhe fugiam.

– Que falta de compasso... ca-de-te... - murmurou contra o ouvido alheio, demorando-se nas sílabas. Adocicava a tortura numa brincadeira de sedução. O vapor e cheiro forte de urina emergiram no vento frio, varando as camadas espessas do uniforme nazista. Numa epifania de piedade, ela afundou a correnteza de caninos contra a carne, atracando-se sob o soldado como uma besta faminta. Assim, devorou-o até o coração parar.

Sternen, em sua fuga ensandecida do inferno evocado, tropeçou sob os restos de um tronco nu e, quando atingiu a planície, as pernas lhe faltavam. Sentiu a região fantasma arder, e as chamas consumiram-no por dentro, fazendo-o expulsá-las aos berros até a voz sumir. Condenado, procurou chorosamente pela arma – qualquer uma, contanto que findasse seu sofrimento com apenas um dedo no gatilho. Rastejando sobre o vômito, às tateadas, acabou encontrando botinas familiares – grifadas com as iniciais SS sob metal branco, caracterizavam a farda nazi. Ele atreveu-se a um sorriso triste e sem dentes, vazio. Fez questão de escalar até a Colt [16] sob o cinto do Wallfen, mas, quando ergueu o rosto ao alcançá-la, a visão sofregou-lhe um ganido de cão: a sua frente, os gêmeos posavam ricamente com o negro elegante dos uniformes nazistas. Dispostos lado a lado, como um espelho, as sardas crispavam-se, debochando de Stern com um jubilo que penetrava-o em cada uma de suas mutilações. Mostravam-se incólumes de qualquer ferimento por ferro e fogo de outrora, ainda que corados pelo massacre em que se santa-ceiavam. O nazista travou o cano da Colt entre os dentes, e rezou – mas não sabia por quem ou o quê.

– Você não – disse o ruivo infernal, invertendo a suástica no peito como uma cruz renegada.

– Baratas merecem ser esmagadas – a irmã complementou com uma nota teatral de sadismo.

Os caninos vampíricos reluziram pelo canto dos lábios maculados, e a névoa se densificou, assumindo os traços talhados em pânico de cada um dos aldeões massacrados pelos SS. A Colt sumiu com um chute homicida, levando junto mão e parte inferior do rosto do oficial com um borrão vermelho. A língua pendeu pela carcaça superior do maxilar afora como um tapete molhado de músculo e sangue e, numa marcha lenta e voraz, os coturnos laminados terminaram por pisoteá-lo. Sternen foi reduzido a uma massa sangrenta e sem forma.

(...)

No casebre, Herr Kommandant criou raízes dementes de medo e loucura. Encurralado numa prisão de impotência, uma legião de olhos cercou-o.

A imagem do pianista preencheu-lhe a mente como um filme, epilogando a matança nos campos. Suas luvas sem braços flagelavam as teclas num ritmo insano, banhando-as com o escarlate amaldiçoado que sangrava das mãos que lhes davam vida, deformando a música. A corrente transbordava a cada grito cortante de nota, descendo pelo teclado como pequenos tentáculos, engolindo as pernas do piano. A alucinação acabou por trazer o nazista de volta, obrigando-o a escapar quando suas pernas foram as próximas molestadas pelas línguas de sangue. Girou o corpo num salto, livre da condição catatônica – mas as demais esquizofrenias ainda o atormentavam.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

– Por Deus! Pela Lança de Longino! [17] Aberrações desgraçadas, seus malditos! Para o Inferno! Todos, seja lá o que diabos forem! Oh, Sagrada Germânia... eu lutei por ti... pelo Führer!

Tragado para um cenário onde ele próprio era a caça em potencial, o Comandante vociferou palavras despidas da mínima coesão. Já não era mais tão imponente, e, mais de uma vez, cogitou atirar na própria cabeça – talvez despertasse uma vez mais. Esmagado pela realidade de um pesadelo de monstros, seus sentidos lhe traíram. Tremeu em espasmos, quase deixando a Beretta escapar-lhe entre os dedos, e a vista desfocou-se, beirando a cegueira de um minuto para outro. Ouvia o coração bombar a ponto de apagá-lo, mesmo incerto de que fosse o seu, e o suor brotava, ignorando as estalactites refletidas na insígnia do quepe.

O grito de horror coadjuvou a explosão do tambor, e ele disparou contra o demônio, negando as lágrimas.

Um tiro lhe bastou, fazendo jus à sua Cruz de Ferro: cravou uma bala certeira contra a face da criatura. O impacto fê-la voar para as escadas inferiores do porão atrás de si, e silhuetas ancestrais traçaram caretas pelo teto nesse momento; o tempo parou. Não. O pianista sombrio, na realidade, havia parado – em pleno ar, flutuava sobre os degraus, abduzindo a noite que chegava. Sua gargalhada grave reverberou como um cântico nefasto pelo frágil casebre, e o rosto lívido revelou-se das sombras. A cápsula da Beretta prendia-se entre suas presas demoníacas, triturada, e a fumaça espessa da pólvora era baforada como um fumo.

– Deus não pode ouvi-lo, Comandante. Mas o vampiro que vos fala pode absolvê-lo de seus tantos pecados – cuspiu o projétil inválido, e rugiu.

– Morra – por favor, morra – o orgulhoso Comandante se viu suplicando. Caiu de joelhos, derrotado por algo que não podia conceber como real. Seu trabalho era caçar judeus. Mas e o daquela monstruosidade? Qual seu propósito? Sentiu o bafo gelado contra o pescoço lhe roubar alguns preciosos anos de vida e, ao ser beijado pela aguda dor, compreendeu num turbilhão de revelações. “Vampiro”. Esmorecido por calafrios horripilantes que escapavam daquilo que interpretou como uma mordida faminta, tudo se apagou como a chama fraca de uma vela em seu fim.