LYNN

- O que queres dizer com isso?- perguntei, com um aperto no coração.

Dajan desviou o olhar, como se pensasse no quanto era supostamente correto contar-me.

- Imagina que um cão abandonado é salvo e levado para casa de um homem. Este homem passa a tratar dele, de uma forma com uma quantidade de carinho que o pobre animal nunca tinha visto. Começa a surgir uma corrente entre os dois: uma ligação de respeito e amizade. Até que o dono coloca-o numa arena, em frente de um outro cão. Uma campainha toca mas nenhum dos animais se mexe. Aí, o nosso amigo ouve o seu dono a gritar-lhe para matar o outro. O pobre não queria atacar o da sua espécie, já que o outro parecia inofensivo. Ele sabia que estava errado. Mas era uma ordem do dono. Era uma ordem de quem o tinha salvo. Uma ordem que ele não podia recusar, porque aquela ligação entre os dois obrigava-o a fazer tudo para pagar a hostilidade do homem. E então, o cão atacou. E matou.

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Perguntei-me onde iria parar aquela linha de pensamento. Era estranha e até algo ridícula. Aproximei-me mais da secretária, esperando mais explicações.

- Não sei se conheces a existência de luta entre cães. Não é algo bonito de se ver. É uma forma desonesta, ilegal e parva de se ganhar dinheiro. E, acima de tudo, é uma atitude desumana para com os animais. Mas é viciante. E a ligação que o obrigava a matar o “irmão” fortalece e continua a fazer com que ele ataque e ganhe as lutas. O cão já não consegue parar, já é tarde de mais, já está demasiado envolvido. A única opção que lhe resta, se ele não consegue viver mais naquela situação, é morrer de forma justa: desistir de atacar numa luta e morrer à merce de um seu “irmão”, da mesma forma como ele matou outros.

- Desculpa, mas não te estou a perceber.- confessei.

- Nós somos o mesmo que o cão. Por certas razões envolvemo-nos com o “dono”, com as pessoas erradas, e acabamos por estabelecer ligações. Quando acordamos para a realidade, já é tarde. Já fizemos muita coisa que não devíamos fazer, coisas imperdoáveis. E tudo por causa da estúpida ligação.

Baixei o olhar, recusando-me a fitar a face de dor que se transponha na dele.

- E, quando a culpa não te quiser deixar, só te resta a morte. No nosso caso não numa luta de cães. Mas um precipício suficientemente alto ou uma corda apertada… acaba com os nossos problemas de vez.

Saltei da minha cadeira:

- Não!- gritei.

Dajan encarou-me, sobressalto com o meu súbito elevado tom de voz.

- A morte não ajuda em nada. Temos de resolver as coisas por nós. Tenho a certeza que tens amigos e familiares que te podem ajudar….

-… Não tenho ninguém.- interrompeu-me.

- Tens-me a mim!- gritei.- Pode não parecer muita coisa, mas eu quero ajudar-te a ti e a todos os que estão envolvidos nesta situação! Sei que conseguiremos!

- Isto não é joguinho de bonecas que pudemos parar de jogar assim que quisermos!- gritou.- Isto é a máfia!

Colocou a mão à frente da boca, como se arrependido do que tinha dito no meio da ira. Máfia? De onde tinha eu ouvido tal designação?

- Agora já sabes.- suspirou.- Nós fazemos parte de uma rede ilegal de negócios. Tráfico de armas, prostituição, droga, espionagem… somos nós que controlamos tudo.

- Como consegues viver?- gritei.

Virou-se de costas para mim, como se envergonhado.

- Não vivendo, apenas me limito a sobreviver. Retirei todo o prazer da vida, todo o sentimento, e apenas me limito a comer, beber e a cumprir ordens.

- Mas mereces melhor…- sussurrei.

- Não digas isso. Eu não mereço. Já roubei, já menti, já adulterei, já matei. Por diversas vezes. Fui amaldiçoado e sou castigado a viver assim.

Levantei-me e dirigi-me para perto dele. Agarrei-o pelo colarinho e obriguei-o a encarar-me.

- Tu não és mais que um cachorro frágil e abandonado. Viste bondade no teu “dono” e iludiste-te. Só precisas de alguém que salte para dentro da arena e te salve, que te leve para casa e que te trate como mereces.

Larguei-o.

- Nem que seja eu esse alguém.- disse-lhe, determinada.

- Se eu sou um cachorro frágil então tu não passas de uma flor pequena e ingénua.- contrastou.- Uma flor que nem sabe pegar devidamente numa arma.

Desci o olhar até encontrar uma pequena pistola num coldre axilar. Sem permissão alguma, retirei-a do seu sítio e manejei-a. Rapidamente Dajan retirou-ma.

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- O que pensas que estás a fazer?- perguntou-me.

- Eu posso aprender!- exclamei, confiante.

Arrumou a arma numa gaveta e fechou-a à chave. Não vi onde a colocou. Parecia determinado a separar-me do objecto.

- Não é algo em que possas tocar.- disse-me.

- Porque não? Tu tocas.

- Porque as minhas mãos já estão manchadas de sangue. As tuas ainda estão puras. Eu não te quero manchar, nem a ti nem à tua inocência.

Fechei a boca, tentando, em vão, manter o meu coração palpitante calado. Enquanto isso, ouviu-se um bater na porta:

- Chefe, temos novidades. Podemos entrar?- ouviu-se uma voz masculina.

Dajan fitou-me, nervoso.

- Esconde-te debaixo da secretária!- ordenou-me.

- Ahn?- perguntei, sem perceber. Demorei segundos a analisar a ordem e a enojar-me.- Nem penses! Isso deve estar cheio de pó aí em baixo.

- Já!- gritou, assustando-me. Sem mais desculpas, dirigi-me, lentamente, para debaixo do móvel. Depois de perceber que era imaculado de pó, ainda reclamei:

- Sabe-se lá o que já fizeste aqui em baixo.- arrepiei-me, enquanto imaginava as mil possibilidades.

Ignorando-me, sentou-se na cadeira, a poucos centímetros do sítio onde eu me escondia. Achei embaraçoso olhar para as pernas dele (por algum motivo) e tentei encontrar alguma teia de aranha (o que me meteu ocupada).

- Entra!- ordenou Dajan.

Aí, um alvoroço entrou no escritório. Do pouco que ouvi, reconheci o riso histérico de cerca de cinco mulheres e os passos pesados de botas de homens.

- Para que são as prostitutas?- perguntou Dajan.

- Viemos festejar mais um negócio bem-sucedido.- respondeu um.- Também quer uma, Chefe? A governanta confirmou-me que todas “sabem o que fazem”.

Por algum motivo a ideia do negro com uma mulher da vida não me agradava. Fazia o meu coração bater de dor. Felizmente, a ideia também não parecia agradar Dajan, que mudou rapidamente de assunto:

- Conta-me acerca do negócio.- pediu o “Chefe”.

- A mercadoria tem-se vendido muito bem. O seu plano, como sempre, foi de génio. As pessoas estão cada vez com mais medo e o medo facilita-nos as vendas…- relatou outro.

Que caraças de negócio é este...

- É verdade, é verdade.- riu-se o primeiro.- Por isso é que decidimos que merecíamos uma folga esta noite. As meninas vão-nos ajudar a relaxar.

As raparigas riram-se, ele acrescentou:

- Mas, ainda vamos festejar outra coisa… o nascimento de um novo “Chefe”.

“O quê?”, pensei. Ouvi um som metálico e Dajan levantou-se, de rompante.

- Não façam isso.- aconselhou Dajan, com as mãos no ar.- Percebam que não me conseguem matar. Percebam que se me tentarem matar, estão a assinar a vossa sentença de morte.

Compreendi que o som metálico de há pouco tinha sido o de uma arma a sair de um coldre. “Mas esperem…”, pensei, “Dajan estava desarmado!”. Há menos de dez minutos, ele tinha trancado a sua única arma numa gaveta… O que vai acontecer?

- Devagar “Chefe”, dirija-se a nós e coloque-se de joelhos.- ordenou um.

Dajan afastou-se da secretária. Vendo que a gaveta com a arma não estava muito longe da minha posição, agarrei no meu grampo de cabelo e comecei a tentar forçar a fechadura da mesma. Aparentemente a minha vida na China, a fechar-me em compartimentos, é-me de alguma utilidade…

- Vamos tentar acabar com isto rapidamente, Chefe.

- Foi muito irresponsável de si estar sozinho neste escritório. Onde raios estão os seus “cães”? Costumam estar sempre perto para estragar a festa…

Os “cães” estavam a tentar salvar a vida de Victor, a vida que eu tinha posto em risco. Percebendo que toda esta situação derivava da minha vinda a esta mansão… arrepiei-me. Consegui abrir finalmente a gaveta e, com certa dificuldade, retirei a arma do montão de lixo. Agora só me faltava esperar pelo momento correto… Buda ajuda-me!

- Esperem por mim lá fora!- comunicou o que seria o novo “Chefe”.- Quero saborear este momento sozinho.

Ouviu-se um abrir e fechar de porta.

- Últimas palavras?- perguntou o homem.

- Morre no inferno!- exclamou Dajan.

- Encontremo-nos lá, então!

E aí, levantei-me e apontei a arma ao peito do homem. O tiro foi certeiro e este caiu no chão, enquanto sangue saltava do buraco que fizera.

Dajan aproximou-se de mim, devagar, e retirou-me a arma.

- Lynn?- tentou chamar-me. Não lhe respondi. Ainda fitava o cadáver do homem no chão, o homem que eu acabara de tirar a vida.

- Dajan!- gritou uma voz masculina, enquanto corria na nossa direção. Reconheci-o, como sendo o pálido que há pouco quase matara Victor.- Conseguimos tratar de todos os traidores, exceto um que fugiu. Parece que chamou a polícia. Temos que sair daqui rapidamente!

O negro olhou-me e, com certa cautela e preocupação nos olhos, advertiu-me:

- Foge! Não olhes para trás. Assim que chegares a um sítio seguro e suficientemente longe daqui, espera notícias minhas. Não te mexas desse lugar. Eu irei encontrar-te.

- Dajan, despache-se!- exclamou o pálido.

- Desculpa, mas não te posso levar comigo.- despediu-se, apertando o meu braço, e fugiu.

Eu, ainda petrificada, não o fiz. Talvez porque estava ainda recheada de adrenalina no sangue ou, talvez, no fundo do meu ser, eu culpasse-me do que tinha feito e soubesse que merecia um castigo. Porque, afinal, ainda estava um cadáver à minha frente. Porque, afinal, ainda havia cheiro à morte espalhado por todo o compartimento. Porque, afinal, a vida que eu tinha terminado ainda se esfumava no ar. Porque, afinal, tinha sido eu a puxar o gatilho.

Acho que só despertei quando ouvi as sirenes da polícia. E aí, já era tarde para tentar fugir.

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