Depois de ter dito a Cameron que iria lhe contar sobre meu perturbado passado, quase consegui vê-lo sorrindo como uma criança que acaba de ganhar um doce. Ele disse que eu poderia passar em sua casa e que tomaríamos café-da-manhã juntos, desligou logo em seguida apressadamente. Estavam evidentes em sua voz a expectativa e ansiedade pelas revelações que eu lhe diria. Aprontei-me em alguns instantes e fui a pé até o apartamento mediano de meu melhor amigo, que não ficava muito distante de meu lar.

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No caminho, minha mente não conseguiu se dispersar da imagem de Lucas e o que possivelmente ocorreria ao nosso destino.

Chacoalhei a cabeça de um lado a outro quando cheguei ao portão desgastado e cinzento do prédio em que Cameron morava. “Xô, Lucas. Saia da minha cabeça!”, tentava comandar internamente. Toquei o interfone, o porteiro me reconheceu de prontidão e disse que eu poderia entrar. Abri o portão e sorri para ele, o porteiro James. Subi os oito andares de elevador e nesse meio tempo minhas mãos não cessavam o tremor. Eu estava hesitante. Uma parte de mim preferia fugir dali, queria esquecer o que havia ocorrido com Jonathan e todo aquele sofrimento; outra parte tinha vontade de colocar tudo aquilo para fora e desabafar de tal forma que não tinha feito nos últimos quatro anos em que fiquei calada, o coração doendo sozinho.

Eu sabia que aquele era o momento em que a dor finalmente acabaria.

O elevador parou no oitavo andar e, para minha surpresa, a porta do octogésimo segundo estava aberta, o cheiro convidativo de waffles exalando da cozinha do pequeno apartamento de paredes brancas. Minhas pernas trêmulas saíram de dentro do elevador e se encaminharam para dentro da residência. Bati na porta algumas vezes, bem de leve, como aviso de que havia chegado.

-Cam, estou aqui... – disse para aquele vazio que prevalecia na sala de estar. A televisão estava ligada e um programa tosco no estilo “Vai Dar Namoro” passava em um volume relativamente alto. Peguei-me indagando a razão de Cameron estar assistindo a tal baixaria. O sofá estava cheio de cobertores dobrados cuidadosamente: ele havia arrumado a casa antes de eu chegar. Sorri. Que gracinha ele era. Segui o perfume de comida e dirigi-me à sua cozinha.

Encontrei um Cameron em um avental de gatinhos fazendo waffles – ou uma tentativa esforçada deles- e sorri.

-Bom dia, dona Bolacha! – cumprimentou-me enquanto mexia em uma panela suja de uma pasta amarelada.

-Ahn... Oi, Cam. Pelo visto acordou animado, hein? – ri de sua “arte” culinária. Ele ficou desajeitado e ruborizou.

-Diríamos que era para ser uma surpresa, mas acho que acabou demorando mais que o previsto... Não sei como fazem isso tão rápido na Internet!

-Entendi... – murmurei entre risadinhas. Ele era um cara excepcionalmente cômico. – Bom... Nesse caso, aceita uma ajudinha? – ofereci.

-Não precisa! Eu vou conseguir fazer sozinho, agora é questão de honra de homem.

-E desde quando você é um? – satirizei sua masculinidade afetada. Ele riu e atirou um pedaço de biscoito em mim, que eu não consegui segurar. O fragmento caiu no chão e se espatifou. Olhei as migalhas com dó, minha barriga roncava e eu estava tentada a agachar e colocar o biscoito na boca, mesmo sendo apenas farelo.

-O que você tanto olha no chão? Gostou do porcelanato? Paguei caro neles, sabe...

-Estou com fome e dor de barriga, Cameron... E você desperdiçou um precioso biscoito bem na minha frente!

-A barriga dói? O que aconteceu?

-Fome. E ansiedade, muita ansiedade.

-Ah. Você vai me contar tudo, né? – ele abaixou o tom de voz, como se estivesse acanhado de estar me fazendo aquela pergunta. Mexia concentrado na massa dos waffles e não fazia contato visual. – Por que decidiu assim, de repente?

-Por nada... Mas sabe, Cam, guardei isso dentro de mim por quatro anos e ninguém nunca perguntou, ninguém nunca quis saber, ninguém nunca notou...

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-Notou o quê? – ele perguntou, claramente confuso.

-Que eu estava sofrendo muito. E como não falaram nada, sofri em silêncio, as máscaras foram minhas companheiras. Mas agora elas se foram, e percebi que era a hora de contar para alguém sobre isso. Eu não passei os quatro últimos anos em um estado muito saudável e decente.

-Sinto muito.

-Não precisa sentir. – sorri. – Agora eu tenho você, certo?

-Mesmo assim, eu não estive ao seu lado quando você realmente precisou. Desculpe-me eternamente, Bolacha. – ele disse e percebi algo similar a lágrimas saindo dos cantos de seus olhos esverdeados. Esbocei um sorriso e abracei-o longamente, sentindo lágrimas brotarem em meus olhos também.

-Seu bobo. – solucei e limpei os cantos dos olhos. – Os waffles vão queimar e eu estou com fome demais para comer carvão. – rimos e choramos juntos, depois eu fui para a sala de estar e ele terminou de cozinhar.

Não vou dizer que o café-da-manhã foi ruim, mas não estava lá às mil maravilhas. Comemos em silêncio, como se estivéssemos apreciando a comida. Ao fim, comecei o assunto:

-Bom, Cam... Eu vim hoje com um objetivo, certo? Preciso lhe contar se não morro de nervosismo.

-Certo. – ele assentiu. Respirei fundo.

-Tudo começou quando estávamos na escola. Lembra-se daquele menino do qual eu te falei na oitava série?

-Jonathan, né? Aquele anãozinho de jardim... – ele falou em uma voz de antipatia e eu ri.

-Ele não era tão baixo assim. Tinha uns dois centímetros a mais que eu. – protestei.

-Carol, você não é muito parâmetro de altura...

-Ok, que seja. Voltando, então, eu me apaixonei por ele naquela época e chegamos a namorar. Eu não te contei porque tinha vergonha, mas foi isso que aconteceu... Só que não ficamos juntos por muito tempo. Ele era bem mais velho que eu e foi para a faculdade.

-Nossa, que história dramática. – Cam murmurou, impressionado com a novela que era a minha vida. Eu soltei uma risada. Ele estava realmente curioso.

-Pois é... Ele foi embora. E à distância são raras as coisas que duram... – pausei e tentei conter o choro. – Terminamos, voltamos, terminamos de novo... Até o dia em que não deu mais e decidimos ficar separados mesmo.

-Deixe-me adivinhar: aí as máscaras apareceram?

-Exatamente.

-E pode me dizer o motivo delas terem desaparecido justo agora, de repente?

-Bom, Cam, - parei e olhei fixamente para seus olhos avermelhados. – É essa a pergunta que não quer calar. Estou tentando descobrir a resposta ainda.