Quinto Império

Contra os canhões e memórias


Era perfeitamente comum dar com Afonso a passear nas ruas. Afinal de contas, ele conhecia-as quase de olhos fechados...Eram como se fossem as suas veias.

As pessoas de idade, sobretudo os homens que jogavam à sueca nas esplanadas dos cafés, levantavam-lhe a mão como se ele fosse um velho amigo, quando na verdade nunca o tinham visto. Era como se sentissem que ele era alguém de importante sem realmente saberem qual a sua importância. Uma memória breve, uma cara conhecida apenas. Uma pessoa vulgar com cerca de novecentos anos de História.

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Sofrimento, alegria, vitórias e muitas derrotas, eram apenas pequenas palavras para descrever tudo o que tinha passado nestes novecentos anos. E desses, os únicos que ele gostava de recordar eram os da sua adolescência.

Porque o mar... O mar teve uma importância enorme na sua construção da sua personalidade.


Heróis do Mar, nobre povo,

Nação valente e imortal.

Não é irónico? Cantarem os feitos tão corajosos e agora estar assim? Na sua decadência quase previsível?

Ou ele tinha muito azar, ou o raio da profecia estava errada. Qual Quinto Império, qual quê. Os ingleses é que se calhar tinham razão, eles é que tinham sido o Império, não Portugal. Ah, se Camões vivesse no Sec.XXI ia ter imensa vergonha dos seus tão aclamados Lusitanos. Ainda que eles se mantenham fiéis a si mesmo, procrastinando e fechando os olhos aos problemas.


Afonso bufou irritado e colocou as mãos nos bolsos, olhando para a frente enquanto caminhava. Já tinha tropeçado tantas vezes durante a sua existência que tinha aprendido a escolher melhor os sítios por onde andava. Se calhar era por isso que gostava do mar... Lá não podia tropeçar.

Sim, o oceano era de certa forma imprevisível mas... Afonso cresceu com ele e aprendeu a compreende-lo. As marés iam e vinham. Sempre. Sem excepções. Por vezes o oceano tinha uma tonalidade verde perigosa ou azul calma ou pior ainda, cinzenta angustiante... Mas mesmo assim era mais bonito que o castanho da terra tão volátil e disputada. Já o mar era supostamente de todos. Claro sabemos que ele estava a ser hipócrita neste ponto, uma vez que tinha dividido o mundo, literalmente, com António e proclamado seu o mar de todos mas tal como é característica de um típico português: só se fala do que convém e erros não entram nessa categoria.

Depressa as ruas estreitas, quase claustrofobias com casas altas, começaram-se a abrir e revelar um céu muito azul. Coisa rara, visto que durante aquele ano o céu tinha-se mantido muito cinzento, assim como a sua disposição.

Os seus meninos, pequenos poetas calmos e mártires, andavam a revoltar-se nas ruas contra a condição que lhes era imposta. Nada mais magoava o lusitano.

Caminhou quase cegamente até chegar à beira-mar... Como se apenas o cheiro lhe fosse necessário para dar com o caminho. Sem grandes pressas, atravessou a praia e sentou-se perto do mar, quase acarinhando a areia. Os finos grãos escorregavam pelos seus dedos como o tempo, uma sensação sempre igual mesmo que cada grão fosse único. Fazia montinhos aleatórios com eles, como pequenas acumulações de memórias que quando a maré subisse iam ser devastadas nem deixando sequer rasto.

Bufou irritado e dobrou os joelhos, abraçando-os e apoiando o queixo sobre eles.

Lá ao fundo havia um grupo de adolescentes a jogar futebol... Tinha quase uma vontade louca de ir para lá e jogar com eles, tal e qual fazia com as suas pequenas colónias há algum tempo atrás.

Mas a idade emocional impedia-o de fazer isso.

Fez uma expressão amuada e tirou o cabelo da frente dos olhos.

Saudade.

Aquela maldita palavra que ele mesmo criou e que tanto dizia. Era tão forte que não tinha tradução.

Ele tinha saudade de tanta coisa. Não só dos seus tempos de glória, mas também de todas aquelas pessoas que o fortificaram como nação. Reis, poetas, cantores... Todos eles deixaram a sua marca e partiram. Essa marca era como se fosse feita a ferro quente no coração do português.

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Só já quando o sol se tinha posto é que ele se levantou para regressar. Tinha ainda imenso trabalho para fazer e pouco tempo. O vento do norte era frio e ele arrepiou-se, aconchegando-se melhor dentro do casaco. Mal podia esperar para chegar à sua biblioteca quentinha que cheirava a livros antigos e memórias.

Agora só bastava ter força e fé.


Levantai hoje de novo,

O esplendor de Portugal