Nos meus braços eu via um tempo que já não voltava. Meses. Passara devagar como uma tartaruga, eu confesso. Olhar para trás e queria puder fazer diferente. Não que eu fosse boba de pensar que não seria curiosa de novo. Mas e se eu voltasse com a experiência que tenho hoje? Não pode? Ser tudo diferente?

Na minha nova vida no crack, eu conheci pessoas que viviam uma subvida. Crianças pequenas, adultos que largaram uma família, ricos e pobres, toda a espécie de pessoa. Pessoas que por mais diferentes que tenham sido, hoje eram iguais. Apenas zumbis que vegetavam, sobreviviam de um vício maldito.

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Eu me tornei um deles.

Meus companheiros agora são um estranho grupo. Além de mim, tem Taís, uma mulher de quase quarenta anos, que tem um filho ainda bebê, e uma vida tão desgraçada que não sei o que pensar. Quantas vezes vi sua mãe, que vive em um condomínio de luxo por aqui, aparecer e espancar a própria filha, na esperança que ela largasse esse pesadelo e voltasse a viver? Quantas vezes vi o marido dela, gritar como um doido atrás dela, na esperança de ter sua amada de novo em seus braços, sã e viva?

Perdi as contas.

Tem também o garoto Luigi, de dezenove anos, que saiu da zona pobre da cidade, e não tem família alguma por ele. Sinto pena de sua vida medíocre que por tantas vezes tentou largar por conta própria, mas não temos força para tanto.

E há João e Ana, pequenos anjos no meio desse inferno. Ele tem 10, ela só 6. Ninguém sabe como começaram, mas só o que sei é que são zumbis de uma morte em vida. Inocentes sendo tratados e agindo como criminosos.

Então, ficamos eu, Glória e Marcelo, ambos já transformados em mortos-vivos, sobreviventes porque a vida não quis nos levar como fez com tantos. Já vi garotos mais novos que eu, sendo mortos com um único tiro na cabeça apenas por cocaína. Já vi crianças sendo levadas por policiais como se fossem adultos assassinos. Já vi homens e mulheres morrerem à mingua, por fome ou sede, ou simples abstinência. Estar aqui é uma sorte, ou algo que não tenho controle.

Lembro-me de uma noite em que caminhava perto do shopping, onde eu e Ana estivemos pedindo trocados, com a desculpa de que ela estava morrendo e eu não tinha como leva-la ao hospital, não tinha dinheiro para o ônibus. As pessoas se compadeciam, e eu conseguia dinheiro o suficiente para nós duas. Uma luta pela sobrevivência de um vício que durava horas.

Estava contando os trocados que conseguira quando um garoto de cerca de doze anos veio correndo e levou o dinheiro das minhas mãos.

E começamos tudo de novo.

A rotina de pedir, roubar ou vender por crack já não funcionava. As pessoas já nos reconhecíamos nas ruas, nos negavam dinheiro ou corriam de nós. Éramos tratados como lixo, escórias de uma sociedade rica e correta.

Não éramos mais seres humanos. Éramos animais.

A vida não mais existia. Éramos mortos-vivos. Éramos zumbis andando em busca de suas carnes.

A verdade era que tudo que queríamos era uma ajuda de verdade.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.