Estrela da Tarde

Profundidade


A encosta irregular da montanha ficava mais seca à medida em que subíamos, precisamente como previ. A chuva não havia alcançado aquela área, então ainda havia minúsculos vestígios de neve nas folhas das plantas rasteiras e pendendo da copa das árvores. Seguíamos na margem do rio Sol Duc junto ao musgo e às águas calmas, eu saltitando de uma pedra a outra enquanto balançava a grande cesta de piquenique de mão em mão, sentindo-me uma risonha Chapeuzinho Vermelho prestes a encontrar o lobo – claro que nessa versão de Forks o lobo estava ao meu lado e não queria exatamente comer a vovó. Comecei a rir; isso parecia até mesmo roteiro de filme pornô amador – não que eu entendesse do assunto, mas esse tipo de informação desnecessária era uma das consequências de andar sintonizada com mentes masculinas.

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Seth franziu o cenho, porém sorriu por me ver tão descontraída:

— Qual é a graça? – indagou, um pouco atrás de mim. Ele era um exemplo claro de uma mente masculina que eu devia sintonizar com mais frequência; não era poluída feito as demais.

— Uma piada ruim. Acredite, não vale a pena. – Parei quando encontrei um lugar nas pedras em que quase não havia musgo e que o rio ao lado se abria em um largo espelho azul-gelo até cair na cascata logo abaixo. Era a paisagem perfeita.

Seth parou também, o braço quente tocando o meu.

— Um piquenique na montanha? – Ele observou o entorno. – Cara, eu jurava que você estava brincando.

Dei de ombros e respirei fundo, levantando a mão livre lentamente. A gravidade se expandiu à nossa volta, puxando a umidade das pedras e por um instante, parecia estar chovendo ao contrário. A água respingou para os lados, restando apenas o perfume de orvalho.

— Encantador – murmurou Seth para o truque, embora os olhos não tivessem deixado os meus nem por um segundo. – Você faz isso parecer fácil.

— Décadas de prática. – Peguei o cobertor de debaixo do braço ele, estendendo-o acima das pedras. Mal havia me sentado quando tirei o bolo de chocolate da cesta, agitando uma das colheres para Seth.

Ele revirou os olhos, mas pegou a colher e se acomodou à minha direita, indicando para que eu me recostasse nele. Parecia um gesto tão singelo e natural vindo de Seth que não me importei em aceitar – ainda que ele estivesse sem camisa e que isso me deixasse incomodada. O calor de seu peito nu queimava contra minha pele de uma maneira agradável e seu cheiro era impecavelmente adequado à brisa da montanha, indício evidente de que Seth era um pedaço daquela natureza pura e silvestre que se esticava pelo horizonte – a intrusa ali era eu.

Seth colocou meu cabelo atrás da orelha antes de descer a colher pela superfície convidativa do bolo; senti cócegas com sua respiração resvalando no meu pescoço.

— E então, vai me dizer por que está fugindo da sua casa? – inquiriu quase desinteressado antes de comer, mas eu via a curiosidade arder por detrás da calma.

Suspirei. Era óbvio que estava na cara que não propus um piquenique à toa. Depois daquele abraço – que eu posso ter gostado mais do que deveria –, voltei para casa com a fome mordendo meu estômago e bastou eu me sentar na mesa para que os olhos de Edward se afiassem no meu rosto, preparados para me tirar uma explicação para a dança do Cisne Negro, que ele considerou lasciva e pessoal demais – e talvez realmente fosse –, e um diálogo sentimentalista acerca do que contei à Leah – o que eu podia muito bem dispensar. Embora não fosse mais que previsível, afinal, eu sempre soube que Edward era totalmente ignorante quanto à profundidade do calvário que trilhei com Elizabeth Masen e, por consequência, Hans, eu não queria retirar isso da tumba só porque ele lera tudo na cabeça de Seth e de alguma forma se sentiu responsável. Eu não queria desculpas, não queria pena, não queria conversa. Eu queria apenas seguir em frente. E por isso eu estava fugindo; desejava apenas uma refeição em paz.

Resolvi ser transparente com Seth:

— Eu não ia ficar lá e dar a chance do Reverendo Eddie começar outro inquérito.

Ele se inclinou para analisar meu rosto.

— Por que Edward iria interrogar você?

— Por que ele não interrogaria? – desviei da pergunta. – Eu exalo frescor criminoso.

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A risada alta que se escapou dele ecoou pela montanha e diminuiu até restar um sorrisinho irônico entre as maçãs do rosto definidas. Gostei daquela risada; como tudo nele, era calorosa e autêntica.

— Então é sobre sua ida à La Push? – supôs erroneamente, para o meu alívio. – Se serve de consolo, estão se perguntando quando você vai voltar.

— É mesmo? – Não consegui esconder a surpresa no tom de voz.

Seth não se mostrou muito entusiasmado com o rumo que a conversa tomou, pois de súbito uma sombra cruzou-lhe o semblante e ele foi quase ríspido ao falar:

— Acordei pela manhã com uma visita de Stu Bennett. O canalha apareceu com a justificativa esfrangalhada de checar se estava tudo bem com você e Leah, mas na verdade só queria saber se você é de fato uma Cullen e se já chegou à maioridade. – A colher dele dessa vez se cravou no bolo de forma brusca. E se era solteira, prosseguiu com o pensamento.

Inicialmente eu estremeci, um tanto enojada; minha aversão quanto aos homens maduros que demonstravam interesse na minha figura jovem – apesar de eu ser mais velha que todos eles – não havia mudado nada em praticamente cem anos e, sendo sincera, não acreditei que Stu tivesse levado minhas brincadeiras no bar a sério. Só que logo em seguida, quando eu vi o quadro por completo, apertei os lábios para não rir.

— Seth, está com ciúmes de mim? – Tive o cuidado de não demonstrar malícia.

Seu rosto ficou violentamente vermelho.

— Não é ciúmes. – Nem ele parecia muito convencido disso, encarando o rio cristalino e coçando a nuca com o cabo da colher. – Só não concordo com o jeito que esses miseráveis lhe tratam, como se fosse...uma qualquer. Olhe, você é uma garota delicada e bem-educada que foi criada para... Por que está rindo?

E eu estava rindo a valer. Tapei a boca e me senti tremer tanto que parecia próxima de uma convulsão. Céus, eu estava a ponto de rolar sobre as pedras com a boca cheia de chocolate.

— Nada. – Engoli a comida com o riso e limpei o canto dos olhos. – É que normalmente eu espero essa espécie de comportamento de Edward, não de você. E essa visão que tem de mim... “Delicada e bem-educada”? Sério, Seth? – Acabei rindo mais um pouco. Nunca ouvi ninguém usar tais adjetivos para me descrever após passar meia hora na minha companhia.

Ele não me acompanhou na risada. Em vez disso, buscou o meu olhar, intenso:

— Anna, não é porque você sabe se defender que não é delicada. E não é porque pragueja meia dúzia de palavrões vez ou outra que não seja bem-educada. – Sua mão livre deslizou para a minha apoiada nas pedras. Estreitei os olhos. – Quando você nos mostrou suas memórias, acabou mostrando o que está dentro de você. Ainda que não queira, eu sei o que está em seu coração. E eu sei que aí, nesse lugar frágil, você sabe que eu estou certo.

Não me deixei amolecer:

— Não se preocupe, esse “lugar frágil” – fiz as aspas com os dedos – é protegido com muitos cassetetes e arame farpado. Agora, podemos mudar de assunto ou você deseja alguma música do Elton John fazendo som de fundo para esse papo meloso?

O sangue queimou outra vez sob sua pele de seda castanho-avermelhada. Vê-lo constrangido derreteu-me mais do que qualquer outra coisa que ele poderia dizer.

— Você fica uma gracinha quando fica envergonhado – falei, cedendo ao impulso de tocar sua bochecha corada, a colher presa entre o polegar.

Ele aceitou meu toque, mas torceu o nariz para o elogio:

— Anna, nunca diga a um homem que ele fica ou parece uma gracinha. Isso fere o ego.

— Você me entendeu. – Dei outra colherada no bolo. – E você ainda é um garoto.

Ele bufou, cutucando-me com o ombro.

— Cuidei de minha mãe e irmã mais velha quando meu pai morreu. Virei lobisomem, matei um vampiro. Eu não sou um garoto. As circunstâncias me fizeram envelhecer rápido.

Não havia meios de refutar o argumento dele. Seth poderia ser jovem, porém tinha mais maturidade do que a maioria de homens feitos, sem mencionar que o desenvolvimento físico acelerado dos lobisomens rendeu a ele a aparência de quem já não precisava de identidade para comprar bebidas alcoólicas – sorte essa que, infelizmente, eu não tinha.

— Você tem quinze anos, Seth – tentei. – Devia aproveitar e ser um garoto. Fazer algumas idiotices, ter experiências novas... Viver. Tempo é um tesouro que não se recupera.

— Eu tenho quase dezesseis – corrigiu, como se tivesse mudado os números. – E eu estou vivendo. Não matei aula hoje para vir lhe ver e você me dizer uma coisa dessas.

Ergui a sobrancelha por reflexo. Tentar expressar reprovação quando na prática eu estava perplexa foi difícil; não imaginei que Seth fosse do tipo que cabulava aulas.

— Não faça de novo. – Era estranho me ouvir dar sermões. – Não quero Leah me chutando por achar que tenho parte nisso. Se quiser vir me visitar, que venha no fim da aula.

— Foi mal. – Ele voltou a coçar a nuca. Percebi que era um hábito que ele repetia sempre que se sentia inseguro. – Mas é que eu estava... ansioso. Depois do casamento... E você pediu para que eu fosse vê-la... Não gosto de saber que você está brava comigo.

— Eu sei, não precisa se explicar. Leah faltou pouco me chutar por isso também. E eu não estava brava com você. Era comigo mesma. – Senti-me encolher em uma bola, jogando a colher na cesta e abraçando as pernas. Eu odiava isso; a necessidade física que tinha de me proteger do peso de minhas emoções. – Mas saiu uma coisa boa de toda essa situação. Eu aprendi a dizer adeus e a me perdoar. Sabe... Eu me julgava covarde por ter tido a oportunidade de transformar Hans e ter sido fraca o suficiente para nem ao menos tentar. Agora percebo que foi preciso força maior para deixa-lo partir sem qualquer interferência, porque não era justo condená-lo ao que me condenaram. Seria errado, mesquinho e egoísta. E amor é... dar tudo de si sem esperar nada em troca, sacrificar-se pelo bem do outro. Não importa o preço.

Seth ficou quieto por um minuto e afagou minhas costas.

— Achei que tivéssemos acabado com o papo meloso – murmurou por fim, brincalhão.

Eu ri, sentindo meu humor ficar leve feito pena. Relaxei e voltei a me escorar nele.

— A culpa é sua. – Dei-lhe um tapa na perna. – Transferiu essa doença para mim e agora estamos aqui, dois idiotas que parecem ter saído de algum livro de Nicholas Sparks.

— Você já leu, não é? – debochou, terminando com o bolo.

— Alguns – admiti, pegando as latas de refrigerante na cesta e passando uma a ele. – Foi interessante variar. Em geral leio mais livros de fantasia ou suspense. Fugi de romances enfadonhos desde que lançaram O Senhor dos Anéis e então, nossa! Tenho me deparado com inúmeras obras geniais! As Crônicas do Gelo e do Fogo, As Brumas de Avalon, Percy Jackson e os Olimpianos, A Torre Negra... Ah, e é claro, Harry Potter. Vi que você é um grande fã.

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— Caramba. – Os olhos pequenos estavam estalados. – Eu tinha certeza que você ia falar de literatura gótica, como Anne Rice ou Bram Stoker ou algo do gênero.

Fechei a cara.

— Primeiro, pode enfiar esses seus estereótipos no rabo. Segundo, eu posso até me aventurar nesse terreno de vez em quando, tanto que Edgar Allan Poe é um dos meus escritores favoritos, mas isso não significa que eu seja fissurada nessas histórias de morte. Terceiro, se começar com as piadas sobre vampiros, serei obrigada a revidar com as de lobisomens.

Ele sorriu torto e bateu a lata na minha, fitando-me com desafio.

— Eu ganharia no segundo round.

— Não ganharia, não. – Dei de ombros. – Ao contrário de você, eu não tenho pudores em partir para as piadas sujas.

— E quem disse que eu tenho? – blefou.

Bufei, cética.

— Seth, você vira Clifford, o Gigante Cão Vermelho com a palavra sexo. – E para dar ênfase para a minha afirmação, ele se engasgou com o refrigerante e enrubesceu no tom de cerejas. – O que, na minha opinião, é bastante irônico que ainda aconteça, considerando que você passou meses na matilha de Sam e teve acesso à vida sexual de...

— Está bem, está bem, eu já entendi! – ele me interrompeu, quase roxo. Nunca tinha visto um rapaz corar tantas vezes. – Você ganhou.

Gargalhei alto.

— É, já chega. Vou parar de ser maldosa. – Amassei a lata no último gole e fiz um arremesso certeiro para dentro da cesta de piquenique. – Diga-me, com que tipo de atividade em que você costuma passar o tempo?

Seth arqueou a sobrancelha, sardônico.

— Preciso mesmo dizer? Imaginei que já me conhecia tão bem quanto eu próprio.

Revirei os olhos.

— Não é só por que eu posso invadir mentes que quer dizer que eu o faça o tempo todo. Gosto de conversar feito qualquer pessoa normal.

— Não faz? – desconfiou, imitando meu arremesso de lata.

— Considere como minha forma de ser educada, uma espécie de cortesia. E pode acreditar, eu presumia que seria divertido, mas usualmente não é legal saber o que os outros guardam dentro da cabeça. De fato, só acaba me afetando e não de uma maneira positiva.

— Por exemplo...? – incitou, gesticulando para que eu continuasse, meio confuso.

— A sua mente, se quer exemplos. – Pressionei o indicador no seu peito e ruborizei. Caramba, os músculos dele são bem firmes, pensei, recriminando-me por isso. Minha sorte foi ter sido rápido demais para ele perceber. – Você é tão honesto e bonzinho que faz com que eu me sinta uma vadia sem coração, e age exatamente de acordo com o que pensa, o que é impressionante. Lembra muito Carlisle neste aspecto, exceto que você é ingênuo e Carlisle é mais realista. – Uma ruga se formou no cenho de Seth. Ele não sabia se levava a dissecação como elogio ou ofensa. – Esme... a doçura que emana de seus pensamentos evidencia tudo o que minha mãe deveria ter sido e não foi. Isso porque até aqui eu apenas mencionei os bons exemplos. – Soltei o ar exasperada. – Jasper é muito nobre, mas passear por sua mente é como assistir a Segunda Guerra Mundial em primeira mão. Alice, bom, o que eu vejo ali é entrada para o País das Maravilhas; a mente dela é uma bagunça. É o motivo para o esforço que eu gasto em bloquear as visões para não enlouquecer. O único que não me afeta naquela família é Emmett, pois é como captar um canal de esportes, completamente inofensivo. E não vou nem assinalar os segredos. – Tremi, horrorizada. – Céus, os segredos! Até que em casa não há muitos, mas basta eu sair dela para me sentir em um mundo de máscaras. Raramente alguém é o que demonstra ser.

Seth fez que sim, compreendendo meu ponto de vista.

— E Edward?

— Você gosta de estar na mente de Leah? – rebati. – Apesar de eles serem diferentes, o contexto é igual.

— Faz sentido – cedeu, sacudindo-se com um calafrio. Saber as coisas que seu irmão pensa, fez ou deseja, por via de regra costuma ser bem desconcertante e a mente de Leah, especificamente, era sombria como um cemitério à noite. Em seguida, Seth mordeu o lábio. – Gosto muito de desenhar, respondendo sua pergunta.

Um sorriso estúpido iluminou meu rosto. Era de se esperar; por mais que eu pertencesse inteiramente à música, eu era uma apreciadora incurável de qualquer forma de arte.

— Sério? – Empolguei-me. – E o que você mais gosta de desenhar?

— Humm... – Ele fez uma careta. – São mais rabiscos que desenhos, mas retrato um pouco de tudo. Paisagens, animais, pessoas. Às vezes até mesmo mangá.

— Posso vê-los? – pedi, quase suplicante. – Por favor?

Os olhos de Seth brilharam de orgulho com o meu entusiasmo espontâneo.

— Claro. – Ele alisou meu braço. – Quando for lá em casa, eu mostro minhas pastas.

Balancei a cabeça. Até parece que ele não me conhecia.

— Sinto muito, rapaz. Sou impaciente demais para esperar.

Fechei os olhos e mergulhei inopinadamente no mar claro, mas desmedido, de seus pensamentos. O fluxo de lembranças se agitava à minha volta feito um cardume vertiginoso de sardinhas e precisei usar muito foco para não me distrair – não queria ser bisbilhoteira com Seth, por mais que ele não se atormentasse que eu o fizesse. Procurei por uma parte distinta de suas memórias e ao encontrar, deixei escapar um arquejo maravilhado.

O que ele chamava de rabiscos eram representações expressivas e vivazes, tão perfeitas quanto qualquer fotografia. Um pôr do Sol com nuvens coloridas. O cair da chuva nas árvores à margem do quintal. Sue manejando um machado. O perfil do pai dele, Harry, concentrado na pescaria no meio do rio. Um grupo de crianças brincando de bola na praia. Cestos artesanais quileutes. Uma guerra de lama. O rosto de uma garota loura de aparelho – seu primeiro amor. As costas de um casal passeando de mãos dadas – Sam e Leah quando namoravam. Um carro montado pela metade em uma garagem velha – o Volkswagen de Jacob. Uma noite com fogueira. Lobos correndo entre as árvores. Os Cullen em uma campina escura. Um rapaz pálido saltando com as mãos em garra – Riley, o vampiro que ele matou. Capas negras se destacando no branco da neve – a chegada dos Volturi.

E eu. Retratada recentemente com uma frequência apressada e em incontáveis folhas. Deitada com o olhar atônito, os meus cabelos formando caracóis na grama emoldurando minhas feições tensas – a primeira vez que nos vimos, quando o imprinting aconteceu. Dormindo com a expressão insondável, mas com lágrimas correndo os olhos. Retesada e furiosa, usando uma camiseta verde e grande que criava a impressão de estar absolutamente nua por debaixo dela. De olhos baixos e bochechas coradas. Descendo as escadas com um sorriso perverso, as mãos afundadas no casaco vermelho. No traço do lápis sobre o papel, Seth me fazia parecer graciosa e intrigante, um pequeno mistério que se desdobrava aos poucos.

­— Ah, Seth... – suspirei, emocionada. – São lindos! Você é muito habilidoso.

— Mais ou menos. – Ele pigarreou, tímido. – Minha técnica é bastante rudimentar.

— Pare de ser modesto, são incríveis! Não desmereça seu trabalho. – Apertei sua mão, deliciada com o desenho de eu dançando de olhos fechados no casamento; parecia celestial. – E você me faz parecer melhor do que realmente sou.

Aproveitando o contato de nossas mãos, Seth entrelaçou os dedos nos meus. As memórias de seus desenhos pararam de vir aos meus olhos como se talhadas por navalha.

— Duvido muito – rouquejou na minha orelha e me arrepiei no ato.

Não consegui respirar. Não consegui me mover. Não consegui lembrar meu nome do meio. Não consegui nem mesmo acalmar meu coração estabanado que se acelerou para um ritmo furioso e audível a quilômetros de distância. E me senti completamente ridícula.

— E-e-e então? – gaguejei, amaldiçoando-me por dentro pela reação boba. – É nesse ramo que você quer seguir carreira futuramente? Com arte?

Droga, pensei. Droga, droga, droga. Ele percebeu meu princípio de síncope – óbvio que perceberia, Seth era muito mais perceptivo e inteligente do que prenunciava –, porque assim que ouviu minha voz mecânica, Seth largou minha mão e beijou meu cabelo, inalando meu perfume. Não precisa ficar nervosa, Anna, disse. Sem forçar, lembra?

Desejei me enterrar na terra igual a um tatu, mas fingi não ter escutado.

— Desenhar é mais um hobby — respondeu quando o silêncio ficou constrangedor. – Quero estudar medicina.

Isso me surpreendeu:

— Feito Carlisle?

— Quase. – E abriu um sorriso que faria o Sol se recolher em sua insignificância, se o céu acima de nós não estivesse nublado. – Pretendo me especializar em pediatria.

Comprimi os lábios. Crianças. Seth gostava de crianças. Vislumbrei até um rastro de algumas recordações repetidas de ele trabalhando como voluntário no hospital da reserva antes de se tornar lobisomem – quando as responsabilidades com a tribo se tornaram tão exaustivas que ele não tinha mais tempo para os próprios interesses. Merda, qual é o defeito dele?, remoí mentalmente. Não é possível que alguém seja tão...! Tão...!

E foi quando eu constatei a verdade. Seth jamais teria os próprios filhos. Não porque ele não tivesse essa capacidade, mas porque ele nunca poderia encontrar uma mulher que lhe os desse pelo simples motivo de que estaria eternamente ligado a mim, amordaçado pelo imprinting. Ainda que nos tornássemos um casal – e eu ainda tratava a alternativa como uma hipótese remota e longínqua –, eu era alguém impossibilitada de oferecer essa opção a ele, pois tinha o interior seco como uma árvore morta e tal como uma, estava condenada a não gerar frutos. Eu duvidava muito que a hibridez tivesse ressuscitado algo que não foi mais que um vaso decorativo por quase oitenta anos.

Era injusto. Não comigo, mas com Seth. Alguém complacente e atencioso feito ele deveria ter os próprios descendentes, não deveria? Levar adiante a esperança – pessoinhas tão boas e gentis feito ele – de que a humanidade ainda poderia ser salva e que não foi totalmente corrompida? Será que havia meios de eu induzi-lo a namorar alguma garota humana e comum – talvez a loura do desenho – para constituir família e tudo o mais que esses jovens sonham?

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Se eu dissesse que isso me faria feliz e me deixaria mais em paz com a minha consciência, era provável que Seth o fizesse.

Fiquei surpresa com o quanto essa ideia me feriu. Retraí-me, tentando me convencer de que essa dor não tinha nada a ver com ciúmes.

— Ei. – Ele levantou meu queixo. – Por que está triste, Anna?

Cruzei os braços por cima dos joelhos.

— Apenas pensativa – me esquivei.

Ele estudou minha carranca por exatos seis segundos.

— Alguém está precisando comer mais para colocar um sorriso nesse rosto – acabou murmurando, arrastando a cesta pela aba para perto dele.

— Está tentando me alegrar com comida?

— Estou tentando lhe alegrar com carne — contrapôs, erguendo dois sanduíches de rosbife, pastrami e pepperoni. – Já viu alguém triste com carne?

Ri.

— Bem colocado – aquiesci, inclinando-me para pegar o meu lanche e eu estava a ponto de dar uma dentada quando recebi um jato de molho bem na têmpora. – Não sabia que banho de mostarda estava no pacote.

— Epa. Essa não...

Seth estava branco. Paralisado com o pão na boca, o recheio escapando pelos fundos e pendurado na beirada, a expressão de susto era quase hilária. Era engraçado que ele tivesse mãos precisas para fazer traçados perfeitos com um lápis – coisa que nem muitos anos e professores exímios puderam me ensinar –, mas que fosse desajeitado o bastante para se atrapalhar com um sanduíche. O mais engraçado ainda era vê-lo aguardar pela minha fúria, o que eu sabia que não viria, porém brincar com ele de repente parecia uma escolha tentadora.

Fiquei de pé e apertei os olhos em fendas.

— Não devia ter feito isso, Seth – sibilei, flexionando os dedos. A água do rio atrás dele se afunilou, subiu no ar em um arco e desabou no topo da cabeça dele. Ele cerrou os olhos, ciente de que o castigo era merecido, e ficou esperando a água da bica acabar, mas não acabava, porque eu estava manejando metade da água do rio para cima dele sem parar.

Tapei a boca para controlar o ataque de risos, mesmo que à essa altura minhas botas e o cobertor de piquenique já estivessem encharcados e que até a cesta já tivesse sido carregada pela correnteza, no entanto não aguentei quando soprou e cuspiu mais água. Curvei-me, os braços envolvendo a barriga, enquanto gargalhava de modo descontrolável.

Seth se levantou, escorregando um pouco na coberta, o que me fez gargalhar mais.

— Está se divertindo, não é? – E mais do que depressa, me pegou no colo. – Vou lhe mostrar o que é diversão.

— O quê?! Não! Solte-me! – protestei, porém era tarde demais. Ele saltou comigo no rio e subitamente me vi girando sem direção, rodeada de bolhas. Tentei alcançar a superfície, só que os dedos de Seth se fecharam em torno de meu tornozelo e no segundo em que encontrei oxigênio, despenquei na cascata. O pior foi que enxerguei cada milimétrico detalhe, lentamente, e poderia ter planado no ar se não fosse Seth agarrado ao meu pé.

Não me importei em chutá-lo quando estávamos submersos de novo. Saí do rio bufando, batendo os pés até a margem – já ele, me acompanhou exibindo um sorriso gigante.

— Ora, vamos, Anna – insistiu, animado. – Foi divertido e você sabe.

Decidida a ignorá-lo, bati o pé com mais ímpeto ao chegar na margem e me atolei na lama até a coxa. Ah, mas que ótimo, resmunguei, puxando a perna com força e me desequilibrando. Seth segurou meu braço, tentando me firmar, entretanto pisou em falso e desabamos no lamaçal, espirrando barro para o alto e me afundando debaixo dele. Senti a terra me aninhando e grudando nos meus cabelos igual quando dormi junto ao lago Svartediket em Bergen.

Com um braço enterrado no meu flanco esquerdo, Seth tirou a lama de meus olhos com o polegar e sorriu torto:

— Interessante. Foi assim que nos conhecemos.

Revirei os olhos. Era difícil ficar irritada estando naquela situação lamentável e vendo-o sorrir daquele jeito.

— Com você me atirando no rio e depois na lama? Não é assim que me lembro, não.

— Não. Assim... – E gesticulou para a posição comprometedora e indecorosa que nos encontrávamos.

Somente então me ocorreu o quão íntimo era aquele momento. Algo no olhar de Seth me confirmou que ele também percebeu; as obsidianas negras se tornaram abrasadoras e magnéticas, hipnotizantes. Perdi o fôlego e me senti sendo arrastada na direção dele. Fervi por dentro, um tremor atiçou meus músculos e meu coração alçou voo em expectativa. De repente eu entendi que meu corpo desejava saber qual era a sensação de beijá-lo.

Minha obstinação se desfez feito um castelo de areia.

Seth se aproximou devagar com os lábios macios e cálidos entreabertos, procurando descobrir como seria recebido. O hálito cativante foi o último golpe na minha resistência. Fechei os olhos, no entanto quando seu nariz tocou o meu, senti-me enrijecer por inteira.

Havia mais alguém além de Seth e eu ali.

Arregalei os olhos, assustada, e tombei a cabeça a tempo de ver o dono dos pensamentos, um vulto esbelto e louro, fugir da depressão rochosa muito adiante daquela cascata e se esconder entre as árvores da floresta densa.