Obrigado e Volte Sempre

Lá tem carne de porco.


Meu coração dobrou-se como papel de origami.

Deus, eu sabia que deveria ter escolhido medicina veterinária em vez de enfermagem. Agora eu não sabia ao certo como proceder da melhor maneira.

De joelhos no chão da sala eu só sabia dizer que ele estava ruim, muito ruim. Bento tinha cortes na barriga, mas um realmente péssimo no pescoço, próximo ao peito. Sua respiração estava quase inexistente e seus olhos não abriram quando eu o chamei. Parecia que ele tinha sido atingido várias vezes com uma faca. Por pouco eu não vomitei bem ali. Meu corpo tremia a cada soluço, mas principalmente pela raiva. Estava sedenta com o fato de que alguém tenha feito isso com um cachorro. Com Bento, meu cachorro cinzento.

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Ainda tremendo, vasculhei a bolsa presa ao meu corpo até encontrar meu celular. Corri minha lista telefônica e apertei na única pessoa que poderia me ajudar agora.

–Pode dizer.

–Algo está errado, Marco. - Solucei. - Entraram no meu apartamento. O meu cachorro... Ele...

Fechei os olhos com força, quando os abri novamente os olhos de Bento me espiavam entreabertos, deixando escapar um gemido lamurioso. Aproximei-me mais dele, acariciando suas orelhas, tentando a todo custo não deixar que o telefone escorregasse de minhas mãos. Provavelmente acabei me perdendo nesse pequeno ato, já que Marco teve que me chamar algumas vezes até que eu retornasse.

–Alma? Onde está o Sam?

–Com minha vizinha, a Dona Madalena. Eu... Marco.... Ele, o Sam, não pode mais ficar aqui.

–Por favor, não me diga que você entrou no apartamento.

–Lógico que eu entrei.

–Você ao menos pensou na possibilidade de ainda ter alguém ainda aí dentro?

–Eles machucaram o Bento, Marco! Pelo amor de Deus, eu não sou uma filha do chefe da máfia ou uma sabichona que entende do tráfico e de todas essas coisas. — Chegou um momento em que eu já estava aos berros. Respirei fundo consumindo todo meu estoque de serenidade—Eu só sei que eles arrombaram meu apartamento, destruíram qualquer coisa que vissem pela frente e se eu encontrasse alguém aqui… Eu estaria muito feliz em chutar bundas alheias com apenas minhas unhas.

Os olhos caramelo de Bento me observaram com tanta dor neles que eu tenho certeza que uma parte doeu em mim também. Quebrei mais um pouco.

–Alma, querida, você está nervosa, mas…

–Eles mexeram com a pessoa errada. — Interrompi. — Mas agora eu preciso de ajuda para transportar Bento a um veterinário, ele está mal.

–Estou chegando, nós vamos resolver isso e então levar Sam para um lugar seguro.

E desligou. Sem nem se despedir.

Nos minutos que se seguiram eu me esforcei ao máximo para que Bento se sentisse melhor. Com as mãos trêmulas eu limpava seus ferimentos com panos limpos e úmidos, mas ao que parecia, toda vez que eu tentava estancar o ferimento, mais deles apareciam. Eu já estava chorando novamente enquanto trabalhava freneticamente quando passos soaram apressados no corredor. Fiquei tensa, prestes a pegar o abajur da mesinha e jogá-lo com toda a força quando Marco apareceu no parapeito da porta.

Solucei.

Provavelmente eu parecia um animal selvagem protegendo sua cria.

–Alma... — Ele parou por um momento no meio do caminho, observou-me assustado e finalmente veio na minha direção, puxou-me pelos ombros e me manteve em pé com um abraço apertado.

Concentrei-me no seu cheiro por um momento. Era tão diferente do perfume masculino caro e cigarros. Deus, como eu sentia falta daquele cheiro.

Não permiti que seu consolo demorasse tanto, entretanto, meio minuto depois eu já o empurrava para me ajudá-lo a transportar Bento para seu carro.

Não foi uma surpresa o fato do carro de Marco ser uma SUV bem maior e mais moderna que minha Mary. Fui espremida no banco de trás, garantindo o máximo de espaço para meu cachorro cinzento que pouco a pouco deixava-me saber que já estava chegando sua hora.

Nós paramos na primeira clínica que surgiu e quando Bento sumiu em um corredor pequeno em uma maca de ferro que não aparentava conforto algum eu quebrei apenas um pouco mais.

Enquanto gentilmente Marco resolvia as coisas com a entrada do cachorro na recepção, eu fiquei na salinha de espera que era realmente minúscula, com quatro cadeiras de plásticos e uma mesa de centro com revistas de fofoca.

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Marco tentou inutilmente falar comigo, mas ele se sentia tão desconfortável com uma mulher aos prantos que, por ele, eu me esforcei ao máximo para não perder as estribeiras. Grossas lágrimas escorriam pelo meu rosto a cada minuto que fiquei em pé, andando de um lado para o outro na salinha.

Quando se pareceram horas, uma mulher vestida com um jaleco e usando uma cara triste se aproximou de mim. Respirou fundo e eu perdi todo o meu ar. Ela tinhas as mãos enfiadas nos bolsos do jaleco.

–Seu nome deve ser Alma, certo? – Falou suavemente.

Meneei com a cabeça.

–Bento apresenta uma fratura no fêmur, como também uma de suas costelas está quebrada. Um dos cortes no pescoço prejudicou gravemente sua traqueia, mas é em sua coluna que estou realmente preocupada, três das vértebras torácicas foram fraturadas. Tivemos que mantê-lo desacordado tamanha a dor.

Ainda bem que Marco puxou-me para seu lado desajeitadamente, servindo de suporte.

–Eu devo dizer que há a possibilidade de cirurgia, mas que a porcentagem que ele eventualmente não sobreviva é grande e mesmo que isso ocorra, provavelmente terão sequelas.

Mordi os lábios em uma linha reta. A veterinária esperou um segundo antes de continuar, mudou o peso do corpo para a outra perna.

–Eu sei que é uma responsabilidade grande, mas você pode pensar na possibilidade de uma eutanásia também.

–Não! - Gritei tão rápido que até eu me assustei.

A coitada da mulher ficou sem reação por um segundo.

–Nós vamos mantê-lo em um coma induzido, de qualquer forma. Esperaremos resultados de mais exames, se houve alguma pancada prejudicial em sua cabeça e enquanto isso eu peço que você pense.

Algo ofuscou em seus olhos e suas mãos se aproximaram das minhas. Puxou-as com certa força e manteve-as juntas por um breve momento. Eu tremi diante do seu olhar. Olhares assim, de compaixão, em situações como aquela eram os piores.

–Nós temos um grande cachorro lá dentro, Alma, mas às vezes é muito doloroso mantê-lo respirando, você consegue entender isso? Se houver qualquer coisa que eu possa fazer, eu irei, mas há alguns momentos que…

–É preciso deixar ir.

É engraçado como essa frase tinha se voltado para mim tantas vezes. Como se Deus lá de cima estivesse brincando de ludo comigo.

As mãos que seguravam as minhas firmemente se foram e seus olhos já não estavam mais em mim, pousaram ao meu lado, em Marco. Então eles brilharam com algo que não consegui definir, mas reconhecimento estava lá em algum lugar. Engoli um suspiro alto.

–Estou feliz que tenha me procurado, Marco.

Pisquei rapidamente de um para o outro. Pensei que nós tínhamos parado na primeira clínica que apareceu?!

–Só teria confiado na melhor.

Franzi o cenho, se eu estivesse presenciando um flerte naquele momento eu esmurraria alguém, na melhor das hipóteses, muito futuramente, mas logo qualquer indicativo desapareceu. Os dois se olharam rapidamente e com uma leve acenada de cabeça, ela trotou para longe.

–Parece que você tem amigos em qualquer lugar. - Acrescentei no silêncio.

Seus olhos eram gentis quando cruzaram com os meus.

–Apenas uma das minhas qualidades, querida.

Estiquei um sorriso que não soou verdadeiro. Meu corpo estava física e mentalmente exausto. Notando isso, Marco puxou-me novamente pelos ombros e falou numa voz mansa e persuasiva:

–Temos que pegar Samuel e levá-lo para um lugar seguro.

–Eu não posso deixar Bento agora.

–Eu peço para Rose me ligar caso haja alguma mudança no seu quadro.

–Eu simplesmente não posso. — E era verdade, sentia como se meus pés estivessem enraizados no chão da clínica veterinária. Marco soltou-me de seu abraço caloroso, encarando-me com cara de pouquíssimos amigos.

–O menino está em perigo, Alma, você sabe disso. O que fizeram no seu apartamento? Foi apenas um aviso. — Esqueçam o tom doce e carinhoso, o loiro comunicou-me da maneira mais seca que eu já o tinha ouvido falar. — Jeremy pediu para você protegê-lo...

Eu explodi.

–Não ouse me dizer isso, Marco! — Sibilei em uma voz baixa e assassina. — Eu sei muito bem o que ele me pediu e sei também que não é algo fácil, mas eu estou disposta a qualquer custo manter Samuel a salvo. Eu amo aquele garoto e eu faço tudo por quem eu amo. Qualquer. Coisa. — Tomei fôlego. — Mas sabe o que mais? Eu também amo um cachorro cinzento que está mal como um inferno e agora eu tenho que escolher se deixá-lo vivo por egoísmo meu é uma decisão aceitável. — Não ouse derramar uma lágrima sequer, Alma, pelo amor de Deus, não seja fraca agora. —Então… Só não venha me colocar contra a parede, por favor.

Fechou a boca, seus olhos azuis queimavam de irritação, mas não falou mais nada. Naquele momento eu poderia muito bem socar Marco até que ele tivesse que usar dentadura. Tudo bem, na verdade esse era apenas um desejo.

–Agora… —Falei o mais calmamente possível – Eu vou com você buscar o Sam, irei com vocês até onde vocês passarão a noite e depois voltarei para cá o quanto antes.

Com a chave em mãos, Marco partiu na frente, eu o segui em um passo bem menos determinado, parando para deixar meu número na recepção e implorar que qualquer mudança, eles não hesitassem em me ligar.

Em seguida, quase fazendo com que a recepcionista jurasse pelo túmulo da sua mãe, arrastei-me até o carro.

*~*~*

Descobri algumas características de Marco aquele dia. Uma delas era que ele tinha o talento de me fazer querer socá-lo, outra é que ele sabia jogar indiretas que deixariam ex-namorados no facebook com inveja.

–Você me deu sua palavra sobre comer coisas novas no jantar, Sam, está lembrado?

–Não. Eu nunca dei minha palavra para você. Não dá para dar uma palavra a alguém.

–Ora, garoto, dar a palavra a alguém significa uma promessa e é tão valioso quanto.

Socável o suficiente para vocês?

Para deixar Pequeno Newton mais confortável, eu decidi cozinhar algo para ele no apartamento de Marco e esperá-lo dormir para partir. Mas o anfitrião estava me fazendo quase mudar de planos.

–Vocês gostam de macarrão a bolonhesa? — Gritei de dentro da cozinha super equipada. Houve sim até para os vizinhos do último andar. — Estou precisando de ajuda aqui, Marco, ainda estou meio perdida na sua cozinha.

Ele se levantou mal humorado do sofá em formato de L que ficava na frente de uma TV de plasma e ao lado de um aquário gigante com peixes que eu nunca tinha visto na vida, ou seja, não faziam parte do elenco do Procurando Nemo.

–Do que você precisa? — Perguntou de má vontade.

–Ah, estou precisando de carne aqui. — Respondi, seca. — Que tal suas tripas, seu imbecil?

Apontei a maior faca que tinha encontrado na sua direção. Era uma ridícula faca de pão, mas surtiu o efeito desejado. Ele arregalou aqueles olhos azuis e balbuciou algo.

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E então riu. Ou melhor, gargalhou. Alto, estrondoso. Por muito pouco eu não joguei a faca no seu rosto bonito.

–Vem aqui, Alma. — Indicou o seu lado e eu revirei os olhos. — Vem. — Chamou mais convincentemente, lançando aquele olhar de filhote gato que eu tinha certeza que teria me feito jurar ser um ornitorrinco se fosse outra ocasião.

–Você está louco se pensa que vou cair em suas garras.

Uma Alma muito mais consciente sabia que estava errando, que era uma atitude impensada e mesquinha, mas eu tinha que depositar todas minhas dores e frustrações em alguém e porque não no idiota mais próximo?

Continuei enchendo a panela de macarrão instantâneo, sem querer fitá-lo e notar que eu estava perdendo aquela discussão. Eu nem notei quando ele se aproximou de mim e roubou um dos pedaços de macarrão quebrado prestes a ser mergulhado em água quente.

–Você está fazendo isso errado.

Esqueçam a faca, eu iria arrancar seus olhos com uma colher, como tinha visto em um filme. Respirei fundo antes de fazer ou falar qualquer besteira.

–Você comerá isso, mesmo que saia errado, Marco.

Ele exibiu um sorriso atrevido para mim.

–Não me lance esse sorriso. Ele é familiar demais para o meu gosto.

Então ele sumiu. Isso me fez lembrar da nossa atual condição.

–Nada ainda, não é?

Marco desviou os olhos dos meus.

–O quê? Você tem alguma notícia?

–Eu não acho que nesse momento você está bem para lidar com outra coisa, Alma.

–É claro que estou! Se você tem alguma notícia do Jeff é melhor você me dizer.

Suspirou.

–Certo. Eu descobri que Jeremy tinha mandado alguém para te vigiar.

Cambaleei um passo para trás.

–O quê? Porque isso?

–Ele queria te manter segura, Alma. O que só confirma minha teoria que ele sabia que isso iria acontecer. Jeremy estava com medo que fossem atacar você.

Ele preocupava comigo, apesar de tudo. Perdi uma batida. Algo inchou no meu peito e calor se espalhou por toda minha caixa torácica até cair no meu estômago.

–Meu Deus, será que é culpa minha?

–Alma?

–Ele se preocupou tanto comigo que esqueceu dele? Ai meu São Longuinho... — Choraminguei.

Marco sacudiu meus ombros até que eu voltasse para sua cozinha.

–Você está louca? É claro que não é isso! Eu tenho certeza que Jerry não se perdoaria se algo acontecesse a você. Você me entende?

Balancei a cabeça levemente.

–Ótimo. Porque se você não aguentar o que estiver sendo colocado para você, eu não posso te colocar nisso.

–Eu consigo.

–Certeza?

–Absoluta.

Respiramos fundo.

–Fernando Freixo entrou em contato comigo hoje a tarde. Explicou-me que meu primo tinha pedido a ele que te mantivesse segura e avisou que em caso de interferência entrasse em contato comigo. — Ele observou meu rosto e contraiu um sorriso. — Sim, eu pensei a mesma coisa. Não entendi ainda porque Jerry me envolveu nisso, mas estamos em um quebra-cabeça e temos que resolvê-lo.

Estava parecendo um bonequinho com a cabeça de mola. Somente balançando.

–Você não quer ligar para alguém, Alma? — Perguntou-me num tom mais suave.

Eu queria? Sabia que tinha que falar com Brian, mas simplesmente... Não podia. Não agora. Ellie então... Era quase como uma necessidade falar com minha melhor amiga, mas eu também não estava pronta para tagarelar sobre. Ainda não.

–Depois. — Falei simplesmente.

–Ok. Vamos fazer assim: — Puxou-me para longe do fogão sem cerimônias. — Você senta ali e me deixa terminar o jantar.

–Não posso demorar.

–Você não vai.

Empurrou-me para longe e eu tropecei alguns passos até sua sala bem mobiliada. Não havia uma luz ligada e a única coisa que iluminava o ambiente era a luz da televisão. O garotinho estava na borda do sofá, sem piscar os olhos para uma cirurgia cardíaca que passava em algum canal.

–Sam, será que podemos ver qualquer outra coisa?

Ele fez que não. Suspirei, derrotada e cansada. O objetivo era me sentar calma e civilizadamente no sofá de alguém que não tinha intimidade (apenas para matá-lo, claro), mas assim que meu ponto de gravidade se desestabilizou e meu corpo afundou de modo aconchegante nas almofadas, eu me senti confortável desde o útero da minha mãe.

Juro que gemi baixinho com aquela sensação.

Céus. Eu estava morta e tinham esquecido de me enterrar.

Vou só fechar os olhos por um segundo, porque eu tenho que levantar daqui e ir ficar com o Bento, para que ele não passe a noite sozinho. Vai ser bem rápido.

Eu apaguei.

*~*~*

Aquele barulho soava tão familiar…

Não era familiar?

Era uma música legal. Eu gostava dela. Qual era mesmo o nome? Um momento, vou lembrar... Pumped up Kicks!

–Tia Alma! — Uma sacudidela gentil e então eu estava com os olhos arregalados.

Sam estava enroscado ao meu lado, balbuciando algo quando notei que meu celular quase perdia uma chamada. Tinha escrito “veterinário” na tela e de súbito eu me lembrei. Oh, Deus.

–A-alô?

–Alô? É o telefone de Alma?

–Sou eu!

Limpou a garganta e eu envelheci 15 anos nessa pausa.

–A senhora pediu muito enfaticamente para que comunicássemos qualquer mudança de quadro do cachorro Bento.

–Pedi sim. Sim.

–Houve um agravamento da sua situação e... — Suas próximas palavras soaram gentis. — Talvez a senhora queira estar aqui para as próximas...

–Estou de saída! — Gritei para o telefone. — Por favor, diga a ele para esperar, eu estou indo.

E desliguei.

A próxima cena foi uma mulher descabelada correndo atrás de seus sapatos. No processo acordei Marco que estava igualmente cochilando no outro sofá, um pouco menor, da sala. Coçou os olhos preguiçosamente e me perguntou o que diabos estava acontecendo.

–Eu tenho que ir, Marco. O Bento piorou e…

Ele já estava em pé.

–Nós iremos te levar.

As lágrimas voltaram a encher meus olhos. Porque algo em mim sabia que eu não iria voltar pra casa com o Bento. Nunca mais.

Marco acomodou um garotinho sonolento no colo, levando-o até o carro desse modo e no banco de trás eu o prendi com meus braços.

–Você está bem? — Espiou-me pelo espelho retrovisor.

–Não sei. — Ignorei cada lágrima que escorria. Porque um “não estou bem” era muito vulnerável para mim.

Marco ultrapassou todos os sinais vermelhos da madrugada e em tempo recorde estávamos lá. Ele correu para carregar Sam nos braços e eu me encaminhei até a recepção. A recepcionista, que se chamava Maria e tinha um ar mais velho do que deveria, me lançou um sorriso compreensivo e me pediu para que eu aguardasse só um minuto.

–Nenhuma notícia ainda? — O loiro surgiu ao meu lado. Ele equilibrava desajeitadamente o peso da criança, mas Marco tinha tanto jeito quanto um gorila.

–Acho que Maria foi chamar Rose. — Retirei os cabelos que estavam grudados no rosto de Sam. Seu rosto sereno me passou uma certa tranquilidade que nem sabia que ainda tinha. — Quer que eu o segure?

–Nã... Está tudo bem.

Por frações de segundos eu e Marco nos entreolhamos. Ele não parecia tão perdido quanto eu, sempre com aquela segurança admirável, mas com um toque de compaixão. Seu rosto estava tranquilo e eu pude notar alguns traços que eu não tinha notado antes. Traços bem familiares. A forma como os cantos dos olhos se enrugavam ou a boca temia em espichar para o lado. Eram iguais aos de Jeff.

–Alma?

Girei nos calcanhares. Rose estava com uma postura desconfiada, mas sustentava sua faixada profissional aos trancos e barrancos.

–Bento apresentou um quadro de hemorragia interna grave. Decidi lhe chamar porque talvez...

–Rose? — Chamei-a em um fiapo de voz. — Quanto tempo você daria a ele?

Respirou fundo, mais uma vez sua atenção foi para Marco e notei o quanto curiosa ela estava vendo Sam em seus braços.

–Não acho certo presumi o tempo de vida.

–Dias?

–Horas. — Corrigiu-me, hesitante.

Silêncio. Meus olhos esbarraram em um dos quadros do consultório. Era um cachorro pequeno, eu não sou boa em definir raças, mas parecia um fox terrier ou nome semelhante, juro que ele estava sorrindo para a foto enquanto corria em disparada por um gramado bonito.

–Ele está sofrendo? Com dor?

–Estamos sedando ele a maioria do tempo. Se retirarmos os remédios, seria... Doloroso.

Desviei a atenção do quadro e ela parou em Sam, que cochilava, alheio a tudo aquilo.

–Se você... — Foi a minha vez de respirar fundo. — Se eutanásia for uma opção, ele sentiria dor?

Não sei quando eu tinha começado a cravar as unhas nas palmas das mãos, porém chegou ao um ponto que a mulher de cabelos castanhos claros e olhos negros puxou-as para ela e apertou suavemente.

–Chegou a um ponto, no quadro de Bento, que não há recuperação mais. Só tende a agravar. Nós vamos fazer disso da melhor maneira possível. Você pode ir até lá e se despedir, se quiser.

Balancei a cabeça enfaticamente.

–Eu vou.

Existem momentos, leitores, que eu gostaria de engarrafar. Tempos felizes, cheios de gargalhadas e olhos brilhantes. Eu os engarrafaria para usar em horas como aquela. Quando eu estivesse precisando de um sorriso largo e não conseguisse.

Bento estava em uma maca de ferro, com o soro e vários outros longos tubinhos ligados ao seu corpo. Rose tinha suspendido a dosagem dos remédios somente um pouco e agora seus olhos estavam entreabertos.

Apesar de toda sua dor, Bento ainda conseguiu balançar o rabo devagar assim que me viu.

–Oi, Bê. — Sussurrei ao seu lado.

Ele piscou lentamente, como se até isso doesse.

–Nós vamos acabar com essa dor, tá? Você já já estará em um lugar com todas bolinhas e comida enlatada para cachorro. Você até poderá comer carne de porco também. Lembra que eu nunca deixei você comer isso?

Toquei em suas orelhas caídas, aproveitei a maciez do seu pelo por uns últimos momentos.

–Eu te amo muito, viu Bento? E sinto muito não ter te dado uma vida que você merecia. Você merecia toda a carne de porco que quisesse.

–Tenho certeza que ele viveu muito feliz sem ela. — Quase tinha esquecido de Rose na sala também.

Passei os dedos rapidamente pelo rosto. Funguei algumas vezes.

–Certo. Vamos fazer isso. — Acenei com a cabeça para Rose.

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Minha atenção estava focada somente em Bento, então não notei quando ela se movimentou na salinha e fez o que tinha que fazer. Eu segurei uma das patas do meu cachorro enquanto alisava os seus pelos cinzentos.

–Eu vou sentir saudades, Bê. — Solucei. — Eu te amo viu? Não esqueça disso enquanto você está mergulhado na carne de porco.

Um riso aguado saiu da minha boca.

–Todos nós vamos sentir sua falta. Muito. Obrigada por ter aguentado tanto tempo, viu?

Então seus olhos fecharam.

–Adeus.

*~*~*

Eu ainda chorava quando saí da clínica. Abracei o corpo de Pequeno Newton enquanto caminhávamos até o carro. Marco tinha me passado ele quando cavalheiramente se propôs a resolver as coisas na recepção.

Pedi para cremarem o corpo de Bento e o processo ainda se arrastaria durante dois dias.

Eu já estava quebrada em relação a dinheiro. E provavelmente desempregada também. Olhei para o céu clarinho da manhã e perguntei-me o quanto sr. Lewis aguentaria antes de me chutar para fora. Hoje, definitivamente, eu não iria trabalhar.

–Você poderia ter me passado ele, Alma. Samuel já não é pequeno.

Acomodei-o mais contra mim.

–Ele é sim.

Silêncio.

Marco destrancou o carro e me ajudou a entrar no banco de trás.

–Obrigada. — Falei baixinho. — Eu juro que vou pagar assim que... Eu vou pagar.

Marco sorriu meia boca.

–Não se preocupe com isso agora, Alma.

Ele fechou a porta.

Acaricie os cabelos de Sam calmamente a caminho do apartamento de Marco. Estava tão imersa em pensamentos que não notei o quão tenso o loiro estava no volante, só quando ele soltou um palavrão baixinho. Corri os olhos para ele e seu corpo travado, ele mirava o retrovisor com o cenho franzido.

–O que foi? — Fiz menção em olhar para trás, mas ele soltou um murmuro alto.

–Estamos sendo seguidos.

–O quê?

Meu Deus, eu estava em uma perseguição? Só me faltava esse tópico para meu livro de “coisas vividas”.

–Você consegue segurar firme Samuel?

Cravei meus braços em um abraço no corpo do garoto.

–Pode deixar.

Então Marco acelerou.