A Quarta Máscara
Rastros de luz.
Começar nunca é fácil.
Lyan subiu primeiro as paredes do poço. Agarrou as pedras com as mãos calejadas e usou da força que seu corpo tinha. Ele estava mais profundo do que antes, mas ela preferiu não falar nada.
–Pode vir.
Do fundo, Louise ouviu o aviso.
Fez sinal positivo com a cabeça.
A hora tinha chegado.
Segurou firmemente uma pedra que podia alcançar. Com a outra mão, fez o mesmo, mais acima. Respirou fundo, preparou-se e deu impulso com as pernas. Por um triz, seu pé conseguiu se apoiar na fenda.
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Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!Esfolara os dedos. Aquilo era mais difícil do que parecia.
“Eu decidi por isso.”
Esperou a dor maior passar e continuou.
Cada pedra da parede que vencia era um progresso.
Era a metade do caminho. Suas forças estavam chegando ao fim. Seu corpo todo parecia pesar cem vezes mais.
Em frente a seu rosto, estavam os desenhos de sangue.
Um garoto que encontrava o melhor amigo sem vida.
Viu as pinturas. Estudou-as por um longo tempo. O vício da dor era um sussurro agradável em seus ouvidos.
Venha, Louise. Volte.
Mordeu o lábio para se conter. Apertou com mais afinco a parede na qual se segurava. Resistia para não cair, ou para não soltar-se e se deixar cair.
Você sente saudades, não é? Volte.
–Louise!
Do lado de cima, veio um grito preocupado.
Mas a garota, absorta em sua ilusão, não o entendeu.
Aqui, no fundo. Solte-se. Há muito espaço para você desenhar.
–Não... - Louise disse, quase sem fôlego.
Eu sei que você está me ouvindo.
Respirava a duras penas.
Não resista. Venha, estou esperando você.
–Pare...
Não me ignore.
Esticou a mão trêmula mais para cima e agarrou outra pedra.
O braço sofreu uma pontada forte de dor. Parecia que uma agulha estava atravessando-a de dentro para fora.
Gemeu de agonia. Soltou-se.
–NÃO! - Lyan gritou.
Nada podia fazer além de torcer. Não era uma luta sua.
Era um combate de Louise consigo mesma, que só ela poderia terminar.
Por muita sorte, o outro braço ainda agüentou-a. Estava balançando, pendurada no próprio abismo.
Cravou o pé em um espaço vago. Aquela voz venenosa não era um espírito, não era uma maldição, nem de outra pessoa. Era sua. Dentro de si, em algum lugar, a paixão pelo sofrimento ardia.
Lágrimas escorreram pelo rosto suado. A pele gasta das digitais começou a brotar sangue.
Venha. Solte-se. Venha.
Não suportava mais aquilo martelando nos tímpanos, incitando-a a voltar. Não queria. Não queria. Não queria.
Isso dói? Vou lhe dar mais. Vamos.
O som fazia eco em sua cabeça. Rebatia da esquerda para a direita. Sentiu-se balançar para os lados, junto às palavras sedutoras.
Mas não agüentava mais aquilo.
Colocou a dor para fora.
Gritou. Longa e fortemente.
Fez como faria para afastar uma fera. Nada restou de ar em seus pulmões. A respiração, já sofrida, arranhava sua garganta como lixa.
A voz tinha parado. Sumira.
Louise elevou o braço até o próprio limite e segurou-se.
“Eu vou até o final.”
Mão após mão, pé após pé, metro seguido de metro.
"Não vou me abandonar...”
O braço emergiu do poço, procurando algo onde se agarrar.
“... De novo, não.”
Lyan pegou seu antebraço de uma só vez.
O vento feroz das terras vermelhas corria por todo lugar. Uma densa névoa castanha se formava, ávida para engolir qualquer coisa que caminhasse dentro de si.
Louise sentia dor. O corpo todo pedia por descanso. Seus pés descalços sofriam com a dureza do solo, as pedras que pisava tocavam-lhe as feridas.
Mas aquilo estava longe de lhe causar prazer.
A cada passo, sua agonia ia embora, carregada pela corrente de ar.
E era aquilo que desejava.
O mundo era duro com ela. O pó do chão ardia em seus olhos, fazia-os escorrer. Suava por baixo da capa e da roupa. A boca rachava de sede.
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Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!Apesar de tudo, seguia com fé.
Dentro de seu coração, pulsava um novo sentimento. Era jovem, ativo, cheio de vontade. Uma semente que nascia ansiosa para crescer e ser uma planta viçosa, cheia de vida.
Esperança.
Pouco a frente dela, caminhava a pessoa que tinha plantado aquela semente.
–Mais meia hora e saímos daqui.
A voz de Lyan surgiu por entre a ventania barulhenta, alta o suficiente para ser escutada.
Mas Louise não respondeu. Não precisava. E não conseguiria.
Se abrisse a boca, poderia desabar em lágrimas ali mesmo.
Um choro de felicidade, por ter alguém que estava se sacrificando por ela.
Afinal, a nova viajante ainda se lembrava de quem era a capa que lhe cobria o corpo e protegia daquela terra hostil.
Lyan sabia que tinha sido entendida.
Não perguntou, não falou outra vez. Ficou em silêncio.
Sabia o que estava acontecendo. Não precisava olhar para trás, nem incomodar. Podia sentir no fundo do peito, e ia respeitar aquele momento.
Com Louise, ela tinha aprendido e mudado também.
Sorriu, tirando grãos de pó do olho esquerdo.
Estava feliz pela outra e por si mesma.
Viajaram juntas durante um longo tempo.
Subiram e desceram montanhas. Correram por campos verdes, por vales floridos, cheios de vida. Adentraram florestas, com tesouros naturais escondidos onde menos se esperasse. Cruzaram desertos. Exploraram cavernas ocultas. Atravessaram rios violentos e lagoas plácidas, lares da paz.
Correram perigo. Ajudaram-se. Contrariaram-se e perdoaram-se. Sofreram. Compartilharam alegrias e vitórias, problemas e riscos.
Por todo lugar pelo qual passavam, Louise deixava sua marca, escrevendo de algum jeito a história que as duas tinham feito ali. Fazia aquilo com tanta vontade e empenho que parecia nem se lembrar das tragédias que criava antes.
E seus novos contos não eram mais de sangue, mas de algo que aquela terra oferecia, fazendo a narrativa se integrar a sua terra-mãe.
Lyan ficava de longe, observando-a, de braços cruzados. Via uma nova pessoa nascer, com uma identidade e uma motivação. Se era aquilo mesmo que ela queria, apoiaria-a até o fim de suas forças, até quando seu coração parasse de bater.
A viajante sorria para a escritora, afagava seu cabelo negro e dizia:
–Você será lembrada, minha cara.
Louise a encarava com os olhos cheios de sonhos e respondia:
–Talvez.
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