POV – Bruno

- Já reparou como nos conhecemos tão pouco? – Carla indagou. Geralmente, eu ignoraria comentários depressivos daquele tipo, mas Carla estava acabada. Seus olhos estavam vermelhos e seu olhar um pouco estranho. Uma de suas mãos remexia freneticamente a terra em que estávamos sentados. Ela não estivera assim quando voltou da missão de resgate, mas depois de uma manhã e tarde passadas dormindo e uma noite insone, Carla empalideceu e se retraiu consideravelmente. Estávamos no final da manhã de um dia que podia tanto ser segunda quanto sábado quanto qualquer outro dia da semana.

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- E o que você sugere? Um jogo de verdade ou desafio? – brinquei, mas não fui recompensando com uma risada. A Carla de antes da missão teria rido.

Ela começou a se levantar impaciente, quando a puxei pelo braço de volta para o meu lado.
- O que houve com você durante aquela missão?!

A carranca se desfez enquanto um olhar fragilizado e perdido se instalava na face. A reação seguinte foi realmente súbita. Carla literalmente se jogou nos meus braços e desatou a chorar baixinho. Sem reação, apenas apertei de leve seu ombro, desesperado, pois nada parecia apropriado para ser dito.

- Seria um alívio me convencer de que não era eu naquela noite. Mas era, Bruno. Era eu, totalmente consciente de tudo o que fazia.

- Ei, vai ficar tudo bem... Não sei bem o que aconteceu, mas tenho certeza de que foi necessário. A culpa é da merda que se tornou esse mundo, não sua.

Carla está abalada demais para perceber tudo o que desperta em mim, apenas com sua proximidade. Eu a desejo e o fato de não poder, nem ao menos, garantir a sua segurança me perturba.

É nesse momento que a mulher negra que resgatamos no acampamento, aparece. Ela é uma das únicas que ficou por ali, as outras se dispersaram mundo a fora, levando uma parte considerável dos nossos suprimentos – já escassos – e armas. No dia anterior, eu havia descoberto que, na realidade, ela se chamava Paula e lutava para reprimir um nervosismo constante, provavelmente por tudo o que aconteceu no acampamento antes que chegássemos.

- Paula? Tudo bem? – perguntei, pois a mulher está com uma das mãos sobre o peito e uma cara de angústia por baixo do cabelo sujo e bagunçado.

- Olha, eu não sei se você acredita nisso de intuição – ela engole em seco. –, mas eu confio nos meus instintos e algo me diz que aquele garoto, o que foi mordido... Ele não vai sobreviver. Aquela avó dele só vai piorar tudo. O garoto cheira à morte, e vai arrastar todos nós junto se não sairmos daqui!

Antes que eu pudesse perguntar a ela se Daniel havia piorado, ela deixou o local, coçando nervosamente a cabeça com a mão que não estava sobre o peito.

- Você ouviu isso? – perguntei a Carla, minha voz soa incrédula. – A mulher está delirando!

Carla apenas assente.

POV – Steve

Não consigo olhar para Daniel. Não consigo olhar para Claudia. Sou incapaz de sustentar o olhar feroz de Alana.

Minha sorte é não precisar ver Daniel por muito tempo, pois ele passa a maior parte do tempo no quarto que foi de Bruno antes de Alana considerá-lo “novo em folha”, mas eu sinto o olhar de Alana queimar minha nuca, enquanto carrego água do riacho até a cabana apertada com as pessoas ali abrigadas, abato zumbis que se aproximam demais ou até mesmo enquanto vigio de cima de alguma árvore.

Eu tive de amputá-lo. Fora ali mesmo na floresta, com o machado inapropriado de Paula e contando com todas as mulheres presentes para segurá-lo. Considerei o tempo da mordida – informado sem muita precisão pela jovem loira – e o local, logo acima da mão direita do garoto, para escolher o melhor lugar para a amputação que acabou sendo do antebraço. Após terminar o procedimento desesperado, carregamos um Daniel desmaiado para longe dali.

Agora, na hora do almoço, todos notam a perturbadora ausência de Daniel. Durante todos os dias desde que voltamos, Daniel participara, mesmo que em silêncio e mal se alimentando, de todas as refeições, de modo que sua ausência deixa um silêncio constrangedor entre os agrupados ali. A garota loira e sua mãe – ambas vítimas no acampamento e também as únicas mulheres que ali ficaram –, Carla e Bruno, Claudia e Alana, Paula e eu. Alana friamente serve arroz, uma carne... estranha e uma salada mal temperada. Ninguém se sente muito compelido a comer, mas também ninguém reclama da refeição.

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- Ele piorou, não foi? – Por fim, não aguento o silêncio e me manifesto. Bruno me lança um olhar de repreensão que ignoro completamente.

- Por que quer saber? – Alana mastiga e responde, como se eu fosse uma pessoa entediante que ela é obrigada a aturar.

- Talvez porque eu me preocupe com ele.

- Se preocupa? Tem certeza?

- Olha, você poderia demonstrar um pouco de gratidão... – Bruno toma partido na discussão.

- Gratidão? Mas eu estou grata! Não expulsei vocês daqui ainda, isso é gratidão suficiente.

- Claudia, você estava lá, pode falar um pouco da loucura que foi! – grito.

A mulher não reage; na verdade, até reage, começa a chorar e tremer, sua desolação é algo de partir o coração.

- Está sendo injusta com ele. – Carla deixa seu torpor por um minuto para acrescentar, no mesmo tom que alguém usaria para dizer “Ei, esqueci de comprar folhas de sulfite”.

A jovem loira e sua mãe mantêm-se em silêncio, enquanto Alana perde o controle.

- Talvez seja melhor se simplesmente aliviasse o sofrimento dele... – Paula sugere.

- Você por acaso está falando de matar meu neto?! – Alana se enfurece.

- Não é matar, ele já está morto, apenas você não vê isso. E quando você finalmente perceber, ele já vai ter rasgado a garganta de todos aqui.

- Se não está contente com os termos que envolvem ficar nessa casa, simplesmente saia! Tente a sorte com os mortos.

- Estou começando a achar que não é uma má ideia. – Carla comenta.

Por um momento todos se acalmam e recomeçam a comer, troco olhares com Bruno e Carla, até que chegamos a um consenso mudo.

- Alana, nós vamos embora. – Declara Bruno.

- Ótimo.

- Não deveria ser assim...

- Sim, deveria. Já era tempo de vocês seguirem caminho. Sua facada vai deixar uma cicatriz, mas não deve ter qualquer problema para se movimentar ou algo assim.

- Obrigado. – diz ele.

Carla, Bruno e eu nos levantamos ao mesmo tempo, seguidos por Paula. Mesmo que nada tenha sido dito, está mais do que óbvio que ela vai nos acompanhar. No fundo, ela está feliz com a discussão e o que isso provocou.

Terminamos de arrumar nossas coisas por volta de duas horas da tarde, depois que sairmos, ainda restará um bom tempo para andarmos e encontrar um abrigo durante as horas de escuridão.

Enquanto coloco a mochila mais pesada sobre meus ombros, Claudia se aproxima quase sorrateiramente. Ela só diz quatro palavras, mas que mudam o rumo do meu dia.

- Eu não culpo você.