A chuva fustigava a arena.

Despertou de mansinho, recuperando, uma por uma, todas as funções vitais do corpo abatido. Sentia-se enfermo e desgraçado, quebrado em mil pedaços dispersos, desfeito numa papa borbulhante que ousava sentir-se viva.

A obstinação e a teimosia classificavam-no inequivocamente, quase como o orgulho e a honra. Tudo nele sempre fora excessivo, até as derrotas, as vitórias e as paixões. E mesmo que tivesse a tentação de se render ao desespero, por, mais uma vez, não estar a conseguir superar o maldito adversário que o desmontava, bloco por bloco, até conseguir expor-lhe o tutano, ele haveria de resistir sempre, com os seus excessos todos intactos, mesmo que o corpo se convertesse num monte de cinzas. A obstinação, a teimosia, o orgulho e a honra, não necessariamente por esta ordem. Porque isso não era passível de ser incinerado.

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Vegeta encheu os pulmões de ar e tossiu, porque quase não havia oxigénio naquele ambiente salobre. Esgravatou o solo com as unhas e soergueu-se nos braços trémulos. Estava perigosamente drenado, mas fez mais um esforço. Levantou a cabeça, a testa estava empapada em suor e em sangue. Fez um esgar que se assemelhava muito a um sorriso e ele gostou de enviar essa mensagem – de que nada o iria quebrar.

Uma onda de calor envolveu-o e a visão ficou vermelha. Outro ataque de Argia. Havia labaredas escaldantes e ramagens espinhosas a tentar despedaçá-lo, mas ele resistiu. Elevou o ki e libertou-se do ataque. Rebolou e deixou-se ficar deitado de costas, a respirar ofegante, a receber as gotas de chuva no rosto como lágrimas que lhe suplicavam que se aguentasse firme naquele combate.

Nisto, soube que a solução era simples.

Abriu os olhos, controlando a respiração. Era demasiado simples.

Ergueu-se, triunfando sobre o desânimo. Bradou:

– Argia!!

Obteve apenas silêncio e insistiu:

– Argia! Mostra-te, cobarde.

Ouviu uma voz pausada do lado direito.

– Estou aqui, príncipe dos saiya-jin. O que pretendes?

Vegeta voltou-se devagar. O deus guerreiro cruzava os braços e olhava para baixo, a cismar com qualquer coisa insignificante que estava no chão, a poucos centímetros da biqueira das botas.

– Vamos recomeçar este combate.

– Sabes que se trata de uma questão de segundos. Basta eu querer… e acabo contigo.

– Mas não queres. Porque sabes que existe uma possibilidade…

Argia inspirou profundamente, cismando agora com o horizonte soturno recortado em picos de ferro.

A chuva envolvia os dois adversários no mesmo destino negro e bafiento.

Vegeta completou:

– A possibilidade de vencer-te. E tu queres comprovar se o príncipe dos saiya-jin consegue derrotar um deus.

– Não consegue.

– Tu sabes que consegue! – Rugiu Vegeta. – Já o viste!

Argia aproximou-se tanto que ele teve de se inclinar para trás. Cuspiu-lhe a frase:

– Prova-o.

Aproveitou o impulso para o socar e Vegeta deslizou pelo chão até parar junto ao fim da arena, balançando perigosamente no início do abismo. Limpou o sangue da boca com a ponta dos dedos, resmungando:

– E vou provar-te, maldito.

Então, empurrando com os pés, atirou-se para o negrume desconhecido daquela garganta rochosa. Caía e não parava de cair. Travou a queda quando deixou de sentir a chuva. Olhou para baixo e não havia nada. Não conseguia perceber onde ficava o fundo do abismo. Olhou para cima e viu a luz recortada numa forma circular imperfeita. Crispou a fronte, estranhando o lugar. Estava dentro de uma espécie de caverna tubular, mas não era essa a perceção que tinha. Como esperado, Argia não o seguira. Pelo menos, não para já, o que lhe dava tempo para pôr o plano em prática.

Vegeta começou a vaguear pelo abismo, a fingir que se tinha perdido. Diminuiu o ki, disfarçando a sua presença, ocultando-se nas sombras. Encostou as costas numa parede lisa e gelada e, apesar de não ser essa a sua intenção inicial, concedeu a si próprio uns instantes de descanso. Um intervalo breve, que lhe permitiu esfriar ainda mais a mente em turbilhão e organizar as suas ideias, a começar por aquele plano.

Arriscou sorrir. Mas por que razão ainda não tinha pensado naquilo?

Achou que adormeceu, pois os olhos abriram-se de repente quando uma torrente de chamas violeta irrompeu pelo abismo, calcinando tudo o que tocava, descendo imparável até ao fundo desconhecido. Vegeta espalmou-se mais contra a parede. Sabia o que se seguiria, pois mesmo que fosse um deus, Argia estava a reagir como um vulgar guerreiro e ele já tinha conhecido muitos ao longo da sua vida.

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Como antecipara, a comandar a torrente, a empurrar a sua descida assassina, vinha Argia de braço estendido e mão aberta, furioso e cego com essa fúria. Vegeta intercetou-o a meio do voo picado, desferindo-lhe um pontapé com ambos os pés que o apanhou em cheio na cabeça. Argia desapareceu na escuridão, berrando indignado, o berro perdendo-se no vácuo, misturando-se com o estrondo dos pedregulhos a rebolar uns sobre os outros, um eco metálico e torcido, ferro contra ferro.

Vegeta aproveitou o momento e voou dali, subindo até aterrar na arena. Juntou as duas mãos diante do corpo e aguardou, concentrando energia, toda aquela que conseguia rebuscar. Talvez chegasse a ser excessiva e, acaso falhasse, ficasse tão enfraquecido que não se conseguiria defender mais. Uma última hipótese, sabia-o muito bem. Mas o plano estava a dar certo e não iria desistir só porque havia a possibilidade de sucumbir mesmo vencendo.

O ataque e o voo cansara-o mais do que esperava. Os braços pesavam-lhe toneladas, a visão turvava-se, as pernas tremiam como gelatina. Mas era obstinado, recordou-se. Teimoso, orgulhoso e, sobretudo, honrado. Estava ali no lugar de Kakaroto e não o iria desiludir.

Nas profundezas, rochedos metálicos rebolaram e chocaram. Vegeta cerrou os dentes, uma veia pulsou na testa. Um aro luminoso rodeou-lhe os pulsos.

Não iria falhar.

Escutou o mesmo brado, desta vez em crescendo, a ira em estado sonoro.

Nas suas mãos juntas aglomerava-se luz, faúlhas e um ataque mortífero.

Só mais um momento…

Cerrava os dentes com tanta força que começou a ouvir estalidos na cabeça.

A exaustão estava a ameaçá-lo.

Nisto, à sua frente, Argia surgiu magnífico, envolvido numa aura vermelha de ódio. Voando de braços abertos, agitando as mangas largas, emulando um anjo da morte.

E depois, o tempo recuou.

Vegeta engasgou-se:

Nani?

Mas não interrompeu o ataque que preparava.

Viu a deusa na mesma posição de Argia, de braços abertos, a imagem de um anjo vingador.

Estava ali para equilibrar o mundo.

O anjo da morte enfrentar-se-ia ao anjo vingador.

Vegeta percebeu. Os opostos lutavam naquele mundo e eles eram meros peões, usados e largados pelos deuses, demasiado necessários quando lhes convinha, totalmente descartáveis quando passavam a empecilhos.

Ozilia disse e a voz dela ressoou na cabeça dorida de Vegeta:

– Um excelente plano, príncipe. Vai resultar.

Ele gaguejou

Na-nani?...

E depois, o tempo regressou ao presente.

O androide materializou-se do nada. Vinha assanhado e pontapeou Argia nas costas, empurrando-o para cima dele.

Vegeta disparou gritando:

Final Flash!!!

A vaga energética submergiu o deus guerreiro. A explosão também derrubou Vegeta que caiu para trás, rendendo-se ao cansaço. Foi recebido num amplexo quente e sacudiu-se, sentindo-se envolvido num perfume desconhecido e na macieza inebriante de um corpo feminino. Mas não se conseguiu soltar.

– Termina o que vieste aqui fazer, príncipe – dizia-lhe Ozilia.

Arquejou, de gatas, subitamente regressado à chuva e à arena recortada numa montanha de um lugar onde imperava o ferro. Apoiou-se numa perna, depois na outra. Não foi necessário ver, nem o conseguia fazer, tinha os olhos turvos do suor e do sangue que escorriam da testa. Atirou-se para o chão de joelhos, arfando como um asmático. O corpo balançava, tinha os braços pendurados.

Mas ele era… Recordou-se, no meio de uma névoa cinzenta que lhe estava a tragar a consciência.

Mas ele era obstinado. E teimoso. E muito orgulhoso e muito mais honrado.

Argia gemia ferido, tão arquejante quanto Vegeta.

O príncipe guiou-se pela luz. Lançou a mão com as derradeiras forças e agarrou no diamante do deus guerreiro. Com um puxão separou-o da corrente que Argia usava ao pescoço. Sentiu-o palpitar, como coisa viva. Sentiu-o debater-se, tentando sobreviver, tentando regressar ao seu dono.

Vegeta sorriu, de olhos fechados. E disse, antes de desmaiar:

– Está provado… Argia.


***


Foi número 17 que esmagou o diamante de Argia que, afinal, podiam ser esmagados como os berlindes onde se guardavam as galáxias, não apenas com um dedo, mas fechando a mão e utilizando a força imensa de um humano artificial que era ainda o mais forte do mundo. A deusa tinha-lhe concedido esse privilégio, apesar de lhe ter dito, antes da viagem, que seria ela a acabar com o deus guerreiro.

Ozilia debruçou-se sobre Vegeta e murmurou-lhe algumas palavras ao ouvido que número 17 não conseguiu escutar. Ela passou-lhe uma mão pelo rosto, sem o tocar, desde a testa até ao queixo, suavizando-lhe a expressão crispada, eliminando-lhe todas as rugas de esforço e apenas essas, pois os ferimentos, o sangue coagulado e os rastos de suor permaneceram. A seguir, o corpo do príncipe estremeceu ligeiramente até se abandonar num absoluto estado de inconsciência. Ozilia acolheu-o nos braços, segurando-o com muito cuidado.

– Ele está bem?

– Ele lutou com um deus – explicou Ozilia, não lhe respondendo diretamente, pois nunca o fazia. – O esforço foi muito grande.

– Regressamos?

Novamente, sem resposta.

Ozilia olhava para Argia.

O corpo do deus guerreiro agitou-se num estertor e desfez-se, de seguida, numa massa negra que se foi espalhando como se estivesse a ser derramado, esticando-se para perder contornos e volume, tudo o que tinha sido. Entranhou-se no solo e desapareceu sem sequer libertar fumo, odor ou qualquer coisa semelhante a uma alma que se escapasse do ser físico para ir habitar outro mundo para além daquele.

Que provavelmente não existiria. Aquele era o mundo dos deuses.

Quando número 17 olhou para Ozilia, viu que ela chorava.

Chovia sobre eles, sobre a dor daquele cenário em que um deus tinha morrido.

E então, com as lágrimas a correr de fio pelas faces, ela respondeu-lhe:

Hai. Regressamos.