Prólogo

O azul-cerúleo se misturava com assustadora maestria ao restante das cores, em pequenos riscos e borrões, que pareciam linhas de luz, dando alguma vida ao quadro mórbido e escuro. Via-se neste a imagem embaçada do fundo do mar, a areia cinzenta, mesmo que um dos mais claros elementos fosse, não chamava atenção ao lado das algas disformes, mas visíveis e reconhecíveis.

O pincel foi largado sem muito cuidado no copo com água, as mãos brancas e com unhas compridas e sem esmalte estralaram, os ombros fazendo um suave movimento para descontrair os músculos tensos. Passou a mão suja de tinta seca pelos cabelos, não se incomodando em arruinar o coque que custara tanto esforço fazer, pela enorme quantidade de fios. Sentia-se exausta.

A garota de longas madeixas azuladas levantou-se, revelando a blusa branca cheia de respingos de tinta, alguns recentes, outros de dias anteriores, dias mais felizes. Quase que arrastou-se para fora do ateliê que montara no antigo quarto de visitas do apartamento. Todos os cômodos do lugar pareciam bagunçados, haviam pequenas manchas de tinta em algumas partes do piso, mas Hatsune Miku não se importava. Nunca se importou.

Ela tinha o costume de correr para atender telefonemas e chamas à porta, todas daquela pessoa. O pensamento quase lhe fez odiar cada marca no porcelanato, mas não conseguiu manter a ideia. Eram os respingos de duas paixões unidas, afinal.

“De qualquer forma”, pensou “ninguém vira mais me chamar de surpresa, não preciso me preocupar com isso, não vai acontecer mais.”

Trancou-se no banheiro, mesmo que estivesse sozinha em casa, retirando as roupas sujas, mas mantendo os cabelos presos, pois a noite já ia alta e não precisava de mais problemas. A água morna caiu-lhe no copo, causando um relaxamento instantâneo. Fechou os olhos para melhor apreciar, mexendo-se para que o rosto também fosse atingido pelo jato d’água.

Era engraçado que todos os momentos que queria esquecer vinham, sem piedade, quando permitia-se relaxar. Seu corpo tremia, não sabia se de estresse, tristeza ou algum outro sentimento, mas a jovem conseguia, de alguma forma, conter as lágrimas. As cicatrizes nos pulsos, resultados de um “surto adolescente”, como chamaram seus pais, pareciam arder, como se ainda permanecessem abertas.

Talvez por isso, ou pelas lembranças que traziam, Miku demorou-se enxugando-as, mesmo quando já não havia sinal de água, como em uma desculpa para admirá-las, embora não precisasse realmente de uma, estava sozinha naquele apartamento, naquele banheiro abafado graças ao vapor. Sua obra de arte no corpo, a melhor expressão de seus sentimentos, duas linhas singelas e levemente mais claras que seu tom de pele. Apenas isso, simples daquela forma.

Foi só por começar a sentir frio que apressou-se em terminar, saiu do banheiro e foi até o quarto, com passos torturantemente lentos, como se gostasse de obrigar seus olhos a se toparem com cada uma daquelas marquinhas coloridas no chão. Vestiu apenas a roupa íntima e um blusão que lhe chegava ao meio das coxas e caiu na cama macia e confortável, já desarrumada, desde a manhã. Puxou as cobertas e os travesseiros, agarrando-se a eles e finalmente soltando os cabelos, jogando as duas presinhas ao chão.

Seus olhos permaneceram abertos, pois ela sabia que fechá-los apenas lhe faria pensar demais e não ajudaria a dormir. Tinha a irreal sensação de estar sendo sugada pelas cobertas, como se tudo a empurrasse, um peso grande demais para ser atribuído somente à gravidade. Sentia-se sufocada e já marcavam 4:30 quando a respiração acelerada, os soluços e as lágrimas deram lugar ao nada.

Havia adormecido.