Lado A Lado - A História ao Contrário

"Sentimentos Complexos"


O salão principal da confeitaria está composto. Entre os lugares ocupados pela mais fina estirpe da sociedade carioca, contam-se poucas mesas vazias, que aguardam com certo anseio confortar mais alguns quantos ricos corpos, e saciar-lhes a fome e a sede sempre graciosamente camuflada, como é de bom tom a damas e cavalheiros que se prezem. Numa dessas mesas, habitam em constante exultação Fernando e Catarina que, à hora do almoço, experimentam o melhor vinho de reserva e uns quantos acepipes dignos do mais distinto restaurante parisiense. É notório que o momento é de comemoração e, como tal, prevendo um gasto considerável, um dos funcionários serve-os de plantão, propositadamente destacado para o efeito. O motivo, esse esconde-se na troca acesa de olhares e no cruzamento descarado de pernas, encoberto pelo longo tecido da toalha branca que aquece a mesa. Qual pássaro acorrentado, Catarina faz um esforço dolente por não extrapolar as emoções e, entre sorrisos e carícias visíveis mais comportadas, recebe com orgulho e peito inflamado, o anel cravado de diamantes que Fernando lhe oferece como prova do prometido noivado e sinal do seu mais profundo amor e devoção. À frente deles, ao alcance de um curto gesto, posam cintilantes as belas taças nas quais o empregado de mesa verte meticulosamente a Möet & Chandon com que se adivinha o brinde. O erguer das taças faz-se sob o olhar de relance que os presentes ao redor sentem dificuldades em disfarçar, encadeados pelo brilho exagerado do anel que reluz no vidro.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Tudo corre de feição ao casal enamorado e, de braços entrelaçados num romance sem lei nem tempo, levam o doce champagne à textura dos lábios numa prova que se julga demoradamente aprazível mas que se revela breve quando os olhos secos de Catarina avistam à entrada Laura, Edgar, Francisco e, claro, sua filha Melissa.

Não se pode dizer ao certo quem viu quem primeiro nem tão pouco negar a repetida fascinação que Melissa demonstra ao dar-se conta da presença daquela mulher que dias antes, por razões a ela desconhecidas, arruinara a festa de seu irmão. Para Laura e Edgar, as sensações são quase as mesmas também, embora não tão exacerbadas por desta vez o fortuito encontro se dar num local público. As pernas de Laura não tremem nem parecem enfraquecer diante dos dois, pelo contrário, algo a faz sentir-se mais firme e decidida ainda que sua vontade primária seja a de abandonar a confeitaria sem reservas. O medo e a raiva que acometeram Edgar dias antes, viam-se agora estranhamente substituídos por uma pena absurda de seu irmão mais novo, o bastardo como, segundo sua mãe, seu pai passara a apelidá-lo desde o confronto. No seu íntimo complacente, o jovem advogado tem até vontade de perdoar a canalhice vingativa de Fernando e, interiormente, pode-se mesmo ouvir a sua consciência reconhecer que, fossem outros tempos e Catarina alheia ao seu passado de mágoas, dificilmente não o receberia em seus braços.

Ressuscitados deste coma acordado em que se encontram, ainda em pé mas já ao lado da mesa para a qual foram, sem sentidos, conduzidos, Laura e Edgar desviam o olhar preso no dos dois ocupantes da mesa ao fundo e acomodam-se com as crianças, tentando abstrair-se com elas. Só então se apercebem que, sentada ao lado do pai, de frente para Francisco e com a mesa de Fernando e Catarina em vista, Melissa não corresponde aos estímulos do irmão que a chama perto do desespero. Como uma estátua de gelo, petrificada pelo encantamento dos olhos da cantora que igualmente a fitam intrigados pela súbita vontade de a tocar, a menina prossegue atada à presença de Catarina, para angústia de Edgar e Laura. Com o pedido feito, pensam pagar sem consumirem e correr dali para fora mas, perseguidos pela pouca sorte ou simplesmente traídos pela dificuldade em camuflarem os sentimentos, é com temor, aborrecimento e frustração que vêem o casal de noivos apressar disfarçadamente o passo em direção à mesa onde se encontram.

Fernando: Ora, ora, veja só meu amor quem veio prestigiar a consumação do nosso noivado – dispara descarado em tom de escárnio, com uma das mãos apoiada na bengala e a outra no bolso onde guarda o relógio acorrentado.

Edgar: Fernando, não é hora nem local para ironias e troca de farpas. Ao menos respeite as crianças e retirem-se, por favor – devolve educado mantendo o discernimento que a ocasião pede.

Fernando: Não se preocupe meu querido irmão. Para ser sincero, por mim teríamos saído à francesa mas, deve convir que, todos iriam estranhar se não nos cumprimentássemos – murmura-lhe por entre um sorriso dissimulado.

Laura: Pois bem, já satisfizemos as aparências, não vejo o que mais haja aqui do vosso interesse – acrescenta inquieta encarando o cunhado.

Catarina: Melissa! – chama causando espanto e pânico nos demais. – Posso te dar um abraço? – questiona parecendo comovida e com uma doçura na voz que não lhe era habitual.

Perante a incredulidade e o exaspero comedido de Laura e Edgar que se sentem emaranhados numa teia que lhes consome a força de contestação, Melissa faz pouco caso dos semblantes assustados e em negação dos pais e salta da cadeira, pronta para trocar um abraço com Catarina. Pode-se dizer que a emoção espalhada na face rosada da cantora advém do dramatismo elástico e fingido que a caracteriza mas, uma observação mais detalhada e livre de preconceitos, verá neste envolvimento das duas uma verdade e sinceridade desconcertantes.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Catarina: Como você é linda, uma verdadeira princesa – elogia elevando-a no colo enquanto lhe faz um mimo no rosto.

Melissa: A senhorita também – diz sorridente devolvendo-lhe o gesto. – Como sabe o meu nome? – inquere atentando às feições da cantora como quem tenta imprimi-las na memória.

Catarina: Porque sou a sua…

Edgar: Chega! – brada enlouquecido erguendo-se de supetão. – Melissa venha, está na hora de voltarmos para casa – completa fazendo por acalmar-se à medida que recupera a menina do colo de Catarina que mal disfarça a raiva pela interrupção.

Catarina: … tia querida, eu ia dizer que sou, ou em breve serei, sua tia – conclui sagaz.

Fernando: Catarina, é melhor irmos embora, não quero piorar a indigestão da minha adorada família – corta seco e hipócrita lançando um último olhar debochado ao irmão e à cunhada.

Catarina: E eu tão pouco pretendo desencadear um escândalo aqui. Nada abala a felicidade que você me proporcionou hoje meu querido – fala reavendo seu cinismo trivial.

Batendo os pés firmemente no chão, como que anunciando a todos a saída de um casal real, Fernando e Catarina retiram-se enfim, deixando Laura e Edgar entregues uma vez mais à dor solitária. Decidida, a jovem toma Francisco nos braços e levanta-se da mesa, pronta para abandonar a confeitaria a par do marido que sufoca Melissa num aconchego temeroso e apertado. Sem mais delongas, tamanha é a sua pressa de rumarem ao sossego de casa, Laura abre a bolsa e retira umas quantas notas que coloca levemente sobre a mesa, fazendo sinal ao empregado que não tarda a recolher o pagamento. Edgar está tão perdido que nem se dá conta que a esposa se responsabilizara pela conta.

Num silêncio aterrador, chegam finalmente a casa, exauridos pela chuva de perguntas entusiasmadas que Melissa lhes lança sobre a misteriosa moça de roxo que tanto lhe apraz e suscita uma curiosidade inexplicável. A tenra idade da menina e seu entendimento ainda limitado, foram úteis na procura de respostas pouco evasivas e, ao romperem pela sala, é com alívio que a vêem seguir Francisco escada acima em direção ao trem e às bonecas que os esperam impacientes para dar início à tarde de brincadeiras.

Laura: Edgar! – exclama num murmúrio que se adivinha choroso.

Edgar: Não diga nada Laura, não diga nada. Já me custa em demasia o peso dos pensamentos, não me julgo capaz de ouvir mais nada a este respeito – afirma tomado pela mesma emoção e assombro. – Me abrace apenas meu amor, pois só nos seus braços eu me sinto inteiro – declara recebendo-a sem demoras.

Laura: Evitar falar disso não vai resolver o problema. Você viu como elas se olharam? Se eu não soubesse quem é Catarina, teria acreditado que ela nutre algum sentimento pela Melissa – diz encostando o rosto ao peito do marido.

Edgar: A mãe dela é você Laura, nada vai mudar isso – contesta afagando-lhe os cabelos.

Laura: Não, não sou e nós dois sabemos que um dia Melissa saberá a verdade, mais que não seja, quando começar a questionar-se o porquê de não ter o meu nome – discorda afastando-se dele.

Edgar: Não quero discutir, por favor Laura, vamos esquecer esse assunto por hoje – retruca apoquentado, consciente da irritação de sua esposa.

Laura: Pelos vistos, voltamos a viver numa quimera e mais uma vez, você insiste em não ver o tamanho do problema que caiu em nossas mãos. Vou tomar um banho – informa aborrecida. – Quem sabe a água me lava a alma e os pensamentos – termina subindo já as escadas dando as costas ao advogado que lança os olhos ao chão.

Edgar: Eu vou p´ro escritório. Com tudo isso atrasei a matéria para o jornal – devolve estarrecido sem dar o braço a torcer.

Laura: Se tivesse aceite minha ajuda, talvez tivesse terminado mas como nem para isso sirvo – dispara aguçada a meio da escada.

Edgar: Laura, não é nada disso – responde voltando atrás chateado com a resposta azeda da professora. – Se não quis sua participação na pesquisa foi apenas para te poupar e proteger – justifica-se.

Laura: Me proteger? De quê Edgar? Da tinta da caneta com que me dispus a revisar seu texto? – pergunta enfrentando-o numa inflamação crescente.

Edgar: Ah Laura! Você não entende que eu não posso correr riscos com você? Essa matéria é perigosa, se descobrirem que estou investigando, pode respingar em você e eu nunca me perdoaria por isso – continua.

Laura: Tem razão Edgar, eu realmente não entendo – conclui retomando a marcha pela escada.

Edgar: Como você é teimosa – diz ressentido passando as mãos pelos cabelos, um instante antes de seguir atrás dela. – Laura, vamos conversar, me deixa explicar – insiste.

Laura: Pensei que você não queria conversar.

Edgar: Se não fosse pela sua reação intempestiva, poderíamos resolver isto de outra forma – sugere entrando com ela no quarto.

Laura: Não julgue que me distrai com insinuações. Isso não muda o fato de você continuar a excluir-me da sua atividade como jornalista – fala à medida que começa a despojar-se da indumentária.

Edgar: Se te faz feliz, eu cedo-te a revisão do texto – concorda por fim inebriado pela escassez das vestes que ainda cobrem o corpo esguio da moça.

Laura: E nas próximas matérias não vai negar minha participação mais ativa – pede calmamente achando-se em vantagem.

Edgar: ´Tá, prometo que vou pensar – assente enquanto despe o paletó num ápice sem despregar os olhos de Laura que o fita de camisola.

Laura: Lamento mas isso não é resposta – nega encaminhando-se para a porta. – Quando me contou sobre o António Ferreira e eu disse que te ajudava, foi essa a resposta que me deu e até hoje eu não cheguei nem perto dessa matéria – recorda sisuda.

Edgar: Eu faço tudo o que você quiser, com tanto que você não ouse abrir essa porta agora – diz envolvendo-a pela cintura e beijando-lhe o pescoço e o ombro.

Laura: Mas nós estamos discutindo e os assuntos são sérios – reclama sem controlar os arrepios que aqueles toques suaves e intensos lhe provocam.

Edgar: Neste momento não me ocorre discussão nenhuma, não me lembro mais e não há assunto que me interesse mais do que este – afirma peremptório virando-a de frente para si e encostando-a contra a porta onde dão início aos longos beijos e demais carícias.

Nesta mesma tarde, que se manifesta dual em acontecimentos e emoções para Laura e Edgar que agora se amam com volúpia, D. Constância chega à hora combinada para mais um encontro com Bonifácio no apartamento que, desde a chantagem de Catarina, lhes servia de alcova. Imponente e elegante, porém severamente calculista, a baronesa entra pela porta e logo se depara com Bonifácio que a olha impaciente e bajulador.

Bonifácio: D. Constância, pontual como sempre – diz lascivo beijando-lhe a mão direita que continua poupada pela pelica da luva bege.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Constância: Poupe-me de seus galanteios Bonifácio. Hoje a prosa que me trouxe aqui é outra – informa desdenhando dos desejos do industrial.

Bonifácio: E eu até sou capaz de adivinhar, minha cara, o que envolve sua vinda. Fernando extrapolou todos os limites e, deixe que lhe diga, ainda teve o desplante de me chantagear… aquele bastardo infame – vocifera colérico tomando assento na poltrona em frente à cama.

Constância: Pois quanto ao seu filho não sei que lhe dizer mas no que respeita à cantora – afirma pensativa levitando entre a cómoda e a cama – creio que tenho a solução.

Bonifácio: Então me diga, o que pensa fazer para nos livrarmos deste estorvo?

Constância: De modo algum nossos pecadilhos podem ultrapassar mais paredes portanto, por mais que me custe dizer isto, só vejo uma forma de silenciar a cotovia e, quem sabe ainda, despoletar algum receio em seu filho.

Bonifácio: Deixe-se de rodeios D. Constância! – persiste curioso levantando-se.

Constância: A morte meu caro, a morte de Catarina Ribeiro!