O Vale dos Suicidas

Capítulo 3: O Umbral


Capítulo 3: O Umbral

Pela treva do espírito lancei-me,
Das esperanças suicidei-me rindo...
Sufoquei-as sem dó.
No vale dos cadáveres sentei-me
E minhas flores semeei sorrindo
Dos túmulos no pó.

(Trecho do poema “Lágrimas de sangue”, de Álvares de Azevedo)

Enquanto continuava a caminhar pelo vale sinistro, com o coração aos pulos, o medo abateu-se mais uma vez sobre mim.

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Quando lá chegamos, a paisagem era totalmente escura. Somente dias mais tarde eu aprenderia a diferenciar o “dia” da “noite” naquele local. Quando dia, o vale continuava escuro, porém banhado por uma luz fraca, como que envolta em uma neblina espessa. Não sabia ainda, mas nesse lugar o sol jamais surgia, embora nos aquecesse de muito longe. O lugar é frio. Quase sempre. A noite, com certeza, mostra-se mais assustadora no Vale dos Suicidas. A lua raramente é vista, somente quando cheia e avermelhada. Isso dava-me um pequeno alívio. Mas era raro.

O profundo vale envolto em trevas era composto por deploráveis grutas e cavernas numeradas, que nos serviriam de abrigo. Olhei ao meu redor e percebi que o local era feio, tinha pouca vegetação rasteira, ela lembrava-me os capins e ervas terrestres. Muitas vezes alimentar-me-ia com elas, lembrando amargamente do que comia no passado.

De repente caí: O chão era pastoso, lamacento e escorregadio. Se alguém me tivesse dito algum dia que eu muitas vezes saciaria minha sede bebendo esse lodo, jamais acreditaria. Certamente o chamaria louco. Agarrando-me a uma árvore retorcida não muito alta, levantei-me dolorida e em vão tentei limpar a sujeira de minha roupa. As poucas árvores presentes nesse lugar são todas assim: baixas, retorcidas e de troncos grossos.O implacável silêncio foi novamente quebrado, dessa vez surpreendentemente, por uivos que vinham de algumas cavernas próximas a mim. Provavelmente algum dementado de tanto sofrimento. Com o susto, dei um pulo e respirei em longos haustos, prestes a cair no choro novamente. Mas aí dei-me conta de como o ar ali era extremamente pesado, asfixiante a ponto de sufocar-me algumas vezes, e isso distraiu-me temporariamente.

Então, eis que começou a chover. A tempestade chegou assustadora, mas ao mesmo tempo era como se ela viesse para aliviar, limpar as trevas ali existentes. Também iria descobrir que as tempestades fazem parte do dia-a-dia do vale. Além do ar pesado e sufocante, o cheiro do local é ruim: fede à lama pobre, sujeira e mofo.

Surgiram em frente aos meus olhos formas animalescas, rostos diabólicos a perseguir-me acusar-me obsessoramente:

- Lá vem a suicidazinha... Queres acreditar que suicidaste-se por amor?Tenho novidades para ti: Foi por egoísmo e não amor! Não pensaste em tua mãe e no quanto ela sofre com teu ato, nem em teu pai que jamais esquecerá a dor desse terrível golpe!

Gritei e chorei como louca ao ouvir essas palavras, porque isso era verdade, a mais pura verdade! Nem por um momento sequer pensei neles ao tomar a decisão de acabar com minha vida. A dor causada pelo arrependimento e vergonha era horrivelmente grande. Mas eu merecia. Perdi a noção do tempo em que fiquei ali, ouvindo-os zombarem de meus sentimentos. Porque eu sentia que merecia. Eu havia esquecido que o verdadeiro amor é virtuoso e paciente. O verdadeiro amor jamais tentaria prender ou punir, como eu havia feito. Descobri que eu era dona das trevas que escolhi ao invés de meu próprio lar, ou do lar de meus pais a quem sempre poderia recorrer. Teria continuado o ouvir, continuado a desesperar-me, não fosse a chegada de um singular grupo de pessoas ao nosso antro de trevas.

Chamou-me a atenção o fato de as espessas neblinas se abrirem e homens e mulheres (espíritos fraternos que materializaram-se o suficiente para tornarem-se plenamente percebidos por nós, na verdade) vestidos de branco surgirem, vindo à procura daqueles dentre nós que mais necessitavam. Eram os socorristas, os amparadores espirituais. Estranhei isso. Se eu estava no inferno, era lá que ficaria por toda a eternidade. Não foi isso que sempre me ensinaram? Então novamente ocorreu-me: “Se é assim, não posso estar morta!”.

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Um a um caminhavam pelas ruas do Vale, entravam nas grutas e cavernas, examinando seus habitantes, retiravam os que apresentavam condições de serem socorridos e colocavam-nos em macas para facilitar o transporte deles para fora desse maldito lugar. Uma voz grave os guiava: “Caverna tal... Rua tal... Pessoa tal...” e assim eles prosseguiam. A maioria dos infelizes que eram socorridos praticamente estavam em estado comatoso, embora existissem aqueles em melhores condições, facilitando-lhes o serviço.

Depois de uma rigorosa busca, o grupo silenciosamente marchava em retirada, cortando as ruas e becos, afastando – se de nós, desaparecendo de nossas vistas na neblina da mesma forma em que apareceram, enquanto uns de nós em vão reclamavam, sentindo-se revoltados, exigindo que os levassem também. Quanto a mim, silenciosamente afundei outra vez na solidão que nos cercava...

Continua...