Heat-Haze Days

Escada dos sonhos caídos


Acordei sobressaltado na manhã seguinte – ou eu pelo menos desejava que fosse a manhã seguinte. Fiz uma prece silenciosa, para ninguém em especial, apenas para ter uma pequena esperança no meu coração de que o dia tivesse passado. Saí em disparada para a cozinha e...

Crash!

E lá estavam meus pais, novamente brigando e quebrando os móveis.

Não, isso acontece todos os dias. Vamos, Len, corra! O parquinho estará vazio. O prédio estará fechado para investigações policiais. Corra, seu idiota inútil, CORRA!

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E então, obedecendo à minha compreensiva e gentil voz interior, corri o mais rápido que pude em direção ao parquinho que, numa fração de segundo, passou-me pela cabeça que ele não era mais meu e, sim, nosso...

Por mais que eu corresse e corresse, parecia-me que eu não saía do lugar. O vento batia em meu rosto e sacodia descontroladamente meus cabelos, fazendo-os atrapalharem minha visão. Foi então que, num gesto para tirá-los de minha frente, passei a mão em minha bochecha esquerda, onde o corte do dia anterior deveria estar. Nada. Não se preocupe! Aquilo foi só um arranhãozinho!, disse para mim mesmo. Já passou! Então, me forcei a continuar correndo, pois, quanto mais tempo desperdiçasse, maior seria o risco de a menina morrer novamente.

Pois é. Nem eu mesmo acreditava que hoje era outro dia.

Ao ouvir as cigarras, minhas pernas automaticamente desaceleraram, já que eu tecnicamente já havia chegado e, sem mais forças, andei o mais rápido que consegui até chegar até ao centro do parquinho, onde havia os balanços onde tudo sempre começava. Minha visão começou a ficar um pouco turva devido à falta de ar, pontos brancos e pretos surgiam à minha volta. A menina não estava lá. Fechei os olhos e encostei-me no trepa-trepa ao meu lado, usando-o como apoio enquanto recuperava o fôlego. Por um pequenino instante, me senti feliz, mas então me dei conta de que ela morrera. E eu não pude ajudar. Estava tudo se repetindo.

Abri meus olhos lentamente, encarando a areia suja de galhos e folhas aos meus pés. Lágrimas começaram a cair, fazendo uma mancha escura no chão, assim como o sangue dela espirrado na calçada quando a viga de metal a perfurara. Tentando afastar aquelas memórias horríveis, esfreguei meus olhos com força, limpando as lágrimas e, sem querer, arranhando de leve meu rosto com as unhas.

– Droga, droga, droga! Se eu tivesse segurado sua mão...

– Você está bem?

Espantado, olhei para frente. Lá estava ela, na minha frente, viva, os olhos azuis encarando-me com curiosidade e compaixão. Idiota. Essa já é a segunda vez em que ela te encontra chorando, pensei. Então o dia não havia se passado. Talvez eu não a tivesse visto devido à falta de ar e as lágrimas que a seguiram.

– V-Você... – gaguejei, numa mistura de felicidade, raiva e pânico. – Está viva!

– Sim, estou... – ela franziu as sobrancelhas, visivelmente desconfortável com a situação. – Por que não estaria?

Naquele momento, o caminhão vermelho passou correndo na rua.

– Rápido! – gritei. – Começou! – Agarrei-a pelo braço e a puxei através do parquinho, na direção contrária à que havíamos tomado da outra vez. Não podia correr o risco de passar perto daquele prédio, mesmo se estivéssemos do outro lado da calçada. Assim, ignorando seus protestos, levei a garota até a minha escola que, mesmo nas férias, estava aberta para as aulas de recuperação.


O porteiro, entediado, dormia em um desconfortável banquinho de madeira, enquanto um rottweiller conhecido latia e abanava a cauda ao me ver entrar. Eu encontrara o cachorro perdido nas ruas havia quatro anos e, ainda assim, ele tinha a mesma cara dócil de filhote de quando eu o achara. Tive de doá-lo para a escola, já que não tinha condições de manter um cãozinho e ele seria mais útil como cão de guarda na escola do que comigo. Assim, todos os dias eu chegava ao colégio bem de manhã cedo e brincava com ele por cerca de meia hora. Apelidei-o de Cócegas, já que, sempre quando me lambia, fazia-me sentir cócegas. Era um cachorro amigável, mas, ainda assim, não pude evitar sentir certo medo de que ele nos atacasse, já que todos os dias eu presenciava uma morte horrível.



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Mas ele não atacou, e continuei a puxar a menina até a sacada da escola, onde finalmente paramos para tomar ar.


Aquele era, definitivamente, o melhor lugar que uma escola poderia ter. Ficava suspenso atrás da antiga sala de artes, no segundo andar, e era possível chegar lá de dois jeitos: o primeiro, pelas escadas; o segundo, pulando as janelas da sala. Porém poucas pessoas conheciam este lugar. A sala de artes fora mudada de lugar e a sala antiga ficara abandonada. Agora só servia para guardar projetos de crianças que nunca os levaram para casa, cadeiras e mesas quebradas, enfim, todo o tipo de lixo que uma escola poderia ter. Olhei ao redor, perguntando-me se haveria algum tipo de perigo por perto, mas, com um suspiro aliviado, vi que estávamos em segurança.

Ou quase isso.

A névoa de calor estava lá, apoiada em um dos corrimãos de madeira, muito perto da escada, a qual eu e a garota estávamos em frente. Daquela vez, porém, a névoa estava cabisbaixa, o sorriso sarcástico desfeito do rosto e os olhos baixos, o capuz levantado acima da cabeça e as mãos enfiadas no bolso. Estava quase... depressivo. Não desviou os olhos do chão uma única vez e, num sussurro triste, disse-me:

– É inútil.

E então, uma cena, algo que eu nunca imaginaria, passou por meus olhos.

Eu e a menina estávamos naquela mesma sacada, conversando. Bem, éramos nós, mas não nós. Reconheci a névoa de calor assim que meu cérebro processou o fato de aquilo ser uma visão e não a (minha) realidade. Ele estava vestido do mesmo jeito de antes e portava-se do mesmo jeito também: shorts escuros, casaco de capuz preto e um sorrisinho zombeteiro esculpido no rosto. A garota também não era a mesma. Tinha cabelos castanho escuros, usava calça jeans e uma camiseta cor de salmão manchada com várias cores de tinta diferente. Usava um boné branco, com spray colorido passado por cima, virado de lado, o que me fez pensar que ela, naquele mundo, era algum tipo de artista mirim. Ou pichadora de muros.

Ela e o meu outro eu conversavam animadamente, porém eu podia sentir uma espécie de tensão no ar. O rosto dele estava salpicado de suor e a menina se remexia desconfortável perto dele, inclinando seu corpo para o lado, de tempos em tempos. Seus olhos eram verdes. As vozes eram abafadas, então tive que me esforçar para compreender alguma coisa. Tentei me aproximar deles, mas estava imóvel, e não por vontade própria. Finalmente, depois de fazer força e cerrar os olhos, o que sempre me ajudava a me concentrar, consegui distinguir algumas palavras:

– Mas, Len... você acredita ou não em mim? – havia certa preocupação em sua voz, deixando-a tensa.

O sorriso do outro eu – que eu apelidei de Lenny, porque era meu apelido de quando criança – desapareceu de imediato. Ele olhava para os lados desesperadamente, procurando uma resposta que não a magoasse.

– Eu... Eu não sei, Rin. – Lenny suspirou. – Eu até gostaria de acreditar, mas não faz sentido...

Silêncio. De repente, a garota, Rin, puxou Lenny pela gola de sua camisa, aproximando seus rostos um do outro. Suas sobrancelhas estavam franzidas e seus lábios curvados numa careta brava. Lenny encarava-a em uma mistura de espanto e medo.

– E agora? – E então, limitou-se a fechar seus olhos e juntar seus lábios contra os dele.

Ambos – eu e Lenny – nos espantamos naquele momento. Pude sentir a onda de choque transmitida pelo corpo do outro e o calor dos lábios da garota. Eu nunca imaginaria que aquilo fosse possível. Mas este é outro mundo, não pude deixar de pensar, eles provavelmente se conhecem há anos.

E, então, recomeçou.

Os rostos corados se afastaram lentamente um do outro, mas Lenny, porém, afastou seu corpo também. Acabou por pisar no fim do degrau que dava para a escada, desequilibrando-se. Ele tentou se segurar nos corrimãos, mas não conseguiu, o que apenas serviu para impulsioná-lo para baixo. Rin percebeu no último momento.

– LEN! – Ela esticou uma das mãos para pegá-lo, enquanto lágrimas reluzentes deslizavam por suas bochechas, mas já era tarde demais. Lenny caía estrondosamente escada abaixo e tudo o que ela podia fazer era gritar. A garota caiu de joelhos, chorando e gritando para todos e para ninguém. Ela arranhava o chão descontroladamente com grandes e afiadas unhas pintadas de cores neon diferentes, fazendo com que se quebrassem e sangue escorresse de seus dedos. – POR QUÊ?! LEN! ME DESCULPE!

A visão se desfez.

Arquejei ao ver-me novamente em meu mundo, o que assustou a garota que estava comigo. Olhei-a de cima a baixo: olhos azuis, cabelos louros, unhas curtas e descoloridas.

– Seu nome... É Rin, não é?

Os olhos dela se arregalaram e ela andou para trás, exatamente como Lenny havia feito. Previ o que aconteceria em seguida e, em pânico, puxei-a pelos quadris, colando nossos corpos como em uma dança de valsa, os rostos incrivelmente próximos enquanto respirávamos com dificuldade por causa do susto. Ficamos nos encarando por algum tempo, tentando entender o que acabara de acontecer. Por que diabos eu a havia puxado pelos quadris e não por qualquer outro bendito lugar?

Recuperada do choque, Rin empurrou-me e, novamente, andou para trás, sem perceber que a escada estava logo atrás dela. Dessa vez, eu não tinha como ajuda-la.

Ela caiu gritando de terror e eu pude ouvir o barulho de seu corpo se chocando contra os degraus da escada. Então tudo ficou silencioso.

Levantei-me o mais rápido o possível, tropeçando em meus próprios pés, e desci as escadas correndo, ignorando as manchas de sangue ao longo do percurso. Caí de joelhos quando cheguei à base. O corpo de Rin estava completamente desfigurado. O nariz estava quebrado, mechas de seu cabelo empapado de sangue estavam grudadas em seu rosto. O braço direito estava quebrado, torcido num ângulo completamente horrível e as pernas estavam cortadas e cheias de farpas.

Olhei para cima, chorando, para onde a névoa de calor me encarava. Lágrimas escorriam de seus olhos, tão frios e penetrantes, que, por um momento, senti medo de mim mesmo. Ele não pronunciou sequer uma única palavra, mas eu entendi: nada nunca funcionaria, por mais que eu tentasse.

Minha visão começou a escurecer, mas, antes que apagasse, pude ver que a metade direita do rosto de Lenny começava a ser preenchida por sangue, de um corte que eu sabia ter vindo de seu crânio, enquanto seu corpo se deformava por completo.