Manchas

Bônus


Acordei sorrindo. Não era algo que eu pudesse controlar, afinal, hoje era um daqueles dias. Levantei-me com disposição, o que não era raro, mas o que me movia no momento era algo diferente dos outros dias. Era saber que eu iria vê-la. Tocá-la, ver o riso em seus olhos. Não importava os anos que tivessem se passado, isso nunca virava rotina. Ela não virava rotina.

Até cantei no chuveiro, o que eu sabia que me renderia algumas risadas quando eu descesse para o café da manhã. As paredes daquela casa eram impossivelmente finas, sempre tinham sido e por isso meus pais não deixavam quase nenhuma travessura passar sem nos pegar quando éramos crianças.

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Vesti-me com jeans limpos e uma camiseta verde, que combinava com meus olhos. O início do verão trouxera consigo um pouco de sol e calor, embora as manhãs e as noites continuassem um pouco frias. Já estava há uns vinte minutos tentando arrumar meu cabelo na frente do espelho quando fui interrompido por uma batida na porta. Quem bateu nem esperou que eu dissesse que podia entrar e foi logo abrindo a porta.

– A princesa já acabou de se embonecar? – minha irmãzinha adolescente e ocasionalmente insuportável perguntou com deboche. – Mamãe está chamando para o café da manhã.

Revirei os olhos, mas não consegui não sorrir.

– Já vou, pestinha – respondi, fitando seu reflexo no espelho. – Eu juro, você era muito mais agradável quando não sabia falar.

– Que ótimo, ser agradável não tá na moda, de qualquer jeito – falou, antes de bater a porta.

O sorriso continuava em meu rosto. Aquela menina estava passando tempo demais com a Julieta.

E apenas pensar em seu nome me fazia perceber que ela nunca estava muito longe da minha cabeça. Especialmente em dias como esse, em que eu precisava apenas contar as horas para vê-la, não dias e semanas. Às vezes, meses. E hoje eu apenas precisava esperar até depois do café da manhã.

Deixei o cabelo para lá. Ele estava mais comprido do que eu costumava deixa-lo, quase batendo em meus ombros. Mas Julieta gostava do meu cabelo de sereia – palavras dela – então eu hesitava em cortar. Victor e meus amigos da faculdade sempre diziam que eu precisava parar de idolatrar o chão que minha namorada pisava, mas a verdade é que eu não fazia isso.

Eu apenas a amava.

Talvez para muitos pudesse parecer assustador – e talvez impossível – encontrar o amor da sua vida com 17 anos – a idade que eu tinha quando a conheci. Eu já havia escutado que precisava de mais “variedade”, que precisava explorar mais o mundo, que precisava de novas experiências. Talvez a maioria das pessoas realmente precisasse de tudo isso, mas eu não. Eu não precisava me envolver com outras mulheres apenas perceber que já amava uma. Aceitava que as pessoas fossem diferentes, a própria Julieta muitas vezes parecera ter dúvidas sobre nós, muitas vezes se afastara de mim. Não era da minha natureza ser muito paciente, mas eu tentava. Porque ela era uma das poucas certezas da minha vida. E por ela toda espera valia a pena.

Meu padrasto estava arrumando a mesa com Mari e Victor estava provavelmente ajudando a mamãe na cozinha. Dei bom dia no momento em que meu irmão entrou com um prato gigante de ovos mexidos que cheiravam maravilhosamente, como sempre.

– Ei, preguiçoso, vai pegar os copos – disse Victor em sua educação habitual.

Mas fiz como ele mandou e, em poucos minutos, estávamos todos sentados tomando nosso desjejum. A felicidade da mamãe era visível em seu rosto. Ela amava quando podia estar com todos os seus filhos, já que Mari era a única que ainda morava em casa. E em um ano ela provavelmente iria para a Werburgh como Victor e eu, e só voltaria nos fins de semana. E deixar seus filhos serem livres para viver suas próprias vidas não era nada fácil para ela, principalmente depois de termos perdido Lucas, embora nunca tenha deixado de nos apoiar em cada decisão que tomamos.

Eu não podia deixar de amá-la mais ainda por ser tão forte.

– Que horas a Julieta chega, meu filho? – ela perguntou quando estávamos quase acabando.

Engoli o último gole do café com leite que estava tomando e respondi:

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– Ela vem no trem das dez e quinze. Na verdade, eu deveria ir logo ou vou me atrasar.

Victor rolou os olhos e Mari perguntou se podia ir junto. Previsível.

– Não para você – disse para Mari e depois me virei para Victor. – E você, vai se –

– Modos na mesa, meninos – Roger se pronunciou, tentando olhar pra gente com ar reprovador, mas o sorriso no canto dos seus lábios meio que estragava o efeito.

Dei de ombros.

– Eu não ia dizer nada impróprio – menti, dando de ombros.

Mari bufou, cruzando os braços e me olhando com raiva.

– Claro, afinal, o Perfeito-Paulo nunca faz nada impróprio. Realmente não sei como a Julie te suporta.

Não consegui evitar a risada, o que só deixou minha irmã ainda mais danada da vida. Ela falava tão parecido com aquela má influência que era cômico. Eu teria que ter uma conversinha com minha rebelde encrenqueira. A que não dividia o mesmo caldeirão de DNA comigo, claro, já que as duas eram rebeldes encrenqueiras.

– Já chega, crianças – mamãe foi colocando ordem e depois se virou para mim. – Bom, vá logo, não vai deixar a moça esperando, não é?

Beijei sua testa e fui pegar minha jaqueta antes de sair de casa, ignorando Mari e o gesto obsceno que ela estava fazendo com o dedo sem que mamãe visse. Eu realmente teria que falar com Julieta sobre isso.

Entrei no carro e baixei as janelas antes de sair. A manhã ainda estava um pouco fria, mas o sol já estava alto no céu sem nuvens, anunciando mais um dia bonito de verão. O vento bagunçava o cabelo que eu tinha tido o cuidado de arrumar, mas era agradável em meu rosto. Eu podia muito bem prender parte dele com o elástico que usava no pulso se acabasse parecendo um espantalho quando saísse do carro.

Cheguei à estação com tempo de sobra e acabei sentado em um banco desconfortável, agitado demais para sequer ler o jornal que havia comprado. Eu sabia que precisava dar uma olhada nos classificados, mas a cada minuto que passava, ficava mais inquieto. Levantei e dei lentas voltas pela plataforma. Ouvir o barulho do trem chegando era como música para meus ouvidos, e em seguida vê-lo surgir ao longe fez meu coração acelerar.

Meus olhos sempre pareciam encontrá-la. Eu nunca me tinha tido como o tipo romântico, mas não havia como negar agora. Talvez eu sempre tivesse tido isso em mim, talvez ela tivesse feito esse meu lado surgir, não saberia dizer. Eu apenas sempre sabia quando ela estava por perto, quase como se todo o meu corpo sentisse sua presença. Avistei-a ainda dentro do vagão, junto à janela como sempre. Podia ver seus ombros cobertos com o que parecia ser um cardigã, verde como minha camisa. Seu longo pescoço adornado com a mesma corrente que usava desde o dia em que a conheci. Seus cabelos que passavam do queixo, mas não tocavam os ombros balançavam levemente ao toque do vento, acariciando sua pele suave. O trem parou, mas ela não se levantou, apenas inclinou o corpo apenas um pouquinho para fora, procurando-me.

Percebi quando me viu. Seus lábios se abriram num pequeno sorriso, o meu sorriso, que fazia seus grandes olhos brilharem calidamente. Talvez eles pudessem me achar como os meus faziam com ela, não saberia dizer. Havia algo sobre aquela garota que sempre seria um mistério para mim, mesmo que a conhecesse há tanto tempo.

Os seis anos que haviam se passado desde que ela fora embora naquela mesma plataforma não a haviam mudado tanto fisicamente. Exceto pelo cabelo, que ela nunca mais deixou crescer como antes. Porém, eu não podia deixar de me maravilhar com o fato de que ela era outra pessoa. E, apesar de ainda preservar o espírito rebelde que havia chamado minha atenção desde o primeiro momento, Julieta se transformara numa mulher. Uma mulher que sofrera e ruíra sob a força das tragédias que abalaram sua vida, mas que se reerguera com graça e dignidade. Que provara que podia ser mais forte que todos ao seu redor. Que conseguira voltar a ser feliz e, às vezes, até despreocupada como alguém de sua idade devia ser. Os cortes em sua alma se transformaram em cicatrizes que agora eram impossíveis de romper de novo.

E essa mulher maravilhosa, por algum motivo que eu nunca questionava, parecia me amar.

Aproximei-me, vendo o vento fazer algumas mechas do seu cabelo tocarem seu rosto logo abaixo de um olho, alguns fios prendendo-se em seus longos cílios.

Beijei-a enquanto ela ainda estava dentro do trem, inclinada para fora da janela.

Quando finalmente saiu, percebi que, além da pequena mala que trazia em uma das mãos, a outra apertava nervosamente um papel. Ao me aproximar, percebi que era um envelope, onde eu podia distinguir claramente um nome.

Gabriel Kimak.

Julieta viu a direção do meu olhar. Ela claramente não estava tentando esconder a carta, que, apenas pelo envelope, parecia ter sido lida e relida inúmeras vezes.

– Preciso vê-lo, Paulo – foram as primeiras palavras que ela me disse. – Você vai comigo?

Não via Kimak desde que terminamos a escola. Ninguém o vira. Era como se ele tivesse evaporado como espuma do mar, embora ainda parecesse muito vivo nos pensamentos da mulher que eu amava. Eu sempre soubera que seu coração não era inteiramente meu. Nem nunca seria.

Havia feito minha paz com isso.

Havia esperado por ela nos dois anos em que ficamos separados logo que foi embora. Que foi o tempo que ela precisou para voltar. Teria esperado eternamente para voltar a tê-la ao meu lado. E mesmo depois disso, quando já estávamos juntos, esperei semanas e meses para poder vê-la a cada vez por morarmos em cidades diferentes. Havia aceitado quando ela colocava sua família acima de mim, porque era o que ela deveria fazer, ainda que algo em mim se quebrasse um pouco cada vez que acontecia. Eu a entendia, mas doía. Ainda alimentava a esperança de um dia poder ser sua família. Ser aquele para quem ela correria primeiro, sua âncora, sua segurança.

Nosso relacionamento, mesmo à distância, funcionava. Não era perfeito, nunca poderia ser.

Mas era aquilo. Ela era o começo e o fim. E aí minha veia romântica atacava de novo, porque Julieta era o grande amor da minha vida, do qual eu nunca poderia andar para longe e deixar para trás.

Senti o jornal ainda em minha mão, aberto na página de classificados que eu deveria ter examinado mais cedo, já que estava procurando um lugar para chamar de lar.

Qualquer lugar serviria, desde que ela estivesse comigo.

– Claro – respondi. – Vou com você.

E eu iria.

Mesmo que me machucasse, eu iria. Mesmo que eu soubesse que ela nunca seria totalmente minha, eu iria.

Porque, para fazê-la feliz...

– Vem, vamos pra casa – falei, passando o braço por seus ombros.

Eu não me importava de ir ao inferno e voltar.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.