O Livro Da Bruxa

Armaduras


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Convidei-a para almoçar num restaurante de frente para o mar.Era um dia especial,e eu queria um almoço à altura.

Quando entramos no restaurante,faltavam alguns minutos para o meio-dia,e poucas pessoas estavam almoçando naquele horário.

O maître nos recebeu e indicou uma mesa com excelente vista da praia.

Um garçom trouxe os cardápios e o antepasto.Pedi água e dois cálices de vinho branco enquanto escolhíamos no menu.

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Quando o vinho chegou,brindamos à nossa viagem.

-Fico impressionado com a forma como você encara a vida-comentei-Estou aprendendo mais hoje do que nos últimos dez anos.

-É simples.Basta ver cada situação por mais de uma perspctiva...É só uma questão de treino-ela disse,modestamente.

Peguei uma margarida do arranjo de flores que enfeitava nossa mesa.

-Quero oferecer-lhe esta flor como agradecimento pelo maravilhoso dia que você está me proporcionando.

-Obrigada...

Ela ficou algum tempo olhando para o presente.

-Esta flor,por exemplo.Você estudou botânic,não é?-perguntou.

Não entendi a súbita mudança de assunto.

-Botânica?Estudei no colégio,mas faz muito tempo.Não me lembro mais nada-justifiquei.

-As plantas são seres vivos,e as flores são seus órgãos reprodutivos,sabia?-perguntou.

Enquanto eu tentava entender aonde ela queria chegar,ela continuou olhando para a flor com uma expressão divertida.

-O que você acha de alguém que arranca o órgão sexual de outra espécie e o oferece como presente?-perguntou,recriminando-me.

-Nossa!Nunca tinha pensado nisso!É terrível!Nunca mais vou dar flores-exclamei.

Olhei para o enfeite de flores sobre a mesa e imaginei uma noiva carregando um buquê de órgãos genitais.Não pude deixar de riri do absurdo.

A bruxa pegou um pedaço de pão e começou a passar manteiga nele.

-Não quis estragar o seu presente,apenas treinar um pouco mais ver o mundo por um ângulo-disse.

Ela colocou um pouco de sal sobre a manteiga.

-Quanto a nunca mais dar flores,é um exagero de sua parte.Elas são maravilhosas e alegram nossa vida.Adoramos receber flores.Para resolver o problema,basta presentear com flores plantadas,e todos ficarão felizes,incluindo a plantinha.

-Você adora me solapar,não é?

-Solapar é um conceito interessante.De onde você tirou isso?-indagou,interessada.

Comecei a contar uma longa história.

-Quando estava na escola de medicina,eu e uma amiga adorávamos um joguinho que batizamos de solapagem.Tínhamos descoberto que a palavra"solapar"significa minar,arruinar,demolir...E este era exatamente o objetivo da brincadeira.

Fiz uma pausa para tomar um gole de vinho.

-Funcionava assim:quando um de nós contava algo que havia feito ou pretendia fazer,o outro ouvia com grande atenção,procurando por um ponto vunerável que pudesse demolir toda a estrutura,como você fez ao dizer que as flores são os órgãos sexuais das plantas.Quando achávamos o ponto,disparávamos a observação demolidora.Sempre que isso acontecia,ríamos muito e comemorávamos a solapagem.Acho que nosso prazer era comparável ao das crianças que fazem castelos de areia e depois esperam ansiosamente a maré subir e desmanchá-los.

Ela me ofereceu o pedacinho de pão com manteiga que havia preparado.Aceitei o mimo.

-Eu estava com saudade da brincadeira de solapagem.E hoje descobri a mestre suprema desse jogo-comentei.

-Demolir nossos castelos mentais permite-nos evoluir,pos,quando um é derrubado,podemos construir outro melhor com a experiência adquirida.

-É verdade.Um professor me disse,certa vez,que só estamos prontos para fazer algo no momento em que terminamos de fazê-lo,pois é apenas nessa hora que conhecemos todas as dificuldades.

Ela começou a preparar outro pedacinho de pão.

-Por isso é importante construimos de demolimos nossos castelos.Precisamos abandonar nossas certezas para podermos crescer.P problema é que achamos as mudanças assustadoras.Sair da rotina nos deixa expostos e vuneráveis-comentou.

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De repente,ela interrompeu o que estava fazendo e olhou para dentro do restaurante.

-Veja,lá está uma amiga que vive enfrentando esse problema-disse.

Voltei-me rapidamente,mas não vi ninguem.Imaginei que a pessoa tivesse passado antes de eu me virar.

-Quem era?Não consegui ver-reclamei.

-Não consegue ver porque não quer...Ela ainda continua lá-disse,sorrindo.

Tornei a olhar.Não havia ninguém na direção apontada,apenas algumas mesas vazias e um enorme aquário no fundo do restaurante.Achei que ela estivesse brincando comigo.

-Desculpe-me por ser um péssimo aluno,mas ainda não consegui encontrá-la.Ela é invisível?-perguntei.

-Venha comigo.Vou lhe mostrar!Ela se levantou,pegou-me pela mão e levou-me até o aquário.

-Veja!Aí está eça-disse,apontando para uma enorme lagosta que caminhava entre as pedras do fundo.

Minha cara de interrogação deve ter sido tão expressiva que ela começou a explicar antes de qualquer outra manifestação de minha parte.

-A lagosta-disse-,diferentemente da maioria dos animais,possui o esqueleto do lado de fora do corpo.Sua carapaça é uma armadura que a protege das agrssões do mundo.Semelhante aos cavaleiros da Idade Média,dentro de sua armadura ela é praticamente inexpugnável.

Ela tocou de leve o videro,como se estivesse acariciando o crustáceo.

-Nós também desenvolvemos uma carapaça semelhante à lagosta-continuou.-Estabelecemos padrões e os utilizamos para nossa proteção.A única diferença é que nossa armadura é feita de rotinas e preconceitos.

-Por exemplo?

-Crenças do tipo:devemos sempre seguir o grupo;quem não frequentou a escola não sabe nada;o trabalho tem que ser desagradável;as pessoas separadas são infelizes;é melhor ser pobre com saúde do que rico e doente;e assim por diante.

-Com este ´ltimo eu concordo.Com certeza é melhor ser pobre com saúde do que rico e doente.

-Acho melhor ser rica com saúde do que pobre e doente-ela retrucou,séria.

Levei quase dois segundo para perceber o jogo de palavras.Quando entendi,desatei a rir.

-Você tem razão,é muito melhor-admiti,ainda rindo.

-Este é um exemplo típico de nossos padrões mentais.Parece que temos a obrigação de encontrar sempre um aspecto ruim para compensar algo que acreditamos ser bom.Isso são distorções de nossa cultura.Só os sofredores entrarão no reino do céu é o maior disparate que já ouvi.Deus não quer assistir ao sofrimento de Sua própria criação.Ele quer que sejamos ricos,com saúde,belos,inteligentes,justos,felizes e tudo maravilhoso que pudermos imaginar.Fica a nosso critério estabelecermos nossos próprios limites.

Ela tocou novamente no vidro do aquário.

-Somos iguais a esta lagosta:criamos uma carapaça para nos proteger,mas ao mesmo tempo limitamos nosso espaço para crescer...Para crescermos é necessário aprender sempre novos números no trapézio,dar saltos mortais no escuro,criar brincadeiras.O mais triste é que muitas pessoas só descobrem isso quando chegam ao fim da vida.

-Como se resolve isso?

-Da mesma forma que a lagosta.

-E como ela o faz?

-Quando sente que a carapaça está muito apertada,ela simplesmente a abandona.

-Parece fácil...para uma lagosta-murmurei.

-Não é fácil,não.Sabe por quê?

Balancei a cabeça,revelando minha ignorância sobre o assunto.

-Primeiro porque é bastante complicado sair da carapaça antiga.Depois,porque,quando a lagosta abandona sua armadura,torna-se vunerável e exposta.Qualquer peixinho pode mordia-la sem dificuldade.Imagine então como ela deve se sentir em relação aos grandes predadores...É um período de risco e angústia que dura bastante tempo,até a superfície de seu corpo endurecer e formar uma nova proteção-explicou.

-Não sei se estou pronto para arriscar ser devorado como nossa amiga aqui-confessei.

-O risco faz parte do processo de crescimento-a bruxa sentenciou.

Fiquei em silêncio observando a lagosta.

A bruxa olhou para mim.

-Em seu caso,seu proteção está no fato de você acreditar que pode passar a vida contando histórias aprendidas pela experiência dos outros.Como disse,vim ajudá-lo porque está na hora de se soltar e partir para suas próprias viagens.

-Tomara que não existam peixes muito grandes e famintos por perto-declarei.

-Com certeza eles existem...mas você ira sobreviver.Venha,vamos voltar à nossa mesa e pedir o almoço.

-Tudo,menos lagosta!-gritei.

Ela riu,pegou-me carinhosamente pela mão e conduziu-me de volta à mesa.