Manchas

Epílogo


O dia estava ameno.

Isso surpreendeu a garota que agora entrava no trem, mas agradou-a imensamente. Era bom ver o sol sair em seu último dia ali.

Ela procurou por um assento vazio, o que não foi difícil, o vagão não estava cheio. Acabou sentando-se junto à janela na última fileira de bancos, onde podia ficar só com seus pensamentos.

Um sorriso brincava em seus lábios vez ou outra – lábios que ainda pareciam queimar do beijo que recebera antes de sair da escola, que ainda pareciam manter o gosto de outros lábios, que ela tentava, de algum modo, reter por mais alguns preciosos momentos – e seus olhos brilhavam com uma luz que não estava ali quando ela chegara naquela mesma estação, meses antes.

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Ela tirou o casaco e o amassou para usá-lo como travesseiro. O trem começou a se mover vagarosamente e uma brisa gelada aliviou o calor que começava a fazer. Deixou seu rosto meio para fora da janela para senti-la melhor, fechando os olhos. Sem cabelos compridos no caminho, o vento acariciava perfeitamente sua pele. O trem começou a ficar mais rápido.

Ela quisera que as coisas fossem daquele jeito. E estava feliz por ter seguido com sua intuição. Algo lhe dizia que ela tinha que ir embora do lugar que lhe trouxera tanta dor e tanta cura sozinha. Do mesmo modo em que viera.

Bem, não exatamente do mesmo modo. Ainda lembrava da garota que havia chegado naquela cidade, quebrada como uma boneca de porcelana e tão frágil quanto. A garota que vestia uma capa de raiva e rebeldia para esconder seus sentimentos estilhaçados e um passado para o qual tinha medo de olhar. Hoje ela podia não estar inteira e forte como gostaria, mas estava lentamente se curando. Correndo atrás da luz que nunca mais abandonaria sua vida.

Abriu os olhos, deixando uma única lágrima escapar por eles enquanto seus lábios se curvavam num pequeno sorriso. Parecia que havia se passado tanto tempo. Sentia-se mais velha do que seus anos, mas não de uma maneira ruim. Sentia-se mais forte, mais madura, mais pronta para enfrentar o que quer que a vida quisesse colocar em seu caminho. Não tinha mais medo.

Abriu os olhos, lembrando-se de algo. Pegou a mochila e tirou dela uma pequena caixa. Na tampa havia seu nome escrito. Julieta. Dentro estavam cartas das pessoas que deixara para trás. Haviam-na proibido de ler até que estivesse fora da cidade, mas, apesar de ainda não ter saído, Julieta resolveu abri-las, seu espírito sempre um pouquinho rebelde.

E a cada palavra daqueles que ela aprendera a amar quando já nem se acreditava capaz disso mais lágrimas seguiam. Lágrimas de saudade e de felicidade. Eram como um sopro suave num ferimento aberto. Consolavam, mas faziam arder. Julieta ficava feliz com isso. Que as lembranças ardessem. Que doessem e machucassem.

Ela não daria às costas ao seu passado nunca mais. Não agora que percebera que precisava dele para ser quem era.

Segurou as cartas em seu peito, apertando-as contra o colar com o pingente que continuava usando – que nunca deixaria de usar – e olhou para trás pela janela. Para o lugar que estava deixando. Seu coração sabia que teria para sempre uma casa ali. Sabia que teria alguém que seria para sempre seu. E alguém que talvez não fosse ver de novo.

Uma curva quebrou a imagem da pequena estação e da cidade. Julieta voltou a se acomodar e a colocar a cabeça em seu casaco. E ainda com os sentimentos daqueles que amava nas mãos, não demorou a cair no sono.