Manchas

Capítulo 13


Tremi, mas por apenas um segundo. E, apenas durante esse segundo, fiquei assustada. Depois eu sorri e me aproximei dele cada vez mais, finalmente entendendo. Gabriel estava estático, ainda olhando para o ponto onde eu estivera. Não era pra mim que ele olhava, percebi com alívio. Não era eu quem ele vira aquela tarde enquanto eu dormia. Aquele ódio todo...não era dirigido a mim.

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- Como é o nome dela? - perguntei baixinho, separada dele por apenas dois passos.

Ele não respondeu, apenas respirou fundo e fechou os olhos. Depois de alguns segundos, estendeu a mão esquerda e segurou meu braço, puxando-me para ele.

As pessoas normalmente não entendem o que significa um abraço. Ignoram o poder que um abraço tem. Não é apenas um gesto de carinho, não. Um abraço diz muitas coisas. Deixar-se envolver pelos braços de outra pessoa...não é tão fácil assim.

Eu passei os braços pelas costas dele, deixando-o me abraçar, apertado, sentindo o corpo dele junto ao meu. Sentia sua respiração morna no meu pescoço, suas mãos na minha cintura. Era um abraço que dizia muito, sem dizer nada. Me fez sentir sua vulnerabilidade, que era quase um espelho da minha. Duas almas castigadas e solitárias, por diferentes razões, que compartilhavam a própria solidão. Quantas vezes, nesses dois anos, eu precisei desse consolo? Quantas vezes eu precisei do calor de outros braços que não fossem os meus? E eu não sei por que nem por quanto tempo, mas sentia que Gabriel compartilhava dos meus anseios e angústias.

Por quanto tempo ele esteve sozinho como eu?

- Está chovendo - ele sussurrou. - Por isso não podemos ir embora. Está frio e não temos um guarda-chuva.

- Tudo bem - eu disse, passando agora os dedos pelos cabelos macios dele. - Tudo bem, vamos ficar aqui, juntos.

Ele não disse nada, apenas me apertou mais em seus braços, como se quisesse me prender a ele e nunca mais me soltar. Eu o entendia melhor do que gostaria. Conhecia aquela sensação de ser só no mundo, sem ter ninguém ao seu lado, ninguém para segurar você e impedir que você caia, que afunde na escuridão da sua própria mente. Ele sentia aquilo, eu, de alguma forma, sabia como se os sentimentos fossem meus. E eles eram.

Eram exatamente como os meus.

- Não me solte - eu murmurei baixinho, sem muita certeza se ele seria capaz de me ouvir. - Não me solte e eu não irei soltar você.

- Eu não pretendo te soltar - ele respondeu, a voz mais baixa que a minha, se é que era possível, praticamente só uma vibração em seu peito. - Você faz bem pra mim. Você me cura.

Eu sei, também me sinto assim.

Aprendi a ser forte, a me fechar para o mundo, a me proteger sozinha. Aprendi a sobreviver. Fui obrigada a isso, da forma mais abrupta e cruel. Um dia eles estavam lá por mim. No outro, não estavam mais. Em um momento, eu tinha um porto seguro. No outro, estava à deriva. E me senti perdida, como qualquer pessoa no meu lugar, afogando lentamente na minha própria culpa. Repassei os acontecimentos mil vezes na cabeça, desejando poder voltar no tempo e mudá-los, querendo mais do que qualquer outra coisa que tudo pudesse ter sido diferente. Mas o tempo não volta.

E nem cura.

Precisei me erguer sozinha, continuar a viver. E cada respiração era como uma punhalada no meu peito, lembrando-me do que eu tinha feito. Culpei-me, mas mesmo assim, segui com a vida. Era meu castigo, seria meu eterno castigo. Ter de viver com aquilo, vendo o desprezo e a incompreensão nos olhos daqueles que um dia me amaram e que eu continuo amando, apesar de me odiar por isso. Eu precisava sofrer, precisava sentir meu coração arder todos os dias, para assim tentar pagar pelo meu crime. E em nenhum dia, durante esses dois anos, eu vacilei.

Até agora.

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Eram os braços do Gabe que estavam ao redor de mim, mas não eram os braços dele que eu sentia. Era a respiração do Gabe fazendo cócegas no ponto entre meu pescoço e ombro, mas mesmo assim, não era ele. Sei que isso pode soar confuso, já que não faz sentido nem dentro da minha cabeça, mas ao mesmo tempo que era Gabe, não era. Outra pessoa vinha à minha mente, sem ser convidada, e me engolia em seu calor. Sentia-me bem e em paz pela primeira vez em anos. E comecei a me perguntar se realmente eu não podia ser curada, assim como o Gabe disse que eu o estava curando. Afinal, era assim que eu me sentia, como se as feridas abertas tão profundamente dentro de mim estivessem começando — lentamente — a cicatrizar.

Eu achei muitas coisas. Sempre fui a garota que tinha certeza de tudo e que nunca vacilava. Eu tinha certeza da minha culpa, certeza do meu crime e dos meus pecados. Certeza de que eu pagaria por eles para sempre, até que meu último suspiro me mandasse para o inferno. Certeza de que eu nunca seria inteira de novo.

Já não tenho.

Já não sei de nada, não entendo nada. Como pode uma pessoa curar outra? Uma pessoa que eu quase não conheço e que nem sabe o que está me fazendo. Que não sabe nada sobre mim, não me conhece. Não me entende.

Fechei os olhos, enterrei o rosto no pescoço de Gabe e comecei a chorar.


Era tarde — para os padrões de uma cidade do interior é claro — quando eu saí do banheiro. Como meu vestuário era limitado e eu não tinha um pijama, Gabe me emprestou uma camisa velha dele. Ela não era muito grande nem comprida, já que Gabe e eu não temos uma significativa diferença de altura, então eu estava meio envergonhada por estar tão exposta. Gabe já tinha tomado banho antes de mim e estava deitado na cama, usando apenas uma calça de moletom azul escura. Seus olhos estavam fechados e ele parecia estar relaxado, mas sabia que não estava dormindo.

Não havíamos trocado muitas palavras desde que eu comecei a chorar em cima dele — um momento particularmente patético — e eu ficava agradecida por ele não mencionar o assunto nem perguntar nada. Logo que nos apartamos, esquentamos e jantamos as sobras do almoço na sala mesmo, já que estava o maior temporal lá fora. A temperatura havia caído mais e toda a casa estava um gelo, pois não tinha sistema de aquecimento central.

Dane-se, uma fogueira serviria. Mas nem isso tinha.

Então Gabe foi tomar um banho e eu fiquei arrumando a cozinha. Não lavei a louça, mas coloquei tudo que estava sujo na pia e limpei a mesa. Que falta faz uma lava louças automática numa hora dessas. Quando terminei, fiquei sentada na cama do Gabe, fitando o vazio. Quando ele saiu do banheiro — já vestido com a calça — e me estendeu a velha camisa que eu usava agora, eu entrei no banheiro para tomar um banho também. A água quente havia me esquentado um pouco, mas agora que eu estava fora dela e com o cabelo pingando nas costas, meus dentes tiritavam.

— Vem pra cá — ouvi Gabe dizer, ainda de olhos fechados. — Está frio.

Eu sabia desde o início, é claro. Que isso iria eventualmente acontecer, já que estávamos presos ali pelo temporal. Ainda assim, estava meio desconfortável com a situação, mas as opções não eram muitas. Suspirei e peguei a manta e o edredom que Gabe tinha tirado do armário para mim. Ele parecia não se importar com o frio. De fato, gostava dele.

Tomando a única decisão que me garantiria sobreviver à noite gelada – exagero, eu sei –, subi na cama de joelhos até ficar bem perto do Gabe. Deitei ao seu lado e ele imediatamente passou um braço por cima de mim e ajeitou os cobertores sobre nós dois. Depois me abraçou e me fez colocar a cabeça no seu peito. Ele estava com a pele um pouco fria, mas eu sabia que em poucos minutos, nossos corpos iriam se aquecer mutuamente. Gabe começou a mexer no meu cabelo molhado, fazendo-me ficar sonolenta. Mesmo tendo dormido um pouco àquela tarde, meu corpo ainda estava exausto e eu precisava dormir.

— Você está cheirosa — foi a última coisa que ouvi antes de cair no sono.


- Ei, acorda - Gabe murmurava, sacudindo meu ombro. - Acorda, Julieta.

- Cara, você quer morrer? - perguntei com a voz rouca de sono, ao abrir os olhos e perceber que ainda estava escuro lá fora. - Que horas são?

- Cinco da manhã.

- Você definitivamente quer morrer.

- Temos missa às seis horas na capela da escola, Julieta.

- Ah, me poupe - respondi e rolei na cama para ficar de costas para ele. - Não vou pra essa droga nem a pau.

Ouvi um suspiro e Gabe pareceu desistir de tentar me levar com ele. Talvez ele tenha dito mais alguma coisa, mas eu estava tão acabada de sono que nem prestei atenção e voltei a dormir.

Muitas horas depois, eu acordei com o sol invadindo o quarto e irritando meus olhos. Não havia nenhum ruído na casa, que parecia deserta. Levantei-me, meio zonza, e cambaleei até a geladeira, mas não tinha nada para comer, então eu só tomei um copo de água. Só então notei um pedaço de papel rasgado e um chaveiro em cima do balcão. Peguei o bilhete e li, esfregando os olhos para espantar o sono:


Voltei para o colégio, já que você não quis vir. Não esqueça de trancar a porta quando sair. Te espero no patio, podemos sair para almoçar juntos.

Gabriel

É, lembrei de algo assim. Gabe acordou praticamente de madrugada para ir à missa e tentou me arrastar junto, mas até parece que isso ia acontecer. Suspirei e vi as horas no relógio da cozinha, ainda não eram nem dez da manhã. Tomei um banho rápido, mas não lavei meu cabelo, que estava uma coisa horrorosa por eu ter dormido com ele molhado. Meu cabelo não é liso, ele é ondulado com cachos na ponta, e a situação atual dele estava além de desesperadora, já que eu nem tinha uma escova de cabelo. Acabei prendendo-o de qualquer jeito num coque enrolado. Vesti a mesma calça jeans de ontem e uma blusa azul com listras vermelhas horizontais, uma das únicas que eu tinha que eram adequadas ao clima, tirando meu moletom. Eu precisava fazer compras imediatamente, a minha situação estava complicada. Calcei os tênis e arrumei a cama do Gabe, coloquei minha mochila nas costas e peguei o chaveiro em cima do balcão. Era um chaveiro de borracha bonitinho, do Gato Félix, obviamente coisa de criança, porque parecia velho e a tinta da borracha estava descascando nas pontas. Saí do apartamento e o tranquei, como Gabe havia lembrado no bilhete, e desci as escadas para a rua.

Estava com fome, mas a padaria estava fechada. Aliás, estava tudo fechado, e eu precisava comprar roupas. Suspirei, teria de esperar até amanhã, então. Fui andando pelo mesmo caminho que Gabe e eu havíamos tomado ontem, mas eu não estava familiarizada com ele e acabei me perdendo. Irritada com Gabe por ter me deixado sozinha, acabei sentado no balancinho de uma pracinha lotada de crianças. Detesto crianças. São criaturas irracionais e barulhentas que, aparentemente, vivem para testar a minha paciência.

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- Esse balanço é para crianças, não pra gente grande - como que para provar que eu estou certa, uma menininha de uns 6 anos, vestindo uma calça jeans e um moletom azul com um desenho do Nemo, disse para mim. - Saia daí.

A menina era muito bonitinha, com cabelos cor de mel enrolados na altura dos ombros, olhos castanhos claros e um arzinho emburrado. Com certeza devia ser uma peste.

- Não enche, pirralha - eu disse, rolando os olhos.

- Não me chama de pirralha, sua emo - retrucou ela. Mas que menina abusadinha.

- Some daqui - disse, já me irritando com aquele gnomo de moletom azul.

A menina ficou lá me olhando com raiva e mandando língua, mas eu só a ignorei. Até que ela se aproximou e começou a puxar a manga da minha blusa para me fazer sair do balanço.

- Sai, sai! - ela ficou dizendo.

- Mari, para já com isso! - um garoto se aproximou dizendo para a garotinha. - Desculpa, minha irmã é meio irritante mesmo, eu...

Ele parou a frase no meio quando chegou perto e olhou para mim. Que merda. Por que, de todos os caras com irmãs mais novas pentelhas no mundo, a gnomo azul tinha que ser irmã do Paulo Chermont?

Sabia que eu tinha reconhecido aquele jeito mandão de algum lugar.

- O que você está fazendo aqui? - Chermont perguntou.

- Não é da sua conta - respondi mal humorada.

O garoto só ficou olhando para mim com irritação e parecia prestes a dizer alguma coisa, mas a pirralha foi mais rápida:

- Paulinho, você conhece essa garota? - perguntou para o irmão.

Paulinho. Eca.

- Sim, Mari. Ela estuda na Werburgh.

Não queria ficar ali perdendo meu tempo com a dupla dinâmica, então levantei do balanço e comecei a me afastar, mas Chermont segurou-me pelo braço e me impediu de dar mais um passo. A gnominha ficou olhando do irmão para mim, com uma expressão surpresa.

— Você vem comigo — ele disse, puxando-me pelo braço e, com a outra mão, segurando a irmã.

— Não sei se você já notou, mas eu não tenho seis anos como essa baixinha aí — eu comentei, entediada demais para fazer alguma coisa para me soltar dele. Afinal de contas, eu estava perdida, era melhor ir com o monitorzinho do que ficar vagando por aí.

— Não tenho seis anos! — Mari resmungou. — Tenho sete e meio!

Paulo ignorou nós duas.

Chegamos perto de um garoto que conversava com duas garotas. Eu o reconheci imediatamente como sendo o menino do primeiro ano com quem Paulo e seus amigos andavam. Parecido demais com o monitor para não serem parentes, o garoto era alguns centímetros mais baixo que ele, tinha os mesmos cabelos castanhos claros e seus olhos verdes eram apenas um tom mais escuros. Tinham o mesmo queixo e o mesmo nariz, mas os ombros do garoto eram menores que os de Paulo e ele era mais magrelo, sem contar que não tinha a mesma confiança no olhar que Paulo tinha.

Já as meninas, eu não conhecia. Nem sabia se eram da escola. As duas eram loiras, uma ligeiramente mais baixinha que a outra. A mais alta tinha olhos castanhos e a outra, verdes. Eram muito bonitas e suas roupas gritavam "dinheiro!" de longe.

— Victor — Paulo disse quando nos aproximamos do grupo.

O garoto virou-se para ele e abriu um sorriso que mostrava todos os seus dentes brancos e perfeitos.

— Ei, Paulo — disse, numa voz animada. — Estou indo pra casa com a Bia e a Deb, ok?

— Ótimo, aproveite e leve a Mari com você.

A pequenina começou a protestar e o garoto que eu agora sabia que se chama Victor olhou interrogativamente para Paulo e, só então, pareceu me notar.

— O que você está fazendo com ela? — perguntou, quase com nojo.

Bastardo.

— Olha aqui, seu franguinho — fui dizendo, mal humorada. — Fale de mim usando esse tom de voz de novo e eu corto sua língua fora.

Mari riu, o que me surpreendeu, Victor deu um passo para trás, o covarde, e Paulo só me fuzilou com o olhar, novidade.

— Cale-se, Julieta — o Chermont disse, parecendo quase cansado. — E você, Victor, leve a Mari para casa.

— Você me larga com essa peste...

— Peste é você, seu monte de bosta! — Mari rugiu, parecendo ter um vocabulário bastante interessante para uma menina de sete anos e meio.

—...e vai sair por aí com a rebelde pirada da Werburgh? Isso não é justo!

Esse garoto não tem amor pela vida, não?

Eu acordei cedo, não tomei café da manhã, fui largada sozinha num lugar em que eu nunca tinha estado antes do dia anterior, tive que voltar andando para a escola, me perdi, estava com uma dor de cabeça enviada diretamente pelo capeta, aquela criança maldita veio me perturbar, depois o irmão mal amado dela e agora aquele pirralho do primeiro ano estava me chamando de pirada?

Sinto muito, mas eu meti o punho na cara dele.

Na verdade, não sinto muito coisa nenhuma, o insolente mereceu.

As duas garotas — supus serem Bia e Deb — soltaram gritinhos estridentes de surpresa quando ele caiu para trás, o que piorou minha dor de cabeça e me fez ter vontade de enfiar o punho na cara delas também, coisa que só não fiz porque meus dedos da mão direita estavam doendo de acertar o pirralho. E também porque Paulo me segurou pelos ombros e me sacudiu, como se eu fosse um daqueles brinquedos que faz um barulhinho se você sacudir bem.

Só que o único barulho que eu soltei foi:

— Você quer apanhar também?

Ao mesmo tempo em que Mari disse, com sua voz infantil assombrada:

— Uau, me ensina a fazer isso?

E Victor praguejou do chão:

— Merda, a maldita me acertou!

Percebi que Paulo estava a ponto de perder a paciência quando gritou:

— Calem a maldita boca, vocês três!

Ou talvez ele já tivesse perdido, sei lá.

Bia e Deb olhavam atônitas para o Chermont, como se nunca o tivessem visto gritar de frustração antes. Mari dava pulinhos de excitação enquanto Victor levantava do chão, fitando-me com ódio e eu só fiquei lá, parada, observando o desenrolar dos acontecimentos.

Paulo apertou a ponte do nariz com o polegar e o indicador, como se tivesse uma súbita dor de cabeça. Bem feito, eu também tinha uma.

— Leve a Mari para casa, Victor — repetiu como se cada palavra o deixasse mais estressado. — Tchau, meninas.

Então, o Chermont largou a gnomo azul com o tal do Victor e com as duas loiras que murmuraram um tchau meio assustado para ele. E saiu me puxando pelo braço. Mas é mesmo um abusado. Antes que eu pudesse reclamar, chegamos até um carro prateado que estava estacionado do outro lado do parque, que Paulo abriu automaticamente com um daqueles controlezinhos que fazem um barulho irritante quando são usados.

— Entra — ordenou.

Só pode ser piada...

— Eu que não vou entrar num carro com vo —

Suspirou e, antes que eu terminasse a frase, abriu a porta do carro e me empurrou para dentro, só para bater a porta com força depois. Por um momento, eu fiquei surpresa demais para fazer alguma coisa, e quando voltei ao normal, ele já tinha entrado no carro e trancava as portas. Tirei minha mochila das costas para poder sentar direito.

— Você sabe que sequestro é crime? — provoquei, enquanto ele pisava no acelerador e saía dali.

— Você sabe que agressão também é? — rebateu.

— Ele mereceu!

— Você acertou o meu irmão, devia estar preocupada com a detenção que vai pegar por isso! — disse, furioso.

— Eu devia ter imaginado! Só sendo seu irmão pra ser idiota daquele jeito...e você não pode me colocar na detenção por algo que eu fiz fora da escola!

— Engano seu!

— Desde quando você virou policial?

— Duvido que se eu fosse um policial, você me trataria diferente!

— Tem razão! Você é um otário agora e continuaria sendo um otário mesmo que fosse a porra do presidente! E eu te detestaria do mesmo jeito!

Estávamos seguindo por uma estradinha que eu não reconhecia e que, no momento, estava deserta. Quase nunca se viam carros nas ruas daquela cidade, só pessoas andando pela calçada. Mas não havia ninguém na rua em que estávamos, andando ou de carro. E Paulo pisou no freio de forma tão brusca que eu quase fui arremessada para frente.

— Seu idiota!

— Sua idiota!

Eu o olhava com fúria e ele me devolvia o olhar, parecendo com muita vontade de bater em alguma coisa.

— Por que você parou desse jeito?! — perguntei, irada, ao mesmo tempo em que ele perguntou:

— Por que você não colocou o maldito cinto de segurança?!

— Ah, me poupe — respondi, revirando os olhos.

Ele desligou o carro, tirou o próprio cinto de segurança e se inclinou sobre mim para colocar o meu. Nervosa com a súbita proximidade dele, tentei empurrá-lo, mas ele segurou minhas mãos com uma das suas.

— Quieta — grunhiu e colocou o meu cinto com a mão livre.

Por incrível que pareça, eu fiquei, sim, quieta. A proximidade daquele monitorzinho meia boca mexia comigo, por mais que eu tentasse negar. Havia algo nele que me deixava ciente de cada centímetro do meu corpo, que me deixava perdida e me fazia esquecer cada palavra afiada que eu tinha na ponta da língua. Oh, como eu detestava isso! Estava com uma vontade louca de acertar a sua cara com toda a minha força.

Mas eu também queria beijá-lo. O que viesse primeiro.

Claro que eu não fiz nem uma coisa nem outra. E ele não se afastou, mesmo depois de ter me prendido com o cinto de segurança. Paulo olhava para mim com calor nos olhos, talvez resultado da nossa discussão. Ele parecia furioso. Ou talvez com a mesma vontade de beijar que eu tinha. Ou talvez eu esteja ficando irremediavelmente louca.

— Onde você estava? — ele perguntou com a voz baixa e eu senti seu hálito na minha bochecha.

Eu podia mentir, é claro. E para falar a verdade, eu queria muito fazer isso. Afinal, quem esse babaca pensa que é para querer ficar sabendo todos os meus passos? Não somos nada um para o outro, nos conhecemos há uma semana! E eu o detesto, apesar de ele saber como beijar uma garota até que ela perca toda e qualquer noção do que está acontecendo ao seu redor. Além disso, acho que ele me detesta também, principalmente depois de toda aquela palhaçada que eu fiz.

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Mas algo me dizia que mentir para ele seria inútil. Era quase como se ele conseguisse enxergar a verdade em meus olhos. Então, apesar de querer muito mentir para ele, não o fiz.

— Estava na casa do Gabe.

Paulo franziu o cenho ao ouvir o apelido que eu já usava inconscientemente.

— Pensei que eu tivesse dito que não a queria metida com esse marginal.

— E eu pensei ter dito que minha vida não é da sua conta.

Ele suspirou e fechou os olhos, depois os abriu e olhou dentro dos meus. O verde rico estava mais escuro, como grama molhada, e havia algo ali que parecia muito com...carinho.

A falta de comida estava definitivamente afetando meu raciocínio.

— Sei que você não gosta de mim — ele disse, ainda próximo demais para que eu fosse capaz de dizer que esse era o eufemismo do século. — Mas isso não importa. Eu continuo querendo o seu bem.

Soltei um riso estrangulado. O cara não podia estar falando sério.

— Duvide o quanto quiser, Julieta — ele continuou, sério. — Confesso que, à primeira vista, você me irritou até o último fio de cabelo, mas...depois...que seja, o fato é que eu me importo com você.

— Por quê? — consegui perguntar sem que minha voz falhasse.

— Você me lembra uma pessoa...que já foi muito querida.

— E agora não é mais?

— Seria...se não tivesse ido embora.

— Morreu?

— Deus, não! — ele disse e riu, afastando-se finalmente de mim. — Você é, apenas bem levemente, parecida com meu irmão.

— Aquele barril de neurônios estragados? — perguntei, horrorizada com a possibilidade de ser comparada com um pirralho enjoado como aquele Victor. — Você tem certeza de que está em seu juízo perfeito?

Ele riu de novo, mais alto dessa vez. A risada dele era contagiante e eu precisei morder a as bochechas para impedir que meus lábios se curvassem para cima em um sorriso.

— Eu devia estar ofendido, mas até que você descreveu Victor direitinho. Não, não é com ele que você é parecida. É com meu irmão mais velho, Lucas.

Estremeci.

— Quer dizer que tem mais de você? — perguntei, querendo mesmo é manter distância daquela família.

— Sim, somos quatro — ele disse, rindo. — Lucas, eu, Victor e Mari.

Pronto, era só o que me faltava. Por que eu tenho de ser parecida com um membro do clã do monitorzinho de quinta?

— Lucas sempre foi o mais independente, talvez por ser o mais velho — Paulo foi dizendo. — Eu o admirava à distância, ele era meio solitário, assim como você. Tinha algo de...não sei se esta é a palavra certa, mas tinha algo de selvagem nos olhos dele, e eu sempre achei que ele fosse um espírito livre. Vejo a mesma coisa em você.

— Está me chamando de selvagem? Quer levar um soco?

— Não é esse sentido de selvagem...é mais como se você fosse...indomável.

— Ok, gosto disso — me peguei dizendo, para minha surpresa e a dele. Dá licença, até uma garota com um passado negro e pouco — nenhum — traquejo social pode aproveitar de uma conversa inofensiva com o inimigo, certo? O monitor mandão é o inimigo...não é?

— Então — eu disse — o que aconteceu com o Lucas?

— Ah, ele foi embora anos atrás, como mamãe sabia que ele faria. Não que isso a tenha feito aceitar melhor a coisa. Ainda a pego chorando pelos cantos de vez em quando.

— E ninguém sabe onde ele está?

— Não. Ele nunca ligou ou escreveu. Não deu nenhum sinal de vida.

— Você gostava dele?

— Ora, é claro. É impossível não amar um irmão. Você é filha única?

Senti uma pontada no coração com a pergunta inofensiva dele, e tenho certeza que ele percebeu que meus lábios tremeram. Afinal, qual era o problema comigo? Era uma pergunta simples, eu podia respondê-la. Não era fácil, nunca seria, mas era simples.

— Não — finalmente respondi, mecanicamente. — Tenho uma irmã, Bianca. Não somos muito próximas.

Não mais, pelo menos.

— Diferença de idade muito grande? — ele tentou.

Balancei a cabeça.

— Apenas um ano. Ela tem dezessete.

— E por que...— ele começou, mas eu o interrompi.

— Chega! Não quero mais falar disso e, para ser sincera, não quero falar com você!

Ele me fitou com aqueles olhos verdes que tanto me fascinam, mas não havia surpresa neles pela minha súbita mudança de comportamento. Era quase como se ele esperasse por isso.

— Vou levar você para a escola — ele disse, voltando a colocar o cinto e ligar o carro. — E não quero você andando com o Kimak de novo.

— Você vai recomeçar essa palhaçada? — perguntei indignada. — Não interessa o que você diga, eu gosto do Gabe e vou continuar fazendo o que eu quiser. E se isso o envolve, o problema é meu e você não tem que se meter.

Por um momento passou pela minha cabeça perguntar o que havia acontecido entre os dois, para Paulo odiá-lo tanto, se já haviam sido melhores amigos. Mas decidi que, de problemas, minha vida já está cheia, muito bem obrigada. Não tinha que me meter no que não me dizia respeito.

Só seria bom se esse monitor aspirante à nazista tivesse essa mesma sensibilidade.

— Você gosta do Gabriel? — perguntou ele, concentrado na estrada, que começava a se inclinar para cima.

Acho que sim, ele é parecido comigo o bastante para eu acha-lo interessante. E diferente demais para eu detestá-lo.

— Sim — respondi.

— E me detesta?

Hesitei, mas não tenho certeza se Chermont percebeu ou não. E por fim, disse:

— Sim.

Ele murmurou algo que eu não consegui ouvir direito, mas captei as palavras "novamente" e "bastardo" e um palavrão realmente chulo. Achei melhor continuar na ignorância, o que quer que o garoto estivesse murmurando, não parecia ser agradável.

— Eu vou impedir que ele se aproxime de você — declarou de repente, sobressaltando-me.

Essa história já estava me irritando demais.

— Não é como se você pudesse me pegar pelos cabelos, me jogar em seus ombros e me trancar numa torre, Paulinho — eu disse, com uma falsa voz doce. — No século XXI, as mulheres podem chutar as partes do neandertal que tentar fazer isso.

— Não nego que a ideia tem seus méritos. Trancada numa torre você daria muito menos problema. Mas não tenho nenhuma torre onde trancá-la nem estou disposto a fazer isso às custas das minhas "partes".

— Sábia escolha.

— Mas não se preocupe, vou pensar em outra coisa.

Não retruquei, até porque estava cansada de desperdiçar meu latim com aquela criatura obtusa que, aparentemente, veio direto da idade da pedra para os dias de hoje. Estava esgotada, faminta, e essa discussão não tinha exatamente feito maravilhas pela minha dor de cabeça. Ela estava ainda mais insuportável, se é que era possível. Era como se alguém estivesse fazendo um bolo com meus miolos com uma batedeira quebrada. Por isso só fechei os olhos e tentei não pensar em nada. O que era meio difícil, já que Chermont estava à distância de um braço e eu ainda estava lutando contra a vontade de chutar a canela dele e beijá-lo. Confesso que ambas as ações me dariam um prazer extremo e talvez até pusessem fim a minha dor de cabeça.

Em algum momento dessa guerra mental, eu devo ter cochilado. Acordei com o barulho do freio de mão sendo puxado, mas não abri os olhos, estava muito cansada. Ouvi o ruído do cinto de segurança do Chermont ser aberto e em seguida, ele soltou o meu também. Antes que eu tivesse tempo de abrir os olhos ou dar qualquer evidência de que estava acordada, senti os dedos de Paulo no meu cabelo, acariciando-os tão suavemente que eu precisei me segurar muito para não suspirar. Era bom sentí-lo, especialmente quando ele roçava os dedos na pele do meu pescoço. Sei que é errado deixá-lo me tocar desse jeito quando eu não gosto dele e, apesar de tudo que ele disse, duvido muito que goste de mim. Ninguém gosta de mim. Ou quase ninguém, sei lá. Existem alguns loucos nesse mundo, tipo o Gabe, que acho que gosta de mim. Ou pode vir a gostar. E tenho também duas primas, mas não nos falamos há dois anos, então não sei se elas ainda gostam de mim, depois de tudo o que aconteceu. E, claro, tem meu avô desaparecido no mundo, que é a pessoa com mais probabilidade de ainda me amar um pouquinho, mas ninguém sabe dele há muito tempo, desde que ele resolveu fazer umas trilhas na América do Sul. Então, sinto muito se o toque daquele monitor barato me agradava, mas fazia muito tempo desde que alguém mexia nos meus cabelos. Minha mãe costumava fazer isso e eu gostava. Muito. Eu sinto falta de carinho, de contato, de calor humano sem segundas intenções. Sinto falta de alguém que me toque pelo simples fato de me querer bem. Com o Gabe foi diferente, era ele quem precisava de contato, de carinho, ontem à noite. Mais do que eu. Foi uma coisa mútua. Mas com Paulo...ele dizia que queria meu bem, mas eu não acreditava. Apesar disso, ele não precisava cuidar de mim, acariciar meus cabelos daquele modo tão singelo. Mas ele estava fazendo isso. E, droga, eu estava gostando! Continuei fingindo que dormia, para não ser obrigada a pará-lo, não quando o carinho que ele fazia era tão bom e fazia minha dor de cabeça melhorar.

Porém, tudo que é bom, de fato dura pouco. E minha dor de cabeça voltou com tudo no momento em que ouvi uma voz familiar, porém não menos irritante, dizer:

— Paulo! O que você está fazendo?! Com ela?!

É, resolveram me tirar pra Judas hoje.