Sons vindos da porta me acordam. Levanto meio grogue, sentindo a marca do travesseiro na cara e a bochecha doendo onde o fone de ouvido ficou embaixo. Meus olhos vagueiam o quarto, tentando situar-me.

Ok, meu quarto. Minha casa. Nada de garotos gostosos sem camisa no meu lado. Só o habitual.

Enquanto praticamente me arrasto até a porta, que continua sendo socada impetuosamente, as lembranças vem aos poucos, e chego até a procurar um buraco no chão para me jogar dentro. Mordo o lábio inferior, e destranco a porta.

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Minha querida mamãe, Lola, é quem estava socando a porta. Exibe um ar cansado, e uma ruga entre as sobrancelhas, enquanto me encara séria.

— Está tudo bem com você, filha?

Pisco aturdida para a sua pergunta, para o céu noturno que se exibe do outro lado da janela, e principalmente, para a luz do lustre, que agride impetuosamente minha visão.

— Hã, sim? Por que não estaria?

Ela suspira, e passa a mão pelos cabelos.

— Jimmy disse que você voltou de tardezinha. Sozinha.

Dedo duro. Não que eu pudesse culpá-lo.

— Pois é, eu e a Calli meio que brigamos — então ela forma um arco com suas sobrancelhas, incrédula: eu e Calli nunca brigamos — mas não foi nada demais — acrescento rapidamente, com o intuito de acalmá-la, e é exatamente isso que acontece.

— Bom, vocês vão se resolver logo, com certeza. Ela era a segunda pessoa que você mais brincava quando era pequena.

— E quem era a primeira? — Pergunto estupidamente, e arrependo-me imediatamente. Mamãe exibe um micro sorriso, e solta uma risadinha.

— O Eric. Vai dizer que não lembra?

Estremeço por dentro. Era verdade, se eu fosse olhar para trás, em retrospectiva da minha vida, Eric estava presente em quase todos os momentos. Se não todos. Éramos realmente peritos em primeiras vezes juntos. Mais do que eu gostaria de admitir.

— Hnm, é, você tem razão. — Desconverso, pouco à vontade. Tento mudar de assunto. — Eu meio que peguei num sono, sabe, — aponto para minha barriga e faço uma careta — cólica.

Mamãe abre a boa em um pequeno “O”, e acena compreensivamente. Nós, pobres mulheres, sabemos como a cólica é terrível, facilmente confundida como uma maldição.

— Certo. Seu pai está preparando o jantar. Você vai querer se juntar a nós?

Hesito um pouco, mas acabo consentindo. Apenas peço alguns minutos para passar uma água no rosto. Ela assente e sai do quarto.

Volto para dentro do meu quarto, e antes que possa me impedir vou até a janela e levanto a cortina discretamente.

Lá está ele, trocando de roupa. Embora esteja ciente de que é errado ficar espiando de forma tão sorrateira, ainda mais alguém se vestindo, apesar de que não fosse nada que eu já não tivesse visto, sou incapaz de desviar o olhar. Fico lá, o observando se mudar, um deleite para meus olhos.

Então ele me vê. Olhos travando uma batalha, onde ninguém se rende. Vejo paixão em seu olhar, e desconfio que o meu não esteja muito diferente. É impossível fazer outra coisa senão desejá-lo, e querer terminar o que começamos na casa da Dafne.

Mas cedo demais, Guilherme passa pela porta, interrompendo nosso momento pela segunda vez naquele dia. Nunca antes senti tanta raiva dele. Eric me olha pela última vez. Apelo? Desculpas? Promessas? Seu olhar parece transmitir tudo isso, e muito mais.

Bem que dizem, os olhos são as janelas da alma. E embora eu pense que a boca seja a porta, um olhar pode dizer mais que mil palavras.

Largo a cortina antes que Guilherme me veja. Não quero mais um motivo para sentir vergonha na presença dele.

Vou para o banheiro, seguindo o roteiro original. Passo uma água em meu rosto e fico mais desperta. Fico um bom tempo me encarando no espelho, analisando-me.

O que Eric havia visto em mim, afinal?

Uma garota com estatura mediana, pouca coisa mais alta do que algumas. Grandes cachos dourados, diariamente escondidos pelo poder da chapinha. Olhos redondos, grandes e dourados, com longas pestanas escuras os emoldurando. Meu rosto era oval, porém anguloso nos lugares apropriados. Eu tinha uma boca proporcional demais, coisa que odiava. Não tinha nada que a destacasse, como por exemplo, a boca lindamente exótica da Dafne, carnuda e desejável. A minha era média. Eu era uma garota mediana. Sem nada demais.

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Por que ele continuava a investir em mim, se nem eu conseguia gostar de mim mesma? Não falo só da aparência, mas sim do todo. Eu era terrivelmente chata, falava demais, estava sempre de cara amarrada. O tipo de pessoa que ninguém aprecia. Pode a exceção ter verdadeiro significado na vida real?

Já desanimada com tais pensamentos, saí do banheiro, rumo ao delicioso cheiro de pizza. Só pode significar uma coisa. Papai queimou a comida que preparava, e comprou uma pizza. Mas nem o irresistível cheiro animou meu humor. Meus ombros estavam caídos, e eu não sentia nenhum desejo de mudar a situação.

Quando cheguei à sala de jantar, já estavam todos sentados, apenas me esperando.

Juntei-me a eles, embora sem nenhum vestígio de fome. Mesmo assim tentei ao máximo possível participar da conversa, embora Jimmy fosse frio comigo, e eu nem tivesse tocado na mesma fatia de pizza de meia hora atrás.

— Christina, você está bem? — Papai pergunta pela terceira vez. O que eu deveria dizer? A verdade? Que não conseguia livrar meus pensamentos do vizinho que eu deveria odiar? Ou a mentira, como nas outras duas vezes?

A mentira é sempre a mais fácil a ser contada. Mas nunca no meu caso. Eu odiava mentir. E mentia melhor do que ninguém.

— Uma cólica horrível. — Digo com uma careta. Provavelmente seria um ótimo par no palco com o Eric. — Acho melhor eu subir. E tenho um relatório de português para fazer. Com licença.

Fico feliz por não ter mentido na última parte. Eu realmente tinha que escrever sobre o tempo que fiquei com a Caolha, e dá-la ao Eric amanhã.

Após dois olhares preocupados e um magoado, vou para meu quarto. Pego um caderno velho com algumas folhas limpas, e começo a escrever. Não sou nem a pior, nem a melhor escritora. Ser a melhor é trabalho da Bea, e o pior, do Daniel. Sou mediana. Como sempre.

Estou concluindo a última linha, quando ouço um barulho contra minha janela. Inquietação e agitação competem dentro de mim.

Vou até ela, e ergo a cortina. Olho para seu quarto, e fico confusa quando não o vejo lá.

— Aqui em baixo. — Ouço-o dizer em tom ameno.

Lá está ele, com algumas pedrinhas na mão, abaixo da minha janela. Sua expressão está esquisitamente séria. Eric nunca é sério.

— Precisamos conversar. — Diz de modo que não deixa escapatória. Nisso tenho que concordar. Há muita coisa que precisamos discutir. Então algo me ocorre.

— Mas agora?

— Por que não? — Vejo seus olhos brilharem em desafio. E repentinamente sei. Estou perdida.

— Ok. — Suspiro. Ainda bem que havia dormido um pouco à tarde. Ainda sentia-me esgotada pela noitada. — Fique aí, já vou descer.

Vejo-o concordar. Volto para o interior do meu quarto. Pego meu celular, cuja bateria é menor que um átomo. Era passado das oito horas. Não tinha jeito dos meus pais me deixarem sair a essa hora. Só me restava uma alternativa.

Sair sorrateiramente. Vulgo, sair escondida.

Como a noite estava quente, não troco de roupa, embora saiba que não é só o tempo o motivo de não tirar “a” blusa.

Vou esgueirando-me até o andar debaixo. Jimmy já havia ido para seu quarto, eu ouvi quando fechou a porta há uns vinte minutos. Mamãe e papai estavam no sofá, aconchegados, assistindo a um filme. Procurei fazer o mínimo de barulho possível, e em instantes estava do lado de fora da casa, sem ser notada.

Mas quase estraguei tudo com um grito de susto, quando Eric chegou por trás. Por sorte cobriu minha boca, evitando alguns estragos. Dou um tapa nele, irritada.

— Babaca. — Resmungo. E tudo o que ele faz é dar um sorriso convencido. Argh.

— Eu sei que você tem um fetiche por babacas.

— Não seria por idiotas? — Ergo uma sobrancelha.

— Pelos dois. — E pisca.

Agora que a adrenalina havia passado, comecei a questionar-me, enquanto passava as mãos pelos braços, inquieta. Eric pareceu perceber meu nervosismo.

— Então, vamos?

Fito-o desconfiada.

— Vamos aonde?

— Na praça, para podermos conversar melhor.

A principio fico relutante. A ideia é ridícula, muito imbecil. Mas tê-lo lhe olhando desse jeito, juro que ninguém sã resistiria.

— Ok. — Acabo cedendo.

Seu rosto se ilumina como uma manhã de Natal.

Caminhamos em silêncio até a tal praça. Fico extremamente alegre e desconfiada por sermos os únicos ali. Mas então minha atenção é desviada para um vagalume, que perambula por ali. Fico hipnotizada, ávida por mais. Quando me aproximo, ele foge, sem deixar rastros. Ignoro a decepção enquanto viro-me para Eric, que observava a cena com ar divertido.

— Ele é lindo, né?

— Meu ideal de beleza é outro. — Seus olhos percorrem toda a extensão do meu corpo, agora arrepiado. Sem palavras, diz qual é o seu ideal de beleza.

Coro, não de vergonha ou constrangimento, mas de prazer.

Então uma ideia boba e bastante infeliz me ocorre, resgatada dos tempos de outrora.

— Venha me pegar, Babão.

E saio correndo, com a certeza de que ele está logo atrás. Brincávamos disso quando mais jovens. Eu o perturbava com “Babão” e ele devolvia um “Piradinha” bastante irritado, enquanto corria atrás de mim. Assim como tudo no universo, esses apelidos tinham uma origem, uma história.

Apresso os passos, embora meu desejo não seja fugir, nem de longe. Apenas instigo a adrenalina que corre solta tanto no corpo quanto no seu.

Sinto-o se chocar contra mim, repentinamente. Rio, uma risada espontânea e agradável. Seus braços me envolvem, e tudo parece mágico, até que me desequilibro, e piso numa, num, hnm, buraco?

Espera, cadê o chão?

Simples, não tem.

Todo meu corpo é puxado para essa falha do chão. Eric vem junto, surpreso demais para qualquer outro movimento. Sinto-me cair, nós dois caindo juntos. Até que atinjo algo molhado.

Água?

Afundo, e então emerjo.

Respiro ofegante. Logo sinto um par de mãos em mim.

— Você está bem? — Ele parece genuinamente preocupado.

— Acho que si-sim. — Estremeço, enquanto olho para cima. Vejo a lua, que parece rir da minha desgraça. Cretina.

Não creio nisso. Eu caí no velho poço da cidade, praticamente um patrimônio público. Acho que sou o ser mais azarado do continente.

Fecho os olhos com força, lembrando de que o poço tem uns cindo metros, impossível de escalar. O único jeito era pedir ajuda.

Droga. Droga. Droga.

Meu primeiro intuito é pegar meu celular, então me lembro de que o deixei em casa.

Praguejo algumas maldições, até que o sinto puxar-me contra si.

— Calma, — diz enquanto afaga meus cabelos, agora molhados — vai ficar tudo bem, você vai ver.

Prego o olhar na água que alcança meu peito. Não quero que ele veja o quão desesperada estou.

— Vai ficar tudo bem uma vírgula! Meus pais vão me matar!

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Ok, isso foi definitivamente atitude de alguém desesperada.

Eric segura meu rosto entre suas mãos. Olha bem dentro de meus olhos.

— Eu disse que vai ficar tudo bem. Entendeu? Confie em mim, vou cuidar de você.

Meu lábio treme, e acabo concordando. Vou para longe dele, para o canto do poço.

— Você pelo menos tem um celular? — Pergunto trêmula.

— Ele molhou. — Responde. Fecho os olhos com força. Sinto-o aproximar-se de mim.

— Eric?

— Hnm? — Sua respiração roça em minha nuca.

— Quando a gente sair desse poço eu vou te matar.

— Pode ser no meu quarto? Mais especificamente na minha cama? Ai!

Ele esfrega o local onde o atingi com um tapa.

— Isso é tudo culpa sua! Se não tivesse me chamado até aqui, nada disso estaria acontecendo! Ou melhor, se não tivesse ido dançar comigo naquela maldita festa!

— Então você se lembra? — Pergunta irônico.

Estreito os olhos.

— Espera aí, você se lembra?

Se está culpado, não demonstra, enquanto finge analisar as unhas bem cuidadas.

— De cada mínimo detalhe.

Resisto ao impulso de socá-lo.

— Você disse que não se lembrava!

— Eu não queria te assustar.

— Argh. — Resmungo mais um pouquinho, e fico de costas para ele. Mas Eric é o rei da persistência. Suas mãos se alojam em meus ombros.

— Eu não fiz nada que você não quisesse, sabe disso.

O pior é que sei. É verdade. Tudo que fiz eu quis, e quis até o que não foi feito.

— Christina, olhe para mim. — Fecho os olhos com força e balanço a cabeça, em negação. — Olhe para mim.

Então sou virada, de modo que fico de frente para ele. Mas permaneço de olhos fechados.

— Olhe. Para. Mim.

Então olho. Abro meus olhos e ele enche minha visão.

— Agora responda. Você me quer?