Antes Do Amanhecer

Fragmento Treze - Você não é bem-vinda!


Um raio riscou o céu e um trovão rugiu em nossos ouvidos. Todos olhavam atônitos para o caixão de madeira escura. Vários alunos do colégio estavam lá, minha mãe e Pierre estavam lá, até Jolly estava lá, menos Thierry. Ainda bem que Lucius resolveu não dar as caras. A tia de Wallace, Carrie, estava desolada. Tinha um lenço de pano cobrindo-lhe a boca e o nariz, e abafando seu choro, o corpo magro envolvido em um auto-abraço que quase lhe servia como proteção contra os que vinham a consolar. Ela só queria ficar sozinha, e sentir a sua dor em paz, sem falsos reconfortos. Só ela sabia como aquele sobrinho era importante para ela, desde pequeno ela havia cuidado dele, e agora a vida havia tirado isso dela. Ela se sentia quebrada.

A voz e choro de Anabelle competiam com o barulho da chuva no cemitério. Ela olhava para mim e repetia que aquilo não podia ser verdade, e eu não sabia o que dizer a ela. Eu não sabia o que fazer além de segurá-la e abraçá-la forte, tentando tirar a sua dor, mas ela continuava transtornada, ajoelhada na grama, sentindo uma dor avassaladora de dentro para fora que ela sentia que jamais passaria.

Eu estava em choque desde quando recebi a noticia da morte de Wally. Eu só conseguia pensar no sorriso dele, e em sua mania de investigar tudo, no tamanho de seu coração, em como ele era um garoto doce… E em como Lucius era cruel.

Cheguei em casa totalmente abalada. Pierre me abraçou e me avisou que conseguiu entrar em contato com Thierry, mas que ele estava muito longe para chegar a tempo do enterro e que depois ele ligaria para Anabelle.

Arrastei-me para o meu quarto e fechei a porta. Camel já estava lá esperando por mim e eu não aguentei mais e desabei, comecei a chorar compulsivamente, meu corpo se chacoalhando com o choro, a dor tomando conta de mim, assim como tomou Anabelle. Meu melhor amigo havia partido, e eu não pude fazer nada para impedir. Como eu poderia trazer paz ao mundo e salvá-lo, se não conseguia nem salvar o meu melhor amigo? Eu não conseguia entender. Não conseguia entender porque Lucius havia tirado uma das pessoas que eu mais amava de mim. O que eu fiz para merecer isso?

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- Eu jamais vou perdoar Lucius, Cam. - choraminguei. - Jamais!

- O meu doce… - ele se aproximou e me abraçou forte. - Vai ficar tudo bem.

Agarrei-me a camiseta dele.

- Está doendo tanto! - eu disse com a cabeça deitada em seu peito, sem conseguir parar de chorar.

- Eu vou fazer parar de doer. - disse ele docemente, me puxando até a cama e se sentando comigo, me envolvendo como uma bola em seu colo.

- Espere… Anabelle… - eu disse olhando para seus olhos, me lembrando que Anabelle deveria estar sentindo uma dor pior que a minha.

- Bernard está tirando a dor dela também. - ele deu um sorriso amável - Não se preocupe. Deixe-me tirar a sua dor, meu amor.

Me agarrei a ele e esperei acontecer. Meu choro se intensificou, e eu senti tudo doer, mas depois fui parando de chorar aos poucos, e ficando mais calma, até que parei de chorar e cai no sono. Camel me deitou na cama, beijou minha testa e deixou o meu quarto. Me ver chorar acabava com ele. E ele ia acabar com Lucius por isso.

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Depois de um sonho com meu pai, acordei no meio da noite já sabendo o que tinha que fazer. Liguei para Anabelle e pedi para irmos ao cemitério para que ela me ajudasse a cumprir a missão que Wally me ajudaria e ela topou na hora. Coloquei um moletom preto, meus tênis de corrida, e fui até a garagem. Procurei no meio das coisas de Pierre duas pás, joguei-as no porta-mala do meu carro e parti rumo a casa de Anabelle. Ela entrou em meu carro também de moletom e me deu um sorriso.

- Que amigos úteis você tem! - disse ela afivelando o cinto de segurança.

Me limitei a dar de ombros e dirigir rumo ao cemitério.

- Então… Tenho um certo medo de mortos. Você não quer roubar nenhum cadáver não né? - disse ela. Tava na cara que ela queria conversar. Tipo… Voltamos a ser amigas agora? Eu quase perguntei, mas achei melhor não.

- Não, vamos enterrar uma coisa para protegermos uma pessoa.

- Uma coisa? - perguntou ela intrigada.

Sem tirar os olhos da avenida, abri o porta-luvas e lhe entreguei a fita de meu pai.

- Caraca… Isso é velho. - riu ela.

- Seu humor está ótimo. - observei.

- Digamos que seu cunhadinho fez bem mais do que tirar a minha dor. Ele tirou a minha tristeza também.

- Vai ser sempre feliz agora? - perguntei, estacionando o carro próximo ao portão do cemitério Père-Lachaise.

- Você vai ser sempre ranzinza agora? - perguntou ela e eu me forcei a dar um sorriso. - Não. Bernard disse que é temporário.

Fomos até a parte mais distante do cemitério e eu e Anabelle começamos a cavar um buraco. Horas depois ele já era fundo o suficiente para as pernas de Bells sumirem nele. Enfiamos a fita lá e enterramos. O buraco já havia sido fechado quando Bells virou-se para mim com uma fisionomia estranha.

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- O que? - perguntei com medo.

- Ta sentindo isso?

Parei por um minuto olhando em volta.

- Para de me assustar, Bells, sério.

- Não, eu to falando sério, caramba.

Ouvi sons de passos rápidos vindo em nossa direção e só consegui puxar Bells e sair correndo, ela correndo logo atras de mim. Nós duas arfantes e desesperadas. Meus pulmões ardendo dentro do meu peito sem ar. E foi um choque quando pisei em falso levando eu e Anabelle direto para dentro de uma cova. Berramos de pavor.

- TEM UM BICHO SUBINDO EM MIM! - berrou ela, e me desesperei mais ainda em tentar sair da cova. Meus pés patinando na terra molhada. Senti algo puxando meu pé e comecei a chorar de pavor. Empurrei Bells com toda a minha força para fora e ela me puxou então corremos para o carro com lama até no cabelo.

- Era isso que você e Wallace faziam as quartas a noite? - riu ela. - Agora entendo porque ele preferiu você a mim. As quartas comíamos pizza, isso era a coisa mais radical que fazíamos.

Ainda arfando abracei Anabelle rindo.

- Vem… Você vai dormir lá em casa hoje, pelos velhos tempos. - disse a fazendo entrar no carro e entrando também.

- Eu quero o chuveiro mais próximo, por favor.

Retomar a amizade com Bells foi fácil depois daquilo. Era como se Lucius nunca tivesse estado entre nós. Nunca tivesse dito coisas que fizeram com que Bells me odiasse. Éramos apenas eu e ela agora, e tínhamos que ser fortes e nos manter unidas. Era bom ter Bells ali de novo, perambulando pela minha casa, comendo minha comida e tomando quase todo o espaço em minha cama, ver ela sorrindo para mim, e fazendo piadinhas nada a ver como sempre. E no final com uma distraindo a outra até que dormir sem pesadelos me pareceu bem fácil.

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- Eu odeio o fato de nunca mais termos comido bacon. Qual é o problema em comer algo que não seja colorido? - ouvi Jolly dizer, e avistei da escada ela olhando com raiva para sua tigela de cereal.

- Dee não come carne. - disse Pierre sem desviar os olhos do jornal com sua xícara de café em mãos.

- Exatamente! A Desirèe não come carne, eu como. Não vejo a hora de sair dessa cadeira idiota para mostrar pra essa garota qual é o lugar dela.

Pierre revirou os olhos. Atravessei a cozinha com Bells indo direto para a saída.

- Bom dia Pipi, vou tomar café com Cam. - disse saindo.

- Ei guria, quem é Cam? - perguntou ele.

- O namorado dela. - cantarolou Bells para a raiva de Jolly.

- Quando vamos conhecê-lo? - perguntou ele.

- Discutimos isso depois Pi. - disse eu fechando a porta e correndo pelo quintal dos Barker para bater na porta.

Ouvi Anabelle prender o ar atrás de mim quando Bernard abriu a porta sem camisa. Ele era vários centímetros maior que nós, tinha aqueles ombros largos e um tanquinho digno de quem passava umas boas horas na academia. Ele deu um sorriso e por um segundo achei que ela ia desmaiar.

- Camel disse que viriam para o café. - disse ele. - Entrem. Raoul está cozinhando. Eu não sei o que é, mas com certeza não é o que o pessoal da academia costuma comer.

- ESSES COMEDORES DE GRANOLA NÃO SABEM APROVEITAR AS COISAS BOAS DA VIDA ! - gritou Rauol lá da cozinha, enquanto Bernard dava espaço para passarmos.

Henri preparava a mesa enquanto Fernando e Roody jogavam vídeo game parecendo mega concentrados. Camel se aproximou de mim, me deu um selinho e depois sorriu.

- Como se sente? - perguntou-me.

- Bem melhor que ontem. - sorri.

- Raoul… Se odeia comedores de granola por que anda com a Desirèe? - perguntou Fernando rindo.

Eu já havia reparado que Fernando tinha amor por zoar a minha pessoa, e eu também já havia reparado que eu não ligava.

- Eu não posso mudar o fato de que ela curte um tofu, mas a Dee até que sabe curtir um alfajour.

- Porque alfajour não é feito de animais. - disse eu.

- E essa comida sai ou não sai? - disse Roody sempre sem paciência vindo para a cozinha.

- A culpa é sua porque deixou o Enzo sair. - rebateu Raoul.

- Eu precisava que ele me comprasse umas coisas!

- O Enzo não pode sair, ele tem que fazer o café da manhã!

- Não sei do que ta reclamando, a comida dele é horrível! - disse Fernando.

- Pessoal! - chamou Jarede entrando na cozinha e interrompendo a briga. - O Enzo não ta, paciência Vamos comer a gororoba do Raoul por hoje, quem sabe assim a gente se lembra o porque que o Enzo não pode ficar dando rolezinhos por ai.

- Ele é só uma criança! - me enfezei.

- Vocês tem uma criança de empregado? - rosnou Anabelle. - Isso me lembra porque não gosto de vocês.

- Anabelle! - a repreendi.

- Bells… - começou Camel. - Acha que já não está na hora de contar a Dee o porque se afastou de nós e dela?

Anabelle deu um forte suspiro.

- Eu sei o que o seu namoradinho é, Desirèe, e também sei que você sabe e que não liga que ele seja uma aberração. - disse ela. - Eu cheguei a lhe contar que havia aprendido coisas com a minha mãe. Desde pequena vi minha mãe e minha vó fazerem coisas que outras pessoas não faziam. Depois que você se aproximou de Camel coisas começaram a acontecer comigo e só depois eu fui entender porque. Foi previsto que você chegaria e despertaria todas as coisas sobrenaturais do planeta, mas até então eu não sabia que era uma delas. Acontece que sou uma bruxa.E bruxas e anjos não se dão muito bem.

- Mas por que? - perguntei intrigada.

- Há milhares de anos atrás um anjo desceu a Terra e teve três filhas com uma bruxa. As trigêmeas foram consideradas ameaça a todos os mundos e a sentença de morte a elas foi declarada. - explicou-me Bells. - Elas foram amarradas a uma arvore e assistiram o anjo vingador arrancar as asas do pai delas. Depois com as penas o anjo vingador fez uma fogueira e matou as trigêmeas queimadas. Desde então as bruxas tem medo dos anjos e uma eterna sede de vingança.

- Algumas bruxas são realmente perigosas. - disse Bernard. - E nem todos os anjos são iguais ao vingador. Somos a prova viva disso. Você pode ser diferente Anabelle. É poderosa demais para deixar-se levar para o lado da magia negra, como Lucius estava lhe ensinando. Alias se há uma raça de bruxas poderosa nos mundos, estas são as Bruxas de Sartre.

Bells corou com o elogio de Bernard e sorriu.

- Vou precisar da ajuda de vocês então. - disse ela.

- Pode contar com a gente. - disse Jar animado, piscando para ela e me guiando para o jardim.

Mas assim que cheguei lá tive uma visão, daquelas que não tinha há muito tempo. Levei as mãos na cabeça na hora e gritei de dor, e logo depois tudo passou. Encarei Jarede.

- Vocês levarão um sermão em breve. - eu disse numa voz oca. - Tem alguém muito bravo com vocês.

- Ih, caramba, a chefe ta vindo. - desesperou-se Raoul.

- Correção rapazes. - disse uma garota ruiva encostada ao muro da casa. - A chefe chegou.

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Camel prendeu a respiração atrás de mim. Não podia ser Dina! De todos os superiores que eles tinham, eles mandam logo a Dina? Deviam estar de brincadeira com a cara dele. Acontece que Dina sempre quis ter um relacionamento sério com Camel e ele nunca deu muita bola para ela porque sempre gostou de mim. Dina me odiava mais do que tudo. E agora ela estava ali. Camel estava mais do que furioso, ele tava puto.

- É claro! - ela disse encarando Bells. - Uma bruxa. Por que eu não pensei nisso antes? Vocês estão perdendo o nosso precioso tempo por causa de uma bruxa?! Eu deveria matá-los.

- Como é que é? - perguntei brava. - Ninguém aqui está perdendo tempo não, minha querida. E isso não tem nada a ver com Anabelle. Veja bem como fala!

- Ah, mas vejam só. - Dina deu um sorriso sarcástico. - A marcada é petulante mesmo hein! Achei que eram só boatos. Você nem deveria estar aqui, criança. Não é bem-vinda.

- Criança é a tua… - comecei, mas Jarede me segurou.

- Bem-vinda chefe. - disse Roody solenemente. - É bom tê-la aqui.

Todos olhamos indignados para Roody. Dina sorriu.

- Só pode estar de brincadeira. - murmurei.

- O que você ainda ta fazendo aqui?! - Dina disse me fuzilando com o olhar.

Olhei para Camel, mas ele estava quieto, parado como uma estátua. Fiquei furiosa. Não podia acreditar. Peguei o braço de Anabelle e fui em direção a saída da casa.

- Dee… Espera! - tentou Cam.

- Tarde demais. - falei antes de bater a porta.

Na rua, respirei fundo e cogitei em largar tudo isso e ir para onde Thierry estava. O problema é que eu não sabia onde ele estava.

- Bells… Como foi a ultima vez que viu Thierry? - perguntei intrigada.

- O vi numa visão, Dee. - disse ela com a expressão sombria. - E o mais estranho é que eu vi ele e depois um lobo.

Um lobo? Como assim? Será que dava para isso ficar mais estranho?