Stay Alive.

Preto


As coisas não mudaram. O sol já tinha passado do meio do céu há muito e nós continuávamos andando, sempre para o norte, pelos meus cálculos. Minha dor de cabeça parece um martelo, só não me incomoda mais do que o nariz entupido que faz um barulho irritante toda vez que eu inspiro. No começo Hay me lançava um olhar de advertência toda vez que meu nariz fazia o barulho, mas agora já ele desistiu. Diferentemente de mim, ele não parece afetado pelo luta do dia anterior ou pela forte chuva. Sua expressão carrancuda voltou definitivamente, seus passos parecem mais silenciosos ainda, seu cabelo escuro está cheio de lama e grama – não quero nem pensar em como está o meu – e seu corte no nariz está melhorando. Faz alguns dias que eu nem olho para o meu corte na barriga, mas isso é uma coisa boa, quer dizer que ele está bom o suficiente para me deixar em paz. É o suficiente.

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Lentamente o sol percorre o céu e um vento quente sopra, fazendo meus cabelos esvoaçarem. Estou começando a ficar preocupada com o clima, os dias estão muito quentes e as noites começando a ficar frias. Canto músicas mentalmente, para distrair minha atenção da dor e do nariz entupido e também porque não sinto nenhuma vontade de cantá-las em voz alta. Não sinto vontade nem de me mexer, sinceramente. Se eu pudesse dormir e nunca mais acordar, eu faria isso. Mas eu tenho uma família e não posso decepcioná-los assim. Haymitch não anda tão na frente agora, para evitar problemas que já tivemos antes, imagino. Mas ele está tendo dificuldades para acompanhar meu passo. Não porque estou andando muito rápido, pelo contrário, estou muito devagar. Por mais que eu queira e me esforce para ir mais rápido as minhas pernas parecem ignorar o meu comando.

O sol já está bem mais a oeste e eu estou literalmente me arrastando. Hay olha para mim com uma expressão preocupada a cada minuto. Deve estar pensando que eu estou tendo uma recaída e que vou voltar à inatividade a qualquer instante. Tento sorrir para fingir que tudo está bem, mas é impossível. Ele resolve fazer uma parada, apenas para recuperar o fôlego. Nos sentamos perto de um tronco caído, sentar e ficar parada só faz a dor ficar mais insuportável. Me levanto

- O que foi? – ele para por um segundo, sua expressão ainda é ao mesmo tempo carrancuda e precupada.

- Nada – minto – Só uma dor de cabeça, mas já vai passar. Vou dar uma olhada em volta.

- Aquela chuva acabou com você – comentou de um modo seco

Eu abaixei a cabeça e encarei o chão, mas não respondi. Ele sabia muito bem que não tinha sido apenas a chuva. Não entendo como algumas horas ele parece tão compreensivo e em outras consegue ser completamente insensível. Saio de perto em silêncio, mas não vou muito longe. Tento respirar fundo para me acalmar e observo uma pequena árvore à minha direita. Resolvo subir. Ela é pequena e eu chego ao topo em poucos minutos e com apenas alguns arranhões. Estou mais cansada do que o normal e há alguns pontinhos pretos na minha visão. Tento continuar calma. O vento aqui em cima é um pouco mais fresco. Me apoio em um galho e fico de pé, sentindo o frescor do vento no meu rosto. Fecho os olhos e abro os braços, confiando no meu equilíbrio. Sinto o sol e ouço o barulho das folhas balançando ao vento e de alguns tordos cantando. Respiro fundo e abrindo os olhos observo que o caminho a frente é composto por infinitas árvores e desejo saber aonde Haymitch quer chegar. Apesar de ser uma arena, a vista é linda. Em algum lugar imagino ouvir som de água. Queria que o meu distrito fosse bonito assim. Queria voltar para o meu distrito, para minha família. Sinto uma lágrima escorrendo no meu rosto. Recolho os braços e uma mão limpa a lágrima automaticamente. Sento no galho e encolho-me, como uma criança. Cubro o rosto com as mãos para evitar que as câmeras captem meu choro. Sei que tenho que ser forte, mas é muita angústia para um coração. Sinto pena de mim mesma, mesmo sabendo que não deveria fazer isso. Quando retiro as mãos do rosto vejo que um tordo pousou no meu galho. Obsevo ele e depois meu broche, a semelhança é incrível, mas ele voa para longe, sumindo do mesmo jeito que surgiu. Resolvo que está na hora de descer e quando termino percebo o quanto estou mal fisicamente. Meus músculos doem, eu me abaixo repentinamente e faço como se fosse vomitar, mas não há nada no meu estômago para sair. Me levanto tremendo e finjo que está tudo bem.

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Continuamos a caminhar por mais algumas horas, eu acho. Até que escuto o barulho de água ao longe. Não era minha imaginação. Minha garganta seca grita, mas nós temos que economizar o máximo que pudermos. Continuo me arrastando como consigo. Haymitch ainda parece preocupado, mas agora a carranca já está voltando ao seu lugar.

Mais alguns minutos se passam e as coisas começam a piorar cada vez mais. Meu nariz está entupido por completo e eu estou respirando pela boca, minha cabeça dói tanto que não consigo raciocinar. Todos os músculos do meu corpo estão doendo, na verdade. O mundo parece estar girando em volta de mim. Eu não aguento mais.

-Hay – chamo o mais alto que consigo, ou seja, não passa de um sussurro, murmúrio no máximo. Ele não parece escutar. Um desespero toma conta de mim. De repente minhas pernas param de funcionar e eu caio de joelhos. Não consigo enxergar quase nada, minha visão está cheia de pontinhos pretos. Mas consigo perceber que Hay se virou para trás e seus olhos se arregalaram quando me encontraram naquele estado.

A dor é nauseante e eu me encolho. Ele se agacha e segura meus ombros, tentando manter a parte consciente que ainda resta de mim. Posso ver sua boca se movendo, chamando meu nome e falando coisas, mas não ouço nenhum som. Então toda a dor desaparece e os pontinhos pretos tomam conta de tudo.

Eu sinto que não estou realmente apagada. Posso não ver, ou ouvir, mas ainda consigo sentir. Sinto meu corpo deitado no chão, sinto a dor voltando e sinto Haymitch. Posso sentir seus braços me segurando. Até que a sensação vai diminuindo, até sumir totalmente. Eu perco a consciência.

Estou no distrito12. Minha casa.

Estou sentada em um banco. Vejo as pessoas indo e vindo. Algumas vão para as minas, outras para a escola. Cada um tem o seu caminho rotineiro, seu medo rotineiro e seus dramas rotineiros. Vejo rostos tristes e crianças inocentes que sorriem para mim, e aquilo me deixa triste, pois elas não sabem o destino que lhes espera. Eu já fui uma dessas crianças e hoje aqui estou eu. Percebo que estou com o meu broche na mão e que meus dedos o acariciam delicadamente. Me levanto do banco desconfortável e sigo as crianças, mas o broche cai da minha mão. Ao encostar no chão ele brilha e começa a faiscar. Eu grito. A grama começa a pegar fogo rapidamente. De repente tudo é tomado pelas chamas, os adultos correm e gritam desesperados. Eu não consigo me mexer, mas as chamas não me queimam, apesar de queimarem as outras pessoas e o resto do distrito. Todos fogem, menos as crianças. Elas continuam lá, sorrindo ...E queimando.

Eu acordo desesperada, respirando rapidamente. Hay leva um susto, mas parece agradecido por eu ter aberto os olhos. Estou tremendo, apesar de estar suando. Ele encosta a mão na minha testa e sua expressão diz tudo. Eu devo estar queimando. Tentando parecer calmo, ele procura algo útil nas mochilas. Eu fecho os olhos, tentando fazer minha respiração voltar ao normal, mas não consigo. Haymitch lança um olhar preocupado para mim e eu o encaro.

- Estou morrendo – sussurro.