Se Hoje Fosse Seu Último Dia

Capítulo 02 — Antes do primeiro dia


Não queria lhes contar essa história. Não queria mesmo. Mas, por algum motivo, acredito que sabê-la mudará a concepção que terão sobre mim e sobre os acontecimentos que se seguem em Nova Iorque.

Como já havia dito, passara dois anos em São Francisco. O primeiro semestre, como sempre, foi uma tortura, em que apenas comparecer à aula me deixava enojado. Acho que a única coisa boa que fiz lá foi um amigo.

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Grover.

É, eu também estranhei. Grover? Que tipo de nome é esse? Ele tinha me dito que sua mãe era uma daquelas adoradoras da natureza, como se diz, vegan, e o nome tinha algo a ver com isso. Mas não me lembro o quê.

A situação do meu amigo era um pouco pior do que a minha. Além de ser magro como eu e um pouco mais baixo, ele mancava. Era coxo. O que era uma pena, sério. Não que isso interferisse na nossa amizade, mas o visual rebelde criado pelos cabelos castanhos e cacheados, acompanhados pela barbicha que conservava, era totalmente arruinado pelo problema na perna.

E eu nem preciso dizer que era alvo de valentões. Nunca achei que alguém pudesse apanhar mais do que eu na escola, mas Grover superou minhas expectativas. Os meninos maiores realmente não gostavam de quem mancava, seja lá o motivo.

O triste, porém, era que esse não era seu pior problema.

Grover vinha de uma família desequilibrada. O pai era alcoólatra e ele me contara que, algumas vezes, assistiu o pai batendo na mãe sem dó. Contou-me, ainda, do episódio que tentara meter-se na briga e acabou apanhando também. Era nessas situações que pensava na sorte que tinha, já que meu pai não era desse jeito. Era melhor ser ausente do que violento. Eu acho.

Nossa amizade começou no segundo semestre. Sempre que podia, Grover fugia da prisão que ele chamava de casa e corria para o parque na frente do meu apartamento e ficávamos lá conversando sobre tudo.

Engraçado. Lembro-me até qual fora o último assunto que conversamos. Grover tivera um problema romântico com uma garota, acho que se chamava Juniper, que envolvia um pai raivoso. Ou seria um ex-namorado?

Resumindo: Tivemos uma amizade promissora por um ano. Era o único amigo que eu tinha e ficávamos juntos nos intervalos das aulas, rindo e conversando.

Ir à escola começou a ser legal.

Até que ele se matou.

Ah, desculpa, não devia ter dito tão subitamente. Eu sempre me esqueço que nem todo mundo gosta dos fatos vomitados na cara. Passar por isso pode ter me deixado um pouco ranzinza.

Estava chovendo.

Sentava-me à frente de minha escrivaninha, provavelmente fazendo o dever passado pelo professor. Interessante como os detalhes pipocam em minha mente. Estava estudando história, "Guerra de Secessão". Girava a caneta entre os dedos, tentando me concentrar, quando meu celular tocou. Alcancei-o e vi a foto do meu amigo na tela, fazendo careta para mim. Atendi quase que imediatamente.

— Perseu?

Verdade, verdade, outro detalhe importante. Grover era a única pessoa no mundo que não me chamava pelo apelido nem pelo nome, Perseus, mas de Perseu. Gostava de engolir o s final, como uma forma de protesto.

"Por que seu nome está no plural? Você, por acaso, é duas pessoas?".

— Diga, Grover.

Ouvi sua respiração pela chamada. Estava pesada e isso me deixou preocupado. Ele levou alguns segundos para responder e, instintivamente fui à porta de meu apartamento.

— É... Perseu... Meu pai, ele...

Eu sabia o que tinha acontecido só dele mencionar o pai.

— Grover, fique calmo.

— Eu acho, eu acho, que isso é tudo culpa minha.

— O quê?

— Se eu nunca tivesse nascido, minha mãe não estaria presa com esse cara.

— O quê você está sugerindo, Grover?

— Eu sou culpado. Minha mãe apanhou de novo e... Perseu, ela não acordou até agora.

— Grover, não pense nisso.

— É tudo culpa minha, cara. É tudo culpa minha. É tudo culpa minha. É tudo culpa minha.

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Então eu ouvi, no fundo, um som que me aterrorizou. Pelo que compreendi, Grover alcançou uma gaveta próxima e agarrou um objeto metálico, que fez um estalo.

— Grover, o que foi isso?

— É tudo culpa minha.

— Grover, não faça nada estúpido.

— É tudo culpa minha.

— GROVER, NÃO FAÇA NADA ATÉ QUE EU CHEGUE AÍ!

Agarrei o agasalho jogado no sofá, abri a porta e me atirei na rua, correndo o mais rápido que podia. Mantive, o tempo todo, o celular no ouvido, tentando acalmar o meu amigo.

Ele não podia fazer aquilo. Não podia. Quando a escola começou a ser suportável, ele iria embora? Não. Não. Não.

Estava chovendo.

— É tudo culpa minha. Vou fazer o que é certo. Vou consertar isso.

— Grover, escuta, você não é responsável por nada disso!

— Você não entende, Perseu, é tudo culpa minha.

— Grover, por favor, não faça nada até-

PÁ!

Parei.

Em seguida, ouvi um "TUM!", como se algo desabasse ao chão. Paralisei-me, enquanto fitava a cidade embaixo da chuva.

Não. Não. Não.

Depois de alguns segundos estático, consegui dizer:

— Grover?

Nada, nem mesmo o som de sua respiração.

— GROVER!

Coloquei o rosto entre as mãos e as lágrimas saíam sem que eu pudesse controlar. Misturavam-se com as gotas da chuva que caía sobre minha cabeça, encharcando minhas roupas. Meus olhos, agora vermelhos, doíam, e eu continuava repetindo a mim mesmo "Pare de chorar", "Pare de chorar", "Pare de chorar".

Soluçava alto. Tentei pensar em momentos felizes, mas tudo que vinha à minha cabeça era Grover. No seu maldito jeito de rir, no seu maldito modo de andar, e na maldita amizade que eu não suportaria perder.

Gritei. Gritei o mais forte que podia.

Queria tê-lo salvo.

Permaneci ali, debaixo da chuva.

Sozinho.

...

Com um estalo, voltei a minha atenção para a escola.

Ainda era o primeiro dia de aula em Nova Iorque e o sinal de saída havia batido há alguns minutos. Acompanhei o fluxo de alunos até meu armário, onde deixaria meu material e partiria para casa.

E Annabeth estava lá.

— Ei, você pode me ajudar novamente? Esse armário não vai com a minha cara.

Assenti fracamente, ainda saindo do transe de minhas memórias, e refiz o truque de mais cedo.

— Obrigada, er-

— Percy.

— Ah, é mesmo, Percy. Deriva de quê?

— Perseus.

— Perseus? Por que seu nome está no plural? Você, por acaso, é duas pessoas? — e riu. Ela estranhou que eu não tenha acompanhado sua piada, e expressou indignação. Cutucou minha testa com o dedo indicador e continuou — É educado rir quando uma dama faz um comentário como esse, sabia?

Fiquei em choque. Depois de alguns segundos, consegui formular uma resposta.

— Ah, desculpe-me. É que você me lembrou um amigo meu.

Ouvi, então, uma voz ecoar pelo corredor e, depois de distinguir um "Vamos Annabeth!", a loira respondeu, acenando para o alto. Olhou para os meus olhos e disse:

— Até amanhã, Perseu.